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domingo, 27 de dezembro de 2009

Palavras sobre palavras 9

O escritor Marcelino Freire (para ir a seu blog basta clicar em “eraOdito” em “Minha lista de blogs” e aqui para ler sua entrevista à revista online Verbo21) resolveu, segundo suas palavras, desafiar cem escritores a escreverem contos com apenas cinquenta letras, fora o título e a pontuação e organizou o livro Os cem menores contos brasileiros do século (Cotia, SP: Ateliê Editorial, 200 4, Coleção 5 minutinhos), o qual eu recomendo. Desde o título, já se vê o bom humor do propósito. Embora sejam “menores”, o título é hipérbole pura. E o público recebe um presentão, porque o fato de serem pequenos é apenas um detalhe a mais. Embora alguns, em minha opinião, não sejam narrativas, portanto contos, pode-se selecionar um bom número para análise. Além dos autores lidarem magistralmente com o gênero narrativo, manejam as virtualidades da linguagem, introduzindo o leitor como parceiro dessa autoria.
Os que me chamaram a atenção, de cara, foram os de tema bíblico. Mas eles não reproduzem o famoso texto. Na verdade, sempre o desorganizam, com leituras inovadoras e críticas. Em alguns, colocarei todas as interpretações que as narrativas me provocam. Quem acompanha esse blog tem o direito de encontrar outras.

Conto 1 (6 na coletânea)

O RESTO É LENDA

André Laurentino

Depois de expulsá-los,
Deus morreu.


Primeiro, ao introduzir a palavra “lenda”, o autor já discute a sacralidade do texto que enfoca. A expressão “Deus morreu” admite a possibilidade – interpretação inocente – de um possível sofrimento divino. Ou, diferentemente, seres humanos espalhados pela Terra, livre seu pensamento, a expressão traz para o texto toda a filosofia nietzschiana contida nela (para uma maior explicação vá ao site da Revista Ética e Filosofia Política, clicando aqui). Tal expressão, nesse caso, seria uma conclusão filosófica, uma concepção humana, não um fato em si.

Conto 2 (9 na coletânea)

A BÍBLIA (SPECIAL FEATURES)

Antônio Prata

Olha, Pai, eu tentei,
mas acho que
não deu muito certo não...


De novo, aqui a ambiguidade impressa no relacionamento da expressão “Bíblia” com o “eu tentei”. Vamos ver algumas opções de entendimento do texto.
O título como chamada para o assunto:
1. Fala de Adão – representante do ser humano –, que não conseguiu estar à altura do plano divino.
2. Confissão de Eva – representante humana feminina –, que desejava proporcionar a Adão – representante humano masculino – uma perspectiva de independência e sabedoria, oferecendo o fruto da árvore do conhecimento. Projeto gorado. Essa é uma leitura mais ousada e que, confesso, me delicia.
O título como início do texto:
3. Alguém que escreve o livro chamado sagrado, a Bíblia, seja lá qual for a intenção de Deus, e vê que seu trabalho foi em vão.

Conto 3 (96 na coletânea)

CRIAÇÃO

Tatiana Blum

No sétimo dia, Deus descansou.
Quando acordou, já era tarde.

Tatiana usa, com extrema habilidade, a duplicidade dos dois níveis de linguagem. O nível denotativo de “Quando Deus acordou, já era tarde.”: cansado, a divindade dorme muito e passa da hora. A frase, dessa maneira, refere-se apenas a Deus. E, na verdade, atribui uns “ares” meio humanos a quem não os teria.
O nível conotativo: “acordar”, no sentido de “perceber”, “se dar conta”; “ser tarde”, como “agora não há nada mais a fazer”. Entendido o trecho desse modo, passa-se a ter uma avaliação da conduta humana. A possibilidade da interseção dos dois níveis cria a glória do conto.

Conto 4 (97 na coletânea)

DIA ZERO

Whisner Fraga

Disse o Homem: haja Deus!
E houve Deus.

