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domingo, 19 de maio de 2019
quarta-feira, 5 de outubro de 2016
Parte IV - Os fenômenos fundamentais da Criação Literária
O gênero Lírico
Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais)
Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais)
A presente postagem terá como objetivo fazer uma análise de três poemas – gênero lírico – sob o ponto de vista da teoria defendida por Käte Hamburguer, a estudiosa alemã, que já vimos examinando. É interessante relembrar que a tese de seu livro sempre citado é de que há uma “lógica da criação literária”, identificável em seus aspectos linguísticos. Aqui enfatiza-se, resumidamente, alguns pontos levantados antes.
1. Exame da tensão conceitual entre “criação literária” e “realidade”, sendo que “realidade” aparecerá apenas em seu sentido de confronto ou relação com a ficção (o modo criado e representado pela literatura narrativa – romance, conto etc – e dramática): a narração, que faz as personagens falarem por si, de maneira mimética, no sentido aristotélico (não incluindo o gênero lírico) .
2. Como estratégia, a teórica, que deseja estabelecer a estrutura da linguagem poética (referindo-se à da ficção e do drama), examina os critérios da linguagem não poética – a comprometida com a realidade –, ou seja, o sistema enunciador da linguagem. A noção de enunciado de realidade (e não da realidade em si, observemos) fornece o critério decisivo para a classificação dos gêneros literários.
3. O enunciado, desse sistema enunciador da linguagem, que sempre é um enunciado de realidade, é a enunciação de um sujeito-de-enunciação sobre um objeto-de-enunciação (o conteúdo). O caráter e a função do enunciado são reconhecidos pelo enfoque no sujeito-de-enunciação. Atenção: a presença desse sujeito-de-enunciação (expressão da realidade) indica que não há ali gênero narrativo ou dramático.
4. Mas a fórmula da enunciação (sujeito-de-enunciação sobre um objeto-de-enunciação) é válida para a criação lírica também. O gênero lírico seria um enunciado de realidade, portanto.
Como a atual postagem será sobre o gênero lírico, é importante atentar para alguns dados importantes:
A. Haverá a presença de um sujeito-de-enunciação sobre um objeto-de-enunciação. Haverá, como a estudiosa nomeia em suas aplicações sobre os textos, um polo-sujeito relacionado a um polo-objeto. Ou seja, um poema lírico é experimentado como o enunciado de um sujeito-de-enunciação (o tão discutido eu lírico).
B. Se o princípio estrutural do lírico é um sujeito-de-enunciação enunciando sobre um objeto (como enunciado de realidade), esse gênero não pode ser comparado com os gêneros épico e dramático (não constituídos por um sujeito-de-enunciação). Seu lugar na criação literária se situaria no sistema enunciador da linguagem.
Aceitos esses elementos como formadores do gênero lírico – enunciado de um sujeito sobre um objeto –, tal qual os outros enunciados de realidade, certas particularidades específicas desse gênero, porém, devem ser observadas:
. Mesmo um título de poema, indicando referência objetiva, não significa que as enunciações do poema visem o objeto.
. E o seu inverso: em toda enunciação lírica, se conserva uma referência objetiva: o objeto não desaparece, mesmo não sendo mais o alvo prático da enunciação, mesmo não sendo inteligível em sua substância real. O objeto permanece ponto de referência da enunciação lírica, não por seu valor próprio, mas como núcleo para ser produzida a associação de sentidos.
. Outro dado fundamental: a enunciação, no lírico, pode se libertar do relacionamento real com o objeto, parcial ou quase totalmente, para voltar a si mesma, ao polo-sujeito. Retira-se para o que Hamburguer chama de “contexto sem compromisso de seu poema”, libertando a enunciação de qualquer obrigação para com a realidade objetiva.
. O eu lírico (o sujeito-de-enunciação) tem o poder de formar uma enunciação que não vise o objeto ou o real, mas não tem o poder de eliminar-se como sujeito autêntico, real, dessa enunciação: o sujeito tem influência sobre o polo-objeto, mas não sobre o polo-sujeito. O objeto, o possível relacionamento com o real, pode ser transformado pelo sujeito. Porém o sujeito-de-enunciação não pode ser alterado.
Experimentamos, nesse caso, o poema lírico como o campo vivencial do sujeito-de-enunciação, pois o enunciado não visa o polo-objeto, mas atrai seu objeto para a esfera vivencial do sujeito e o transforma.
Então é importante enfatizar a diferença fundamental entre os gêneros;
1. A literatura ficcional é mimese da realidade, porque não é enunciado, é configuração, é “imitação”. É mimese, porque a realidade humana é o seu material. A criação literária ficcional – e aí também a dramática – transforma a realidade em não realidade, ela inventa a “realidade”. A realidade invencionada é idêntica à não realidade, à ficção. Tal mundo fictício não é o campo da experiência do autor, do narrador ou dramaturgo, mas o mundo de seres fictícios, que agem e falam por si.
2. A transformação realizada pelo sujeito-de-enunciação lírico no objeto de sua enunciação é diferente. Ele transforma a realidade objetiva em realidade subjetiva vivencial, mas que permanece como realidade (como essa afirmativa é fundamental para o que vem a seguir, foi colocada em negrito).
A teórica em questão passa, então, em seu livro já citado, a fazer a investigação de uma série de poemas sob os aspectos apresentados a respeito do gênero lírico. A presente postagem utilizará tais aspectos, igualmente, em poemas da literatura brasileira. Foram selecionados três poemas em que o objeto-de-enunciação é muito semelhante, o que facilita a comparação e ressalta os dados examinados com mais precisão, sob a visão da teoria ora estudada.
Madrugada na roça
Luiz Guimarães Junior
Dentro da sombra matinal os campos
Riem-se ao fresco pranto da Alvorada;
Sobre a planície verde e perfumada
Voa o bando dos tardos pirilampos…
O arrieiro, inda tonto de preguiça,
Desperta apenas. Ao bulir das matas
Vêm misturar-se o eco das cascatas
E os lentos dobres da primeira missa.
Sob o véu orvalhado, os olhos dela
Brilham fitando os meus; ao divisá-los
Cuido que Deus perdeu mais de uma estrela…
Rincham, pulando os nossos dois cavalos,
E, através da manhã cheirosa e bela,
Ouve-se o canto festival dos galos!
(ESTRADA, Osório Duque. Tesouro poético brasileiro. 2. ed. Rio de Janeiro. São Paulo. Belo Horizonte: Livraria Francisco Alves. Paulo de Azevedo & Cia., 1926, p. 205.)
A expressão “madrugada na roça”, que é justamente o polo-objeto do poema, elemento da realidade objetiva, aparece uma única vez no título, mas há logo uma clara referência a ele na primeira estrofe com o termo “Alvorada”. E, ao final do poema, a pessoa leitora não terá dúvida em reconhecer esse objeto, que vai, indiretamente, sendo construído por enunciações, também referidas à realidade, ao longo das estrofes: “sombra matinal”;“Voa o bando dos tardos pirilampos…”; “tonto de preguiça”;“Desperta”;“dobres da primeira missa”; “o véu orvalhado”; ”manhã cheirosa e bela”;“o canto festival dos galos”. Tais enunciações são todas clamente identificáveis com o polo-objeto (conteúdo), elementos da realidade. Se o “pranto” da Alvorada, no segundo verso, pode criar uma certa dúvida de sentido – o que o ligaria menos ao objeto do real e mais, como associação de sentido, ao polo-sujeito –, o termo “orvalhado”, na terceira estrofe, ligado a ele, desfaz a dúvida de interpretação.
Há, então, algumas reflexões, que precisam ser feitas. A produção de Luiz Guimarães Junior – e o poema em questão – pertence ao Estilo de Época nomeado como Romantismo e caracterizado pelo subjetivismo, como se sabe. Nas duas últimas estrofes, o uso dos pronomes “meus” e “nossos” e do verbo “cuido”, na primeira pessoa, garante a presença desse sujeito. No entanto a análise superficial dos elementos utilizados pelo sujeito-de-enunciação aponta para o fato de que a relação estabelecida com seu objeto-de-enunciação, elemento do real, a forma de lidar com ele e caracterizá-lo, se dá de uma forma bastante objetiva: as referências trazidas ao texto para configurar “madrugada na roça” são todas bastante conhecidas por serem elementos da realidade e tradicionalmente ligadas, sob a experiência de quem lê, ao objeto. Não são construções privativas do sujeito-de-enunciação do poema examinado.
O único momento mais subjetivo, ou seja, mais preso ao polo-sujeito, seria a terceira estrofe, quando os olhos da amada são comparados a estrelas (saliente-se ainda aqui que tal comparação já é uma associação de sentido de domínio geral). Porém, observe-se, a amada não é o polo-objeto do texto, mas a madrugada.
Madrugada
O canto dos galos rodeia a madrugada
de altas torres de música chorosa.
O canto dos galos sobe do mundo
ajudando a separação da noite e do dia.
É melancólico levar a lua para longe do horizonte,
e destruir da noite estrelada as últimas flores.
O canto dos galos incansáveis sustenta a hora indecisa.
Somente o esplendor da montanha ofusca as vozes
[que plangiam.
Por quem plangiam essas vozes vagarosas,
no vasto lamento, simultâneas e isoladas?
Pela noite – ainda inclinada para o ocidente em sono?
ou pelo sol – que arranca a terra ao convívio das estrelas?
(MEIRELES, Cecília. Flor de poemas. (Mestres da literatura brasileira e portuguesa. Rio de Janeiro. São Paulo: Record/Itay, 1983. p. 136)
No presente poema, o termo “madrugada” do título – polo-objeto do poema, elemento da realidade objetiva – só aparece outra única vez na primeira estrofe. Novamente, ao final do poema, quem faz a leitura não terá dúvida em reconhecer esse objeto, que, igualmente ao texto anterior, vai, indiretamente, sendo construído por enunciações ao longo das seis estrofes: “ separação da noite e do dia”; “levar a lua para longe do horizonte”; “hora indecisa” etc. Algumas dessas enunciações são bastante claras. Outras, porém, como caracteriza a própria estudiosa alemã, não formam conexão objetiva, isto é, não mantêm relação direta com o objeto, são algo diferentes do uso comum, por serem associações de sentido: “… destruir da noite estrelada as últimas flores” (grifo meu); “...ou pelo sol – que arranca a terra ao convívio das estrelas (observe-se a personificação do astro). Já podemos apontar o fato, referido pela autora, de que tais enunciações líricas não estão orientadas pelo objeto, elemento da realidade, estando presas ao polo-sujeito, são peculiares a ele.
No entanto a mesma intromissão de outro conteúdo do real do poema romântico anterior, “o canto dos galos” constitui-se, no poema de Cecília Meireles, um dado marcante a ser considerado como principal sinal, no poema da escritora, desse objeto do real “madrugada”. Se, no primeiro poema, o canto dos galos é caracterizado como um canto “festival”, comemoração do início de um novo dia, atributo geralmente aderido a esse elemento do real, ou seja, consequência natural do surgimento da “madrugada na roça”, no poema da escritora modernista, o canto dos galos passa a ser “música chorosa” – a associação de sentido evidencia uma clara mudança avaliativa por parte do sujeito-de-enunciação em relação ao do poema romântico – e aparece como causa – a mudança também está nitidamente focada na visão do sujeito em relação a esse objeto – para o fenômeno da madrugada: “O canto dos galos sobe do mundo/ajudando a separação da noite e do dia”.
Ao contrário do poema de Luiz Guimarães Junior, em Cecília, tal intromissão traz em si um paradoxo que se caracteriza por ser um traço do gênero lírico: trazido como objeto do real para ajudar a caracterizar o enunciado “madrugada”, descaracteriza-o como elemento do real, caracteriza-o como elemento lírico, por atraí-lo do polo-objeto para a esfera do polo-sujeito, fazendo com que a conexão direta ao objeto escape imperceptivelmente.
Então, a relação objetiva do canto dos galos, que ecoa pela madrugada, desfaz-se inteiramente, em proveito de uma relação subjetiva e improvável estabelecida pelo eu lírico. Pois “O canto dos galos” - separação da noite e do dia – metamorfoseia-se em “vozes que plangiam”, em “vozes vagarosas”, em “vasto lamento”.
A primeira estrofe já introduz uma enunciação – observe-se aqui de novo o aspecto de “causa”– inteiramente estranha ao polo-objeto principal “madrugada” e, por se organizar, através de conteúdos que não se harmonizam com o objeto real, são uma visão estritamente subjetiva desse sujeito-de-enunciação em seu polo-sujeito: “… rodeia a madrugada de altas torres de música chorosa.”
Assim, volta-se à questão do sujeito-de-enunciação: embora não detectável, no poema, por formas linguísticas específicas de primeira pessoa, como no poema anterior, sua presença, ao contrário do poema romântico, tradicionalmente definido como subjetivo, domina a natureza das enunciações, as escolhas linguísticas para referir-se aos dois objetos do real - “madrugada” e “canto dos galos” – subjetivando-os por meio de um processo que atrai as enunciações do polo-objeto – por estranhas ao real – para o universo do polo-sujeito. Todo o exame anterior comprova a presença e domínio da vivência de realidade desse sujeito-de-enunciação e comprova o poema como um enunciado de realidade.
Tecendo a manhã
Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito que um galo antes
e o lance a outro: e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.
2.
E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã), que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.
(MELO NETO, João Cabral de. Poesias completas – 1940-1965. 2. ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1975. )
Na criação de João Cabral, o elemento da realidade “madrugada”, dos dois textos anteriores, não aparece explicitado, mas pode ser identificado na ideia de processo sendo realizado com a forma nominal gerúndio em “tecendo” do título e do futuro em “precisará”: uma manhã é “tecida”, para usar o termo do sujeito-de-enunciação, durante a madrugada.
Outro aspecto da realidade presente no texto e que é ligado a “manhã” (madrugada) são os galos e seu canto, que agora é nomeado como “grito”. Observe-se que essa substituição (“festival” em Guimarães e "plangente" em Cecília) não é gratuita, mas valorativa também: esvazia-se todo o peso tradicional do som do galo como algo harmônico e poético – o dicionário Aulete digital define “grito” como “som agudo e estridente” – para algo contundente e que fere os ouvidos. Mais objetividade do que os outros?
De início, ao se fazer a leitura da primeira estrofe, percebe-se de imediato a supressão, por elipse, no segundo e quarto versos, do termo “lançou”. Na segunda estrofe, há um intenso jogo de palavras, por semelhança de som, como a preposição “entre” e o verbo “entrem”; o substantivo “tenda” e o verbo “entretendendo”; o substantivo “tecido” e o particípio “tecido”; uma quase aliteração através de “tela”, “todos”, “tenda”, “toldo”, “tecido”, o que cria – a par de um efeito espetacular, é verdade! – uma dificuldade na leitura, com consequente dificuldade de interpretação. Isso não é objetividade, como se discrimina a seguir.
No poema cabralino, como em Cecília, os galos e seus gritos são novamente agentes, são eles que “tecem a manhã”, num movimento voluntário de som entre todos eles. Se, na escritora, o canto choroso dos galos separa a noite do dia, isola a madrugada com altas torres, em Cabral a construção de uma tenda, de um toldo, de um balão luminoso, se dá pelo trabalho artesanal e coletivo dos galos. A visão de ambos, plangência na primeira e tessitura de um toldo que “plana livre de armação”, sobre a madrugada ou manhã, no outro, é eminentemente uma visão restritiva aos sujeitos-de-enunciação, que abandonando arbitrariamente as características de seu objeto-de-enunciação, exilando-se do polo-objeto, reorganizando conteúdos que não se relacionam com ele, refugiam-se em seu polo-sujeito. As “altas torres de música chorosa”, que rodeiam a madrugada, no segundo poema, equivalem aos “fios de sol de seus gritos” com que os galos tecem a manhã, no terceiro poema. Isso é a vivência de realidade desses eu líricos, é subjetividade. Não há conexão objetiva com os objetos, o que há são livres associações de sentido desses eu líricos.
1. Exame da tensão conceitual entre “criação literária” e “realidade”, sendo que “realidade” aparecerá apenas em seu sentido de confronto ou relação com a ficção (o modo criado e representado pela literatura narrativa – romance, conto etc – e dramática): a narração, que faz as personagens falarem por si, de maneira mimética, no sentido aristotélico (não incluindo o gênero lírico) .
2. Como estratégia, a teórica, que deseja estabelecer a estrutura da linguagem poética (referindo-se à da ficção e do drama), examina os critérios da linguagem não poética – a comprometida com a realidade –, ou seja, o sistema enunciador da linguagem. A noção de enunciado de realidade (e não da realidade em si, observemos) fornece o critério decisivo para a classificação dos gêneros literários.
3. O enunciado, desse sistema enunciador da linguagem, que sempre é um enunciado de realidade, é a enunciação de um sujeito-de-enunciação sobre um objeto-de-enunciação (o conteúdo). O caráter e a função do enunciado são reconhecidos pelo enfoque no sujeito-de-enunciação. Atenção: a presença desse sujeito-de-enunciação (expressão da realidade) indica que não há ali gênero narrativo ou dramático.
4. Mas a fórmula da enunciação (sujeito-de-enunciação sobre um objeto-de-enunciação) é válida para a criação lírica também. O gênero lírico seria um enunciado de realidade, portanto.
Como a atual postagem será sobre o gênero lírico, é importante atentar para alguns dados importantes:
A. Haverá a presença de um sujeito-de-enunciação sobre um objeto-de-enunciação. Haverá, como a estudiosa nomeia em suas aplicações sobre os textos, um polo-sujeito relacionado a um polo-objeto. Ou seja, um poema lírico é experimentado como o enunciado de um sujeito-de-enunciação (o tão discutido eu lírico).
B. Se o princípio estrutural do lírico é um sujeito-de-enunciação enunciando sobre um objeto (como enunciado de realidade), esse gênero não pode ser comparado com os gêneros épico e dramático (não constituídos por um sujeito-de-enunciação). Seu lugar na criação literária se situaria no sistema enunciador da linguagem.
Aceitos esses elementos como formadores do gênero lírico – enunciado de um sujeito sobre um objeto –, tal qual os outros enunciados de realidade, certas particularidades específicas desse gênero, porém, devem ser observadas:
. Mesmo um título de poema, indicando referência objetiva, não significa que as enunciações do poema visem o objeto.
. E o seu inverso: em toda enunciação lírica, se conserva uma referência objetiva: o objeto não desaparece, mesmo não sendo mais o alvo prático da enunciação, mesmo não sendo inteligível em sua substância real. O objeto permanece ponto de referência da enunciação lírica, não por seu valor próprio, mas como núcleo para ser produzida a associação de sentidos.
. Outro dado fundamental: a enunciação, no lírico, pode se libertar do relacionamento real com o objeto, parcial ou quase totalmente, para voltar a si mesma, ao polo-sujeito. Retira-se para o que Hamburguer chama de “contexto sem compromisso de seu poema”, libertando a enunciação de qualquer obrigação para com a realidade objetiva.
. O eu lírico (o sujeito-de-enunciação) tem o poder de formar uma enunciação que não vise o objeto ou o real, mas não tem o poder de eliminar-se como sujeito autêntico, real, dessa enunciação: o sujeito tem influência sobre o polo-objeto, mas não sobre o polo-sujeito. O objeto, o possível relacionamento com o real, pode ser transformado pelo sujeito. Porém o sujeito-de-enunciação não pode ser alterado.
Experimentamos, nesse caso, o poema lírico como o campo vivencial do sujeito-de-enunciação, pois o enunciado não visa o polo-objeto, mas atrai seu objeto para a esfera vivencial do sujeito e o transforma.
Então é importante enfatizar a diferença fundamental entre os gêneros;
1. A literatura ficcional é mimese da realidade, porque não é enunciado, é configuração, é “imitação”. É mimese, porque a realidade humana é o seu material. A criação literária ficcional – e aí também a dramática – transforma a realidade em não realidade, ela inventa a “realidade”. A realidade invencionada é idêntica à não realidade, à ficção. Tal mundo fictício não é o campo da experiência do autor, do narrador ou dramaturgo, mas o mundo de seres fictícios, que agem e falam por si.
2. A transformação realizada pelo sujeito-de-enunciação lírico no objeto de sua enunciação é diferente. Ele transforma a realidade objetiva em realidade subjetiva vivencial, mas que permanece como realidade (como essa afirmativa é fundamental para o que vem a seguir, foi colocada em negrito).
A teórica em questão passa, então, em seu livro já citado, a fazer a investigação de uma série de poemas sob os aspectos apresentados a respeito do gênero lírico. A presente postagem utilizará tais aspectos, igualmente, em poemas da literatura brasileira. Foram selecionados três poemas em que o objeto-de-enunciação é muito semelhante, o que facilita a comparação e ressalta os dados examinados com mais precisão, sob a visão da teoria ora estudada.
Madrugada na roça
Luiz Guimarães Junior
Dentro da sombra matinal os campos
Riem-se ao fresco pranto da Alvorada;
Sobre a planície verde e perfumada
Voa o bando dos tardos pirilampos…
O arrieiro, inda tonto de preguiça,
Desperta apenas. Ao bulir das matas
Vêm misturar-se o eco das cascatas
E os lentos dobres da primeira missa.
Sob o véu orvalhado, os olhos dela
Brilham fitando os meus; ao divisá-los
Cuido que Deus perdeu mais de uma estrela…
Rincham, pulando os nossos dois cavalos,
E, através da manhã cheirosa e bela,
Ouve-se o canto festival dos galos!
(ESTRADA, Osório Duque. Tesouro poético brasileiro. 2. ed. Rio de Janeiro. São Paulo. Belo Horizonte: Livraria Francisco Alves. Paulo de Azevedo & Cia., 1926, p. 205.)
A expressão “madrugada na roça”, que é justamente o polo-objeto do poema, elemento da realidade objetiva, aparece uma única vez no título, mas há logo uma clara referência a ele na primeira estrofe com o termo “Alvorada”. E, ao final do poema, a pessoa leitora não terá dúvida em reconhecer esse objeto, que vai, indiretamente, sendo construído por enunciações, também referidas à realidade, ao longo das estrofes: “sombra matinal”;“Voa o bando dos tardos pirilampos…”; “tonto de preguiça”;“Desperta”;“dobres da primeira missa”; “o véu orvalhado”; ”manhã cheirosa e bela”;“o canto festival dos galos”. Tais enunciações são todas clamente identificáveis com o polo-objeto (conteúdo), elementos da realidade. Se o “pranto” da Alvorada, no segundo verso, pode criar uma certa dúvida de sentido – o que o ligaria menos ao objeto do real e mais, como associação de sentido, ao polo-sujeito –, o termo “orvalhado”, na terceira estrofe, ligado a ele, desfaz a dúvida de interpretação.
Há, então, algumas reflexões, que precisam ser feitas. A produção de Luiz Guimarães Junior – e o poema em questão – pertence ao Estilo de Época nomeado como Romantismo e caracterizado pelo subjetivismo, como se sabe. Nas duas últimas estrofes, o uso dos pronomes “meus” e “nossos” e do verbo “cuido”, na primeira pessoa, garante a presença desse sujeito. No entanto a análise superficial dos elementos utilizados pelo sujeito-de-enunciação aponta para o fato de que a relação estabelecida com seu objeto-de-enunciação, elemento do real, a forma de lidar com ele e caracterizá-lo, se dá de uma forma bastante objetiva: as referências trazidas ao texto para configurar “madrugada na roça” são todas bastante conhecidas por serem elementos da realidade e tradicionalmente ligadas, sob a experiência de quem lê, ao objeto. Não são construções privativas do sujeito-de-enunciação do poema examinado.
O único momento mais subjetivo, ou seja, mais preso ao polo-sujeito, seria a terceira estrofe, quando os olhos da amada são comparados a estrelas (saliente-se ainda aqui que tal comparação já é uma associação de sentido de domínio geral). Porém, observe-se, a amada não é o polo-objeto do texto, mas a madrugada.
Madrugada
O canto dos galos rodeia a madrugada
de altas torres de música chorosa.
O canto dos galos sobe do mundo
ajudando a separação da noite e do dia.
É melancólico levar a lua para longe do horizonte,
e destruir da noite estrelada as últimas flores.
O canto dos galos incansáveis sustenta a hora indecisa.
Somente o esplendor da montanha ofusca as vozes
[que plangiam.
Por quem plangiam essas vozes vagarosas,
no vasto lamento, simultâneas e isoladas?
Pela noite – ainda inclinada para o ocidente em sono?
ou pelo sol – que arranca a terra ao convívio das estrelas?
(MEIRELES, Cecília. Flor de poemas. (Mestres da literatura brasileira e portuguesa. Rio de Janeiro. São Paulo: Record/Itay, 1983. p. 136)
No presente poema, o termo “madrugada” do título – polo-objeto do poema, elemento da realidade objetiva – só aparece outra única vez na primeira estrofe. Novamente, ao final do poema, quem faz a leitura não terá dúvida em reconhecer esse objeto, que, igualmente ao texto anterior, vai, indiretamente, sendo construído por enunciações ao longo das seis estrofes: “ separação da noite e do dia”; “levar a lua para longe do horizonte”; “hora indecisa” etc. Algumas dessas enunciações são bastante claras. Outras, porém, como caracteriza a própria estudiosa alemã, não formam conexão objetiva, isto é, não mantêm relação direta com o objeto, são algo diferentes do uso comum, por serem associações de sentido: “… destruir da noite estrelada as últimas flores” (grifo meu); “...ou pelo sol – que arranca a terra ao convívio das estrelas (observe-se a personificação do astro). Já podemos apontar o fato, referido pela autora, de que tais enunciações líricas não estão orientadas pelo objeto, elemento da realidade, estando presas ao polo-sujeito, são peculiares a ele.
No entanto a mesma intromissão de outro conteúdo do real do poema romântico anterior, “o canto dos galos” constitui-se, no poema de Cecília Meireles, um dado marcante a ser considerado como principal sinal, no poema da escritora, desse objeto do real “madrugada”. Se, no primeiro poema, o canto dos galos é caracterizado como um canto “festival”, comemoração do início de um novo dia, atributo geralmente aderido a esse elemento do real, ou seja, consequência natural do surgimento da “madrugada na roça”, no poema da escritora modernista, o canto dos galos passa a ser “música chorosa” – a associação de sentido evidencia uma clara mudança avaliativa por parte do sujeito-de-enunciação em relação ao do poema romântico – e aparece como causa – a mudança também está nitidamente focada na visão do sujeito em relação a esse objeto – para o fenômeno da madrugada: “O canto dos galos sobe do mundo/ajudando a separação da noite e do dia”.
Ao contrário do poema de Luiz Guimarães Junior, em Cecília, tal intromissão traz em si um paradoxo que se caracteriza por ser um traço do gênero lírico: trazido como objeto do real para ajudar a caracterizar o enunciado “madrugada”, descaracteriza-o como elemento do real, caracteriza-o como elemento lírico, por atraí-lo do polo-objeto para a esfera do polo-sujeito, fazendo com que a conexão direta ao objeto escape imperceptivelmente.
Então, a relação objetiva do canto dos galos, que ecoa pela madrugada, desfaz-se inteiramente, em proveito de uma relação subjetiva e improvável estabelecida pelo eu lírico. Pois “O canto dos galos” - separação da noite e do dia – metamorfoseia-se em “vozes que plangiam”, em “vozes vagarosas”, em “vasto lamento”.
A primeira estrofe já introduz uma enunciação – observe-se aqui de novo o aspecto de “causa”– inteiramente estranha ao polo-objeto principal “madrugada” e, por se organizar, através de conteúdos que não se harmonizam com o objeto real, são uma visão estritamente subjetiva desse sujeito-de-enunciação em seu polo-sujeito: “… rodeia a madrugada de altas torres de música chorosa.”
Assim, volta-se à questão do sujeito-de-enunciação: embora não detectável, no poema, por formas linguísticas específicas de primeira pessoa, como no poema anterior, sua presença, ao contrário do poema romântico, tradicionalmente definido como subjetivo, domina a natureza das enunciações, as escolhas linguísticas para referir-se aos dois objetos do real - “madrugada” e “canto dos galos” – subjetivando-os por meio de um processo que atrai as enunciações do polo-objeto – por estranhas ao real – para o universo do polo-sujeito. Todo o exame anterior comprova a presença e domínio da vivência de realidade desse sujeito-de-enunciação e comprova o poema como um enunciado de realidade.
Tecendo a manhã
Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito que um galo antes
e o lance a outro: e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.
2.
E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã), que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.
(MELO NETO, João Cabral de. Poesias completas – 1940-1965. 2. ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1975. )
Na criação de João Cabral, o elemento da realidade “madrugada”, dos dois textos anteriores, não aparece explicitado, mas pode ser identificado na ideia de processo sendo realizado com a forma nominal gerúndio em “tecendo” do título e do futuro em “precisará”: uma manhã é “tecida”, para usar o termo do sujeito-de-enunciação, durante a madrugada.
Outro aspecto da realidade presente no texto e que é ligado a “manhã” (madrugada) são os galos e seu canto, que agora é nomeado como “grito”. Observe-se que essa substituição (“festival” em Guimarães e "plangente" em Cecília) não é gratuita, mas valorativa também: esvazia-se todo o peso tradicional do som do galo como algo harmônico e poético – o dicionário Aulete digital define “grito” como “som agudo e estridente” – para algo contundente e que fere os ouvidos. Mais objetividade do que os outros?
De início, ao se fazer a leitura da primeira estrofe, percebe-se de imediato a supressão, por elipse, no segundo e quarto versos, do termo “lançou”. Na segunda estrofe, há um intenso jogo de palavras, por semelhança de som, como a preposição “entre” e o verbo “entrem”; o substantivo “tenda” e o verbo “entretendendo”; o substantivo “tecido” e o particípio “tecido”; uma quase aliteração através de “tela”, “todos”, “tenda”, “toldo”, “tecido”, o que cria – a par de um efeito espetacular, é verdade! – uma dificuldade na leitura, com consequente dificuldade de interpretação. Isso não é objetividade, como se discrimina a seguir.
No poema cabralino, como em Cecília, os galos e seus gritos são novamente agentes, são eles que “tecem a manhã”, num movimento voluntário de som entre todos eles. Se, na escritora, o canto choroso dos galos separa a noite do dia, isola a madrugada com altas torres, em Cabral a construção de uma tenda, de um toldo, de um balão luminoso, se dá pelo trabalho artesanal e coletivo dos galos. A visão de ambos, plangência na primeira e tessitura de um toldo que “plana livre de armação”, sobre a madrugada ou manhã, no outro, é eminentemente uma visão restritiva aos sujeitos-de-enunciação, que abandonando arbitrariamente as características de seu objeto-de-enunciação, exilando-se do polo-objeto, reorganizando conteúdos que não se relacionam com ele, refugiam-se em seu polo-sujeito. As “altas torres de música chorosa”, que rodeiam a madrugada, no segundo poema, equivalem aos “fios de sol de seus gritos” com que os galos tecem a manhã, no terceiro poema. Isso é a vivência de realidade desses eu líricos, é subjetividade. Não há conexão objetiva com os objetos, o que há são livres associações de sentido desses eu líricos.
E esse é um dado bastante interessante sobre a poética de Cabral - e novo, eu diria!-, pois a constante conclusão a que se chega sobre a poética de Cabral é, por tradição, inteiramente contrária à conclusão acima estabelecida, como se vê na análise de Benedito Nunes, em seu livro João Cabral de Melo Neto. (Coleção Petas Modernos do Brasil/1, Petrópolis: Ed. Vozes/Instituto Nacional do Livro, 1971),:
Nesse sentido, o racionalismo radical que o poeta proclama está bem de acordo com o tom impessoal de sua linguagem. Vem precisamente disso o que há nele de clássico, tomando-se a palavra como designativo do estilo de pensamento ou da atitude criadora que não se fundamenta na individualidade feita valor supremo. (grifo do autor. p. 18)
O estudo dos poemas “Tecendo a manhã”, que faz parte do livro Educação pela pedra, considerado uma poética racional e objetiva, e “Madrugada na roça”, do romântico Luiz Guimarães Junior – subjetividade em um; relativa objetividade, em outro –, sob o prisma da análise lógica de Käte Hamburguer sobre o gênero lírico, evidenciou aspectos desses dois poetas bastante diferentes dos repetidos de forma tradicional, o que revela possibilidades inimaginadas e perspectivas desconhecidas para o aprofundamento do estudo literário.
Gostaria de receber comentários dos visitantes. Saber quem são e os motivos que os trouxeram aqui.
sábado, 17 de setembro de 2016
sábado, 12 de março de 2016
Parte III - Os fenômenos fundamentais da Criação Literária
Eliane
F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais - Rio de
Janeiro)
Resumo das postagens anteriores sobre o pensamento de Käte Hamburguer:
1.
ENUNCIADO DE REALIDADE: A presença de um sujeito-de-enunciação
caracteriza um enunciado de realidade. Não é o conteúdo de
realidade que marca tal enunciado. Mesmo que se identifiquem
elementos “invencionados” ali, fantasiados, isso não
descaracteriza a realidade, porque o sujeito-de-enunciação é
sempre real.
2.
TEXTO FICCIONAL: É a presença de personagens em suas ações, em
suas próprias falas – a mimese aristotélica
–, que indica o texto ficcional. O narrado deixa de estar no campo
da experiência ou de vivência do sujeito-de-enunciação e passa
para o campo da vivência de personagens.
3.
Há aspectos linguísticos – nomeados “sintomas” pela escritora
–, que são identificados por ela e que estabelecem, então, a
“lógica” da criação literária – tese do livro estudado –,
os quais, dependendo de sua natureza, tanto mostram o enunciado de
realidade (a não ficção), como o contrário, o texto ficcional.
Nesta
postagem, serão mostrados os elementos que Käte Hamburguer aponta
para identificar um sujeito-de-enunciação e seu enunciado de
realidade X o texto de ficção, o que realmente interessa ao leitor.
Tal estudo foi direcionado aqui para textos de Literatura Brasileira
(ALMEIDA, Manuel Antônio. Memórias de um sargento de milícias.
Ed. Crítica de Cecília de Lara. Rio de Janeiro:livros Técnicos
e Científicos, 1978. p. 5) (biblioteca Universitária de literatura
brasileira: Série C, ficção, romance e conto; v. 2), acessíveis,
portanto, a todos os leitores brasileiros.
Texto
1
Uma
das quatro esquinas que formam as ruas do Ouvidor e da Quitanda,
cortando-se mutuamente, chamava-se nesse tempo – O canto dos
meirinhos –; e bem lhe assentava o nome, porque era aí o lugar
de encontro favorito de todos os indivíduos dessa classe (que gozava
então de não pequena consideração). Os meirinhos de hoje não são
mais do que a sombra caricata dos meirinhos do tempo do rei; esses
eram gente temível e temida, respeitável e respeitada; formavam um
dos extremos da formidável cadeia judiciária que envolvia todo o
Rio de Janeiro no tempo em que a demanda era entre nós um elemento
de vida: o extremo oposto eram os desembargadores. Ora, os extremos
se tocam, e estes, tocando-se fechavam o círculo dentro do qual se
passavam os terríveis combates das citações, provarás, razões
principais e finais, e todos esses trejeitos judiciais que se
chamavam o processo.
Daí
sua influência moral. (pág. 6)
Inicialmente,
observemos o dado curioso de que este
recorte
de romance apresenta a mesma estrutura linguístico-lógica que o
trecho da biografia
do
escultor Michelangelo Buonarroti, por
exemplo.
É construído
de tal modo que poderia ser proveniente de
um relato histórico. Se nos fosse apresentado esse segmento,
desligado do romance, compreenderíamos aquele local retratado como o
campo de experiência do sujeito relator, podendo ser esse
considerado um sujeito-de-enunciação teórico,
como
no
caso da
biografia de Michelangelo
Buonarroti.
Havendo no texto acima um sujeito-de-enunciação, estamos
no caso de um enunciado de realidade e
não de um texto
de ficção, segundo a autora em questão.
Se
lermos, porém, esse trecho, sabendo que é o começo de um romance,
supomos que a paisagem não faz parte do campo de experiência desse
e passa a ser cenário de outras figuras – as personagens
fictícias, as figuras de romance –, cuja entrada em cena
aguardamos.
Mas
o problema não é tão simples assim. Na verdade, enfim, esse
trecho, apesar de fazer parte de um romance, segundo os
critérios da teórica,
configura-se, sim, como um enunciado de realidade. Comecemos
observando o dêitico “aí” (linha 3), que marca uma localização
no espaço em oposição a um hipotético “aqui”, não
escrito, mas local de onde
fala o sujeito enunciador e que não se refere a personagens que
surgirão, mas a ele mesmo.
Examinemos
também os
tempos verbais – presentes (“formam”, “são”) e pretéritos
(“chamava”, “assentava”, “eram” etc) – e as expressões
temporais
“nesse tempo”, “de hoje”, “então”,
“do tempo do rei”: fica
bastante claro que as formas
temporais estão fixadas
em relação à experiência do
sujeito-de-enunciação: observe-se
a localização precisa da esquina de “hoje”
– tempo atual desse
sujeito e sua importância
relativamente à lembrança dele
ao que era no passado. O uso
das relações temporais está preso, estritamente, ao
conceito
descrito nas gramáticas: pretérito,
presente e passado são tempos estabelecidos por um sujeito.
Faz parte de um enunciado de
realidade, portanto, mesmo que a pessoa leitora já saiba que
entrarão, adiante, as personagens de uma ficção.
Texto
II
Mas
voltemos à esquina.
…......................................................................................................................
Entre
os termos que formavam essa equação meirinhal pregada na esquina
havia uma quantidade constante, era o Leonardo-Pataca.
…......................................................................................................................
Sua
história tem pouca coisa de notável. Fora Leonardo algibebe em
Lisboa, sua pátria; aborrecera-se porém do negócio, e viera ao
Brasil. Aqui chegando, não se sabe por proteção de quem, alcançou
o emprego de que o vemos empossado, e que exercia, como dissemos,
desde tempos remotos. Mas viera com ele no mesmo navio, não sei
fazer o que, uma certa Maria da hortaliça, quitandeira das praças
de Lisboa, saloia rechonchuda e bonitota. O Leonardo, fazendo-se-lhe
justiça, não era nesse tempo de sua mocidade mal apessoado, e
sobretudo maganão. Ao sair do Tejo, estando a Maria encostada à
borda do navio, o Leonardo fingiu que passava distraído por junto
dela, e com o ferrado sapatão assentou-lhe uma valente pisadela no
pé direito. A Maria, como se já esperasse por aquilo, sorriu-se
como envergonhada do gracejo, e deu-lhe também em ar de disfarce um
tremendo beliscão nas costas da mão esquerda. (Mesmo romance,
ainda pág. 6)
No
trecho, há muitos detalhes a serem observados. Várias expressões
ainda denunciam a presença daquele mesmo sujeito-de-enunciação
acima: “como dissemos”, “não sei fazer o que”, além do
advérbio “aqui” (X Lisboa), que demonstra, ainda sem sombra de
dúvidas, o local de onde se posiciona o sujeito narrador. A presença
desse sujeito, segundo o conceito expresso da estudiosa alemã, ainda
denuncia um enunciado de realidade, mesmo com fortes indícios da
presença do “invencionado”, do “fingido”. Seguindo a
conceituação aristotélica, a mimese ficcional só se
apresenta como tal, quando a personagem age, pensa, fala. Ainda não
seria o caso.
Mas
a atenção de quem lê já dispara, pois não se pode deixar de
observar o significado dos verbos “aborrecera-se” (l.7) e
“fingiu”, que são os chamados verbos de processos internos,
processos esses que uma pessoa de fora não tem conhecimento sobre
outra pessoa em um conteúdo de realidade, mas somente em narrativas
ficcionais. Esse é um “sintoma” ou aspecto linguístico-semântico
marcante, quanto à ficção, que faz parte do que a teórica vem
nomeando como “lógica” literária.
Outro
detalhe a ser anotado é o emprego dos verbos situacionais.
Käte Hamburguer chama a atenção para o fato de que, em um
enunciado de realidade, transcorrido no passado autêntico, tais
verbos, do tipo “sorrir”, “andar”, “deitar”, ou seja, de
significado extremamente momentâneo, são impossíveis de serem
usados. Eles não cabem em situações passadas reais. Registremos as
ações situacionais em “assentou-lhe uma valente pisadela no pé
direito”; “sorriu-se como envergonhada...”; “deu-lhe também
em ar de disfarce um tremendo beliscão...”. Só a narrativa
ficcional, como se vê, prevê e permite o uso largo de tais verbos.
Diz lá a autora:
Em
asserções sobre situações reais empregamos tais verbos de
situação no imperfeito somente com referência a situações
temporais próximas, porque designam uma situação concreta, ainda
visualizável e lembrada pelo enunciador. (p. 67)
Já
se pode perceber, desse modo, que os verbos no passado listados nos
dois casos deixam de ser tempos gramaticais, pois
não têm mais uma
ligação específica com o sujeito de enunciação, perdendo sua
função e capacidade marcadora do passado, para serem apenas
recursos ