Eliane
F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais - Rio de
Janeiro)
Hoje
vou fazer a segunda postagem sobre a teoria de Käte Hamburger, a
estudiosa alemã sobre a qual se falou anteriormente. Serão
colocados aqui alguns pontos fundamentais anteriores, embora
resumidos, para que a/o visitante consiga acompanhar o que vem pela
frente.
1.
Ela segue o caminho da “lógica” da criação literária, em
detrimento da busca estética. Esse encontro da “lógica” se dá,
essencialmente, por aspectos linguísticos.
2.
Na
busca dessa lógica, focalizará
a
tensão conceitual entre “criação literária” (apenas
como literatura
narrativa
e
dramática) e
“realidade” (“realidade”
em seu sentido de confronto ou relação com a ficção).
3.
Ela segue, ainda, o pensamento aristotélico da mimesis (como
sinônimo de poiesis) como ficção em que a personagem surge
no texto através de suas próprias ações e de sua voz.
4.
Propõe que se estude e estabeleça a linguagem da criação
literária justamente pela diferença com a linguagem da realidade.
5.
Para
isso, vai pelo caminho inverso: examina
os critérios da linguagem não poética, ou
seja, da
linguagem comprometida com a realidade,
o sistema
enunciador da linguagem,
do
enunciado
de realidade.
xxx
Faremos,
então, a partir daqui um estudo do enunciado de realidade -
“ toda
enunciação é uma expressão da realidade”,
disse a escritora –, usando para isso textos publicados
aqui no Brasil,
para
maior entendimento da pessoa leitora brasileira e porque, em síntese,
é a nossa cultura
que nos interessa, afinal.
Para
tal,
no
entanto, é necessário que se entre
antes
em contato com
certos conceitos
estabelecidos pela estudiosa.
Enunciado
O
enunciado, que sempre é um enunciado de realidade, é a enunciação
de um sujeito-de-enunciação sobre um objeto-de-enunciação (o
conteúdo). O caráter e a função do enunciado são reconhecidos
pelo enfoque no sujeito-de-enunciação.
Enunciação
Apresenta-se
como a estrutura sujeito/objeto da língua. No enunciado “eu
enuncio algo” (enunciação em si): o enunciado é a enunciação
de um sujeito (eu) sobre o objeto (algo). A fórmula de enunciação,
segundo
a filósofa alemã,
não
é válida para a criação do gênero narrativo,
o
que é um dado
extremamente relevante como diferencial para se conhecer o genêro
narrativo.
Mas
ela
é
válida em todo o domínio restante da linguagem. A estudiosa também
reconhece a validez da fórmula da enunciação para a criação
lírica. Como afirma que toda enunciação é uma expressão da
realidade e fundamento para determinar a diferença “realidade” X
“criação literária”, já podemos inferir que Käte, então,
aparta o gênero lírico da criação literária e o aproxima da
realidade.
Guardemos
esses dois dados:
1.
A presença da
fórmula de enunciação (expressão
da realidade)
indica
que não
há ali
gênero narrativo.
2.
Há
validez da fórmula da enunciação (expressão da realidade) para a
criação lírica também.
O
gênero lírico estaria próximo da realidade e longe da criação
literária.
Objeto-de-enunciação
O
objeto é o conteúdo da enunciação
em qualquer modalidade proposicional (enunciativa/declarativa;
exclamativa; interrogativa etc).
Sujeito-de-enunciação:
Não
confundi-lo
com o eu-emissor
da comunicação que
se opõe a um “tu-receptor”, fora do texto
(eu-emissor/tu-receptor).
O sujeito-de-enunciação sempre enuncia exclusivamente em relação
a seu objeto-de-enunciação (sujeito/objeto).
O
sujeito-de-enunciação
é o elemento estrutural da estrutura da linguagem.
A
análise do sujeito-de-enunciação converte o enorme campo
temático-material dos enunciados em um sistema de três categorias:
a.
sujeito histórico – definido, individual. ex.: presente em uma
carta.
b.
sujeito teórico: geral, interindividual. ex.: responsávelpor uma
sentença matemática, texto científico ou lógico; texto teórico,
enfim.
c.sujeito
pragmático: quer algo referente ao objeto-de-enunciação. ex.:
pergunta, ordem, pedido.