O último conto postado, aproveitando o linguajar bíblico, ecoa a velha piada: “E o homem fez Deus à sua imagem e semelhança.” .
O importante de todo esse trabalho literário é o desafio em que o leitor se acha: ao desfazer ambiguidades, vai agregando significados diferentes às mesmas palavras, ou seja, com um mesmo conto, ele tem vários. Outro fator, e para mim o de mais relevância, é a subversão do texto de que partem, propiciando a crítica, a releitura, não só do texto bíblico, mas do próprio ser humano.
E vou fechar esse estudo superficial, citando Mário Quintana (Caderno H), poeta gaúcho (1906 - 1994), por quem sou apaixonada, citação que se estenderia de poetas a contistas e que, embora não faça parte do livro de Marcelino Freire, calha aqui como uma luva:

Versículo inédito do Gênesis

Mário Quintana

E eis que, tendo Deus descansado no sétimo dia, os poetas continuaram a obra da criação.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

A força lírica das Bachianas - Literatura, já 9

Como tenho lidado com o poema abaixo, resolvi colocá-lo nesta seção, a qual antecipo. A poeta da vez sou eu. O texto foi feito este ano, em um momento particularmente difícil, a doença de minha mãe, que faleceu em agosto e a qual homenageio agora, quando o ano se finda, mas de quem não poderei nunca me esquecer. Desejo que a(o) leitora (leitor), clique no vídeo e o veja, enquanto lê meu texto. Assim terá a dimensão do que digo. Ao ouvir as "Bachianas brasileiras n.o 5" - Ária (Cantilena), do genial maestro e compositor Heitor Villa-Lobos, cujo cinquentenário da morte se deu no dia 17 de novembro deste ano, o poema surgiu.

Elegia

Eliane F.C.Lima

As Bachianas n.o 5 tem o desespero do meu presente,
as Bachinas n.o 5 tem.
As Bachianas n.o 5 tocam também o meu passado,
essas Bachianas n.o 5.
As Bachianas n.o 5 dizem o que não posso dizer,

pois minha garganta está sufocada,
minha respiração suspensa.
Minha vida está suspensa.
Mas há as Bachianas n.o 5.
Vivo ali, nas Bachianas n.o 5.
O sofrimento que me mata
soa nas Bachianas n.o 5.
As Bachianas n.o 5 choram o meu pranto por mim.
E, por isso, me salvam.
(26-03-2009)

Agradeço e remeto, mais uma vez, ao YOUTUBE (clique aqui).


domingo, 13 de dezembro de 2009

O espelho, a alma e o agora.

Neste segmento vou retomar o tema do espelho, agora, na literatura atual, e fazer alguns comentários sobre o uso do tema.
O primeiro poema postado pertence a uma poeta portuguesa, Lídia Bulcão, cujo blogue A ilha dentro de mim é um dos que curto. Aconselho a visitá-lo, clicando aqui. Nele, o leitor se depara com um eu que se olha ao espelho, fisicamente, e, como em Cecília Meireles (ver a seção anterior) vê ali uma das feições do tempo. E a palavra “feição” me parece bastante apropriada, em todos os seus sentidos. Percebe-se que o tempo se concretiza através de seus efeitos. Mais do que um rosto particular, o que ali se reflete é essa dimensão que, em última análise, submete os seres.

Em frente ao espelho

Lídia Bulcão

Sinto-me nua diante do espelho.
Vejo, mas não reconheço
a mulher que me olha com
espanto e estranheza.
Como se as rugas de expressão
pertencessem a outro rosto,
a outra vida, a outro sofrimento.

Reparo nos contornos do rosto
que sempre olhei com
a ligeireza das coisas fugazes.
Olho os vincos do tempo e percebo.
Décadas são apenas folhas caídas
do calendário colado na porta do frigorífico.


O segundo poema, já foi publicado neste blogue. Mas me pareceu bastante oportuno reconduzi-lo e comentar. Primeiro, o termo, que está sendo discutido é usado no plural. Isso cria um ambiente de inapreensão possível, o que, em poesia, é uma possibilidade fértil. Depois, a gente pode constatar que são objetos internos – “meus espelhos” – e que, ao contrário da característica primeira, eles é que são refletidos e “nas dores da alma”. A imagem poética tem seu grande efeito. Mas esse eu lírico segue derrubando a pré-imagem do espelho, quando acrescenta que “são todos quebrados”. Dessa forma, adiciona ao espelho o velho e místico sentimento do “espelho quebrado”, que carrega atrás de si todos os seus presságios. E consegue reforçar o tom plangente da voz que se analisa.

Espelhos

Viviane Arena Figueiredo

Segredos e imagens
Segregam formas,
Lembram momentos,
Refletem luz
Em estilhaços,
Em meus espelhos
Todos quebrados
E refletidos
Nas dores da alma ...


O último poema é de minha autoria e está postado, em outubro de 2009, em meu blogue Poema vivo. Gostaria de sua visita lá (clique aqui). Foi esse o poema que ensejou o comentário da Lídia: "É curioso como os espelhos despertam o fascínio das gentes, desde tempos imemoráveis."
O tratamento novo dado ao objeto é o de personalificá-lo e de se inverterem as ações: aqui é o eu que duplica o espelho, o qual se observa no rosto e se vê tomado do mesmo estranhamento daquele eu do poema da poeta de Portugal. E esse jogo de repetições vai se alternando, ora lá, ora cá. Mas ao final, o leitor sente que, de um lado ou de outro, o sofrimento da alma é o revelado.

Reflexos

Eliane F.C.Lima

Este espelho me olha assombrado
e desconhece seu rosto refletido:
não sabe de quem é o riso gelado,
não consegue ver bem o olhar sumido.

Espelho, espelho meu, que ora duplico,
espelho, espelho meu, eu lhe suplico,
não fuja , estupefato, do semblante
que é meu, posto que seu, por semelhante.

Encare a boca, aflita, também sua,
tal qual a dor perene e tão crua,
e a lágrima que a sua face molha.

Se hoje sou só eu que não sorrio,
se nesses dias sou a que não olha,
também há no espelho o que é sombrio.

sábado, 5 de dezembro de 2009

Palavras sobre palavras /Literatura de ontem 8

Novamente, neste segmento, irei reunir duas seções, como indica o título acima. Dessa vez, aproveitando o comentário interessante de Lídia Bulcão (será apresentada na próxima postagem: Literatura, já 8) de que o espelho é um tema que atrai as (os) poetas. Mas o tratamento dado a ele, espelho, é bastante variado. De simples referente, objeto do mundo real, transforma-se, além de sua mágica de reproduzir quem se olha, pela mágica da poesia. Começamos o estudo por Cecília Meireles.

Mulher ao espelho

Cecília Meireles

Hoje que seja esta ou aquela,
pouco me importa.
Quero apenas parecer bela,
pois, seja qual for, estou morta.

Já fui loura, já fui morena,
já fui Margarida e Beatriz.
Já fui Maria e Madalena.
Só não pude ser como quis.

Que mal faz, esta cor fingida
do meu cabelo, e do meu rosto,
se tudo é tinta: o mundo, a vida,
o contentamento, o desgosto?

Por fora, serei como queira
a moda, que me vai matando.
Que me levem pele e caveira
ao nada, não me importa quando.

Mas quem viu, tão dilacerados,
olhos, braços e sonhos seus
e morreu pelos seus pecados,
falará com Deus.

Falará, coberta de luzes,
do alto penteado ao rubro artelho.
Porque uns expiram sobre cruzes,
outros, buscando-se no espelho.

A segunda estrofe do poema está carregada de ambiguidade. A primeira interpretação, pode revelar uma mulher que, levada pelas exigências de um mundo (“Por fora, serei como queira/a moda, que me vai matando.” ou “Quero apenas parecer bela,”), vai se metamorfoseando (“...que seja esta ou aquela,...”), oprimida: “Só não pude ser como quis.” Observemos que os versos “... pois, seja qual for, estou morta.”; “... e morreu pelos seus pecados,” e “Porque uns expiram sobre cruzes,/outros, buscando-se no espelho.” revelam uma pessoa infeliz nessa busca exterior resumida em “espelho”.
Uma outra leitura daquela mesma estrofe, pode entendê-la como a fala de uma mulher não individualizada, não personalizada, tanto que viveu vidas muito diferentes. Observe-se a oposição cultural entre “Maria” e “Madalena”. Mas esse discurso, ao contrário, não quer criar um ser arquetípico “Mulher”, como se poderia supor. Demonstra que a variedade de aspectos de todas as mulheres citadas ali reforça a nova postura dos movimentos feministas que afirmam a pluralidade da mulher e negam velhas fórmulas como “alma feminina”, “essência feminina”. O ser humano é plural, já foi dito em outra postagem. Apontam, com mais força ainda, a opressão. Em qualquer época, a mulher não pode ser como quer e é sempre levada a “expirar diante de um espelho”, como se vê com a enxurrada de operações plásticas do mundo moderno.
Embora o poema acima mostre um eu que olha para o espelho para enxergar-se fisicamente, os outros poemas de Cecília, a seguir, mostram, na verdade, um uso diferente do tema do espelho e que é quase sempre constante.

Epigrama do Espelho Infiel

A João de Castro Osório

Cecília Meireles

Entre o desenho do meu rosto
e o seu reflexo,
meu sonho agoniza, perplexo.

Ah! pobres linhas do meu rosto,
desmanchadas do lado oposto,
e sem nexo!

E a lágrima do seu desgosto
sumida no espelho convexo!

No poema acima, como costuma ocorrer em autorias diversas, o espelho é apenas uma dissimulação de uma análise subjetiva, de um eu que se autoinvestiga.

Retrato

Cecília Meireles

Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.

Eu não tinha estas mãos, sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
– Em que espelho ficou perdida
a minha face?

De início, devemos ampliar o significado da palavra “retrato” do título. Pode-se referir realmente a uma fotografia, mas pode ser também apenas o representar das características de alguém. Como se vê, mais do que uma figura exterior, o que se retrata é toda uma mudança ocorrida por um sofrimento de vida – “... eu não tinha este coração/que nem se mostra.” –, revelados elementos inapreensíveis pelo olhar. Finalmente, “o espelho” da última estrofe esvazia-se de sua condição de objeto físico, porque se lhe agrega, nitidamente, a noção de “tempo”.
Mas, como comprovam os textos seguintes, de autoria masculina, não são apenas as mulheres que se olham no espelho. Conhecidíssimo, o texto a seguir, nega a eficiência do espelho enquanto objeto revelador, apontando uma dicotomia entre o fora e o mais profundo do eu poético.

Versos de Natal

Manuel Bandeira

Espelho, amigo verdadeiro,
Tu refletes as minhas rugas,
Os meus cabelos brancos,
Os meus olhos míopes e cansados.
Espelho, amigo verdadeiro,
Mestre do realismo exato e minucioso,
Obrigado, obrigado!

Mas se fosses mágico,
Penetrarias até o fundo desse homem triste,
Descobririas o menino que sustenta esse homem,
O menino que não quer morrer,
Que não morrerá senão comigo,
O menino que todos os anos na véspera do Natal
Pensa ainda em pôr os seus sapatinhos atrás da porta.

O próximo texto traz um novo ângulo ao tema. Aqui, esse eu, ao olhar a si no espelho, descobre o pai – observe-se a ousada, e de efeito surpreendente, construção de “Como pude ficarmos assim?” – e essa duplicação termina por ser uma revelação mais nítida de si mesmo. Permite, ainda, ao leitor, uma inferência da condição de todo ser humano.

Espelho

Mário Quintana

Por acaso, surpreendo-me no espelho: quem é esse
Que me olha e é tão mais velho do que eu?
Porém, seu rosto... é cada vez menos estranho...
Meu Deus, meu Deus... Parece
Meu velho pai - que já morreu!
Como pude ficarmos assim?
Nosso olhar – duro – interroga:
"O que fizeste de mim?!
Eu, Pai?! Tu é que me invadiste,
Lentamente, ruga a ruga... Que importa! Eu sou, ainda,
Aquele mesmo menino teimoso de sempre
E os teus planos enfim lá se foram por terra.
Mas sei que vi, um dia – a longa, a inútil guerra! –
Vi sorrir, nesses cansados olhos, um orgulho triste...

O último texto é de um escritor surrealista. A estética desse movimento, que atingiu todas as artes, pretendia utilizar imagens características do inconsciente, do sonho, utilizando um discurso não racional. Para um aprofundamento da definição, remeto ao E-Dicionário de Termos Literários, como já fiz em outras postagens (clique aqui). Cria-se uma atmosfera de mundos paralelos: “Um plano superpõe-se a outro plano./O mundo se balança entre dois olhos,”. A pergunta “Mas quem me vê? Eu mesmo me verei?” instaura a possibilidade de um outro alguém, de um outro mundo, ser aquele que olha. E ainda “Correspondo a um arquétipo ideal.” traz para o texto o pensamento platônico, reafirmando a interpretação. Mas a revelação sutil e poética está naquele “Signo de futura realidade sou.”, lembrando que a palavra “signo”, lapidada de todas as diversas interpretações da história da Semiótica, é, em última análise, o uso de uma coisa presente para indicar outra coisa ausente, reafirmando a idéia de dois mundos que se tangenciam, ligados por esse signo, por esse eu lírico. Isso tudo está implícito na idéia de espelho do título que, levada por “ondas de terror”, uma manopla parte.

O Espelho

Murilo Mendes

O céu investe contra o outro céu.
É terrível pensar que a morte está
Não apenas no fim, mas no princípio
Dos elementos vivos da criação.

Um plano superpõe-se a outro plano.
O mundo se balança entre dois olhos,
Ondas de terror que vão e voltam,
Luz amarga filtrando destes cílios.

Mas quem me vê? Eu mesmo me verei?
Correspondo a um arquétipo ideal.
Signo de futura realidade sou.

A manopla levanta-se pesada,
Atacando a armadura inviolável:
Partiu-se o vidro, incendiou-se o céu.

Como o tema não se esgota aqui, a seção Literatura já, 8 irá trazer para o presente, ainda, o fascínio do espelho.