Eliane
F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais - Rio de
Janeiro)
Resumo das postagens anteriores sobre o pensamento de Käte Hamburguer:
1.
ENUNCIADO DE REALIDADE: A presença de um sujeito-de-enunciação
caracteriza um enunciado de realidade. Não é o conteúdo de
realidade que marca tal enunciado. Mesmo que se identifiquem
elementos “invencionados” ali, fantasiados, isso não
descaracteriza a realidade, porque o sujeito-de-enunciação é
sempre real.
2.
TEXTO FICCIONAL: É a presença de personagens em suas ações, em
suas próprias falas – a mimese aristotélica
–, que indica o texto ficcional. O narrado deixa de estar no campo
da experiência ou de vivência do sujeito-de-enunciação e passa
para o campo da vivência de personagens.
3.
Há aspectos linguísticos – nomeados “sintomas” pela escritora
–, que são identificados por ela e que estabelecem, então, a
“lógica” da criação literária – tese do livro estudado –,
os quais, dependendo de sua natureza, tanto mostram o enunciado de
realidade (a não ficção), como o contrário, o texto ficcional.
Nesta
postagem, serão mostrados os elementos que Käte Hamburguer aponta
para identificar um sujeito-de-enunciação e seu enunciado de
realidade X o texto de ficção, o que realmente interessa ao leitor.
Tal estudo foi direcionado aqui para textos de Literatura Brasileira
(ALMEIDA, Manuel Antônio. Memórias de um sargento de milícias.
Ed. Crítica de Cecília de Lara. Rio de Janeiro:livros Técnicos
e Científicos, 1978. p. 5) (biblioteca Universitária de literatura
brasileira: Série C, ficção, romance e conto; v. 2), acessíveis,
portanto, a todos os leitores brasileiros.
Texto
1
Uma
das quatro esquinas que formam as ruas do Ouvidor e da Quitanda,
cortando-se mutuamente, chamava-se nesse tempo – O canto dos
meirinhos –; e bem lhe assentava o nome, porque era aí o lugar
de encontro favorito de todos os indivíduos dessa classe (que gozava
então de não pequena consideração). Os meirinhos de hoje não são
mais do que a sombra caricata dos meirinhos do tempo do rei; esses
eram gente temível e temida, respeitável e respeitada; formavam um
dos extremos da formidável cadeia judiciária que envolvia todo o
Rio de Janeiro no tempo em que a demanda era entre nós um elemento
de vida: o extremo oposto eram os desembargadores. Ora, os extremos
se tocam, e estes, tocando-se fechavam o círculo dentro do qual se
passavam os terríveis combates das citações, provarás, razões
principais e finais, e todos esses trejeitos judiciais que se
chamavam o processo.
Daí
sua influência moral. (pág. 6)
Inicialmente,
observemos o dado curioso de que este
recorte
de romance apresenta a mesma estrutura linguístico-lógica que o
trecho da biografia
do
escultor Michelangelo Buonarroti, por
exemplo.
É construído
de tal modo que poderia ser proveniente de
um relato histórico. Se nos fosse apresentado esse segmento,
desligado do romance, compreenderíamos aquele local retratado como o
campo de experiência do sujeito relator, podendo ser esse
considerado um sujeito-de-enunciação teórico,
como
no
caso da
biografia de Michelangelo
Buonarroti.
Havendo no texto acima um sujeito-de-enunciação, estamos
no caso de um enunciado de realidade e
não de um texto
de ficção, segundo a autora em questão.
Se
lermos, porém, esse trecho, sabendo que é o começo de um romance,
supomos que a paisagem não faz parte do campo de experiência desse
e passa a ser cenário de outras figuras – as personagens
fictícias, as figuras de romance –, cuja entrada em cena
aguardamos.
Mas
o problema não é tão simples assim. Na verdade, enfim, esse
trecho, apesar de fazer parte de um romance, segundo os
critérios da teórica,
configura-se, sim, como um enunciado de realidade. Comecemos
observando o dêitico “aí” (linha 3), que marca uma localização
no espaço em oposição a um hipotético “aqui”, não
escrito, mas local de onde
fala o sujeito enunciador e que não se refere a personagens que
surgirão, mas a ele mesmo.