Examinemos
o texto abaixo, retirado de Michelangelo,
da Coleção “Mestres da pintura”, da Abril Cultural, 1 ed, 1977,
página 6, e
que é identificado, no final do livro como de
José Arrabal Fernandes Filho, responsável
também pela pesquisa.
Nos
seus 89 anos de vivência no mundo das artes e no universo social
europeu, Michelangelo ascendeu a uma estatura jamais alcançada
anteriormente por qualquer outro artista. Viveu um tempo de gênios e
de obras grandiosas, numa época de grandes transformações nas
mentalidades, na economia e na política.
Objeto-de-enunciação:
biografia do escultor Michelangelo Buonarroti.
Sujeito-de-enunciação:
um biógrafo (sabe-se depois), que pesquisa e escreve o texto, por
encomenda da Coleção “Mestres da pintura”. É um
sujeito-de-enunciação geral, interindividual. Está de tal modo
indefinido, que seu nome nem aparece encabeçando o texto e só ao
final da publicação, por uma questão legal, provavelmente, é
citado. Tal sujeito-de-enunciação teórico, entretanto, apesar
dessa busca pela objetividade textual, por seu apagamento, também é
um sujeito real.
Começamos
a reconhecer que esse é um enunciado de realidade. Mas,
conforme nos ensina a teórica, não é a realidade do objeto o que
dá a esse enunciado seu caráter de realidade, senão a do
sujeito-de-enunciação, sujeito identificado como real.
Nesse
caso, como é um enunciado e de realidade, com um
sujeito-de-enunciação real, já podemos afirmar, com Käte
Hamburguer, que não é um texto de criação literária.
Para
enfatizar
e esclarecer isso
melhor, fazendo um paralelo com o que diz a
estudiosa,
devemos nos reportar ao filme documentário “Cinco vezes Chico –
o velho e sua gente”, recentemente lançado, em que vários
pescadores, seguindo o ritual da “mentira”, fazem relatos
flagrantemente imaginativos e
grandiosos,
para delícia dos espectadores. Pois
bem, esses relatos, ao contrário do texto
lido
acima, embora tenha
objetos-de-enunciação
invencionados,
termo
da própria escritora, são
enunciados de realidade, porque seus sujeitos-de-enunciação são
reais, eles são o fator decisivo. Como a escritora afirma na página
30:
A
enunciação sempre é real, porque o sujeito-de-enunciação é
real, porque, com outras palavras, uma enunciação somente pode ser
constituída por um sujeito-de-enunciação real, autêntico.
É
somente com o esclarecimento da noção de realidade concernente ao
sujeito-de-enunciação que se pode iluminar a estrutura do enunciado
de realidade (…).
Então,
invencionado ou real, não é o objeto o marcador do enunciado, mas o
sujeito-de-enunciação.
No
prefácio de Manuel Bandeira a
Cartas
a Manuel Bandeira,
de Mário de Andrade, provavelmente
livro póstumo, da Ediouro, Coleção Prestígio (sem indicação de
data ou edição), diz o poeta:
Tive
com Mário de Andrade uma correspondência epistolar que se iniciou
em 1922 e se prolongou sem interrupção até a sua morte. Mário
escreveu milhares de cartas. Nunca deixou carta sem resposta. Creio,
no entanto, que as de nossa correspondência têm importância
especial, porque comigo ele se abria em toda a confiança, de sorte
que estas cartas valem por um retrato de corpo inteiro, absolutamente
fiel. (p. 13)
Aqui
também temos um enunciado de realidade, cujo objeto-de-enunciação
são as cartas do escritor modernista Mário de Andrade e um pouco de
sua personalidade. Mas, continuemos a entender que,
o
que faz esse compromisso com a realidade, é a enunciação de um
sujeito real, aqui classificável como sujeito histórico, porque
definido, individual. Notemos a presença dos verbos e pronomes de
primeira pessoa, ali,
personalíssimos.
Como
diz Käte Hamburger, na página 34: “o
que foi enunciado é o campo da experiência ou de vivência do
sujeito-de-enunciação.”
A
próxima postagem irá analisar, finalmente, textos narrativos,
ficcionais. Confrontando-os com os argumentos caracterizadores do
enunciado (de realidade), ressaltar e definir a “lógica” da
criação literária.
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que os trouxeram aqui. Como não posso atender a esclarecimentos
pessoais pelo blogue, peço que estudantes de Letras, que desejarem,
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