Examinemos
também os
tempos verbais – presentes (“formam”, “são”) e pretéritos
(“chamava”, “assentava”, “eram” etc) – e as expressões
temporais
“nesse tempo”, “de hoje”, “então”,
“do tempo do rei”: fica
bastante claro que as formas
temporais estão fixadas
em relação à experiência do
sujeito-de-enunciação: observe-se
a localização precisa da esquina de “hoje”
– tempo atual desse
sujeito e sua importância
relativamente à lembrança dele
ao que era no passado. O uso
das relações temporais está preso, estritamente, ao
conceito
descrito nas gramáticas: pretérito,
presente e passado são tempos estabelecidos por um sujeito.
Faz parte de um enunciado de
realidade, portanto, mesmo que a pessoa leitora já saiba que
entrarão, adiante, as personagens de uma ficção.
Texto
II
Mas
voltemos à esquina.
…......................................................................................................................
Entre
os termos que formavam essa equação meirinhal pregada na esquina
havia uma quantidade constante, era o Leonardo-Pataca.
…......................................................................................................................
Sua
história tem pouca coisa de notável. Fora Leonardo algibebe em
Lisboa, sua pátria; aborrecera-se porém do negócio, e viera ao
Brasil. Aqui chegando, não se sabe por proteção de quem, alcançou
o emprego de que o vemos empossado, e que exercia, como dissemos,
desde tempos remotos. Mas viera com ele no mesmo navio, não sei
fazer o que, uma certa Maria da hortaliça, quitandeira das praças
de Lisboa, saloia rechonchuda e bonitota. O Leonardo, fazendo-se-lhe
justiça, não era nesse tempo de sua mocidade mal apessoado, e
sobretudo maganão. Ao sair do Tejo, estando a Maria encostada à
borda do navio, o Leonardo fingiu que passava distraído por junto
dela, e com o ferrado sapatão assentou-lhe uma valente pisadela no
pé direito. A Maria, como se já esperasse por aquilo, sorriu-se
como envergonhada do gracejo, e deu-lhe também em ar de disfarce um
tremendo beliscão nas costas da mão esquerda. (Mesmo romance,
ainda pág. 6)
No
trecho, há muitos detalhes a serem observados. Várias expressões
ainda denunciam a presença daquele mesmo sujeito-de-enunciação
acima: “como dissemos”, “não sei fazer o que”, além do
advérbio “aqui” (X Lisboa), que demonstra, ainda sem sombra de
dúvidas, o local de onde se posiciona o sujeito narrador. A presença
desse sujeito, segundo o conceito expresso da estudiosa alemã, ainda
denuncia um enunciado de realidade, mesmo com fortes indícios da
presença do “invencionado”, do “fingido”. Seguindo a
conceituação aristotélica, a mimese ficcional só se
apresenta como tal, quando a personagem age, pensa, fala. Ainda não
seria o caso.
Mas
a atenção de quem lê já dispara, pois não se pode deixar de
observar o significado dos verbos “aborrecera-se” (l.7) e
“fingiu”, que são os chamados verbos de processos internos,
processos esses que uma pessoa de fora não tem conhecimento sobre
outra pessoa em um conteúdo de realidade, mas somente em narrativas
ficcionais. Esse é um “sintoma” ou aspecto linguístico-semântico
marcante, quanto à ficção, que faz parte do que a teórica vem
nomeando como “lógica” literária.
Outro
detalhe a ser anotado é o emprego dos verbos situacionais.
Käte Hamburguer chama a atenção para o fato de que, em um
enunciado de realidade, transcorrido no passado autêntico, tais
verbos, do tipo “sorrir”, “andar”, “deitar”, ou seja, de
significado extremamente momentâneo, são impossíveis de serem
usados. Eles não cabem em situações passadas reais. Registremos as
ações situacionais em “assentou-lhe uma valente pisadela no pé
direito”; “sorriu-se como envergonhada...”; “deu-lhe também
em ar de disfarce um tremendo beliscão...”. Só a narrativa
ficcional, como se vê, prevê e permite o uso largo de tais verbos.
Diz lá a autora:
Em
asserções sobre situações reais empregamos tais verbos de
situação no imperfeito somente com referência a situações
temporais próximas, porque designam uma situação concreta, ainda
visualizável e lembrada pelo enunciador. (p. 67)
Já
se pode perceber, desse modo, que os verbos no passado listados nos
dois casos deixam de ser tempos gramaticais, pois
não têm mais uma
ligação específica com o sujeito de enunciação, perdendo sua
função e capacidade marcadora do passado, para serem apenas
recursos ficcionais. Têm
ligação com as personagens. O
enunciado de realidade passa
a dar lugar ao texto narrativo ficcional. Os aspectos temporais
deixam de ser os gramaticais – reais,
autênticos –, ao se
esvaziarem
do
campo da vivência do sujeito-de-enunciação, porque a narrativa
entra no campo da experiência das personagens épicas,
que fazem a literatura narrativa.
Transcrevamos
alguns trechos das próprias palavras da estudiosa em seu citado
livro:
Pois
não tinha sido posto em discussão que o pretérito possa deixar de
ser, em algum lugar qualquer da manifestação verbal, a expressão
de acontecimentos passados. (p.46)
A
mudança de significação, porém, consiste em que o pretérito
perde a sua função gramatical, que é a de designar o passado.
(em itálico no livro, p. 46)
Pois
é somente a entrada em cena, ou seja, a expectativa da entrada da
eu-origo fictícia dos
personagens do romance, a razão
para o desaparecimento da eu-origo real
e concomitantemente, em consequência lógica, para a destituição
pelo pretérito da sua função de passado. (eu-origo é
um termo pelo qual a autora substitui, agumas vezes,
sujeito-de-enunciação ou sujeito/personagem por
questões epistemológicas.
p. 53)
(…)
o que significa do ponto de vista da Teoria Literária a noção de
personagem fictício e por que é apenas a sua entrada em cena que dá
à narração o caráter de não-realidade, tirando,
consequentemente, ao imperfeito o seu significado de passado. (p. 53)
Pois
nenhum texto pode esclarecer mais nitidamente que com este imperfeito
desaparece a eu-origo
do narrador, retira-se da narração, dando lugar às eu-origines
fictícias dos personagens.
A
expressão “não
era nesse tempo de sua mocidade” não
marca
um tempo em relação ao presente do sujeito-de-enunciação, porém
em relação ao próprio tempo da narrativa de Leonardo-Pataca,
personagem que já começa a
surgir
como ser agente, quando a mimese
aristotélica começa a ser introduzida. Na
mocidade, ou já na velhice, muitos
anos
depois,
Leonardo-Pataca continua a ser narrado no passado, que
mostra assim o enriquecimento ficcional conseguido com esse tempo
épico, em detrimento de sua temporalidade gramatical.
Daqui
em diante aparece o reverso da medalha. Segui-se a morte de D. Maria,
a do Leonardo-Pataca, e uma enfiada de acontecimentos tristes que
pouparemos aos leitores, fazendo aqui ponto final. (Memórias de
um sargento de milícias. p. 209)
Alguns
dados acima, secundados pela teoria da escritora alemã, devem ser
destacados e resumidos:
1.
Um enunciado de realidade é comandado por um sujeito-de-enunciação,
que é sempre real. Um “aqui” espacial real – lugar de onde
esse sujeito enuncia – e verbos com seus aspectos temporais também
reais, por acontecerem em relação a um “sujeito que fala”, como
conceituam as gramaticas, são exemplos linguísticos desse
sujeito-de-enunciação. Quando surge um pretérito, o tempo é
realmente pretérito.
2.
Há uma lógica da criação literária, da ficção, que é
construída – e identificada, posteriormente, – por aspectos
línguísticos, além da presença de personagens que agem e falam
por si mesmos:
a.
verbos situacionais e de processos internos – impossíveis de
serem usados em enunciados reais – que surgem na narrativa.
b.
verbos que estruturalmente estão no pretérito, mas são vazios de
sua intencionalidade temporal. São mecanismos narrativos. Fazem
parte do processo mimético aristotélico, ou seja, realizam-se na
presença das personagens que agem e falam.
O
estudo superficial feito aqui sobre toda a conceituação da “lógica”
literária, feita por Käte Hamburger, não substitui o mergulho em
seu livro. A intenção é apenas aguçar a curiosidade da/do visitante
e incentivá-la (lo) a estudos mais aprofundados, para enriquecimento da
pessoa leitora, chegando-se até à possibilidade de questionamentos
ou refutação dos argumentos e conclusões da teórica.
Possivelmente farei, em uma outra ocasião, um estudo sobre suas
concepções sobre a narrativa em primeira pessoa, interessantes e
inovadoras, sobre as quais tenho claras discordâncias.
Gostaria
de receber comentários dos visitantes. Saber quem são e os motivos
que os trouxeram aqui. Como não posso atender a esclarecimentos
pessoais pelo blogue, peço que estudantes de Letras, que desejarem,
postem seus e-mails, que não serão, claro, publicados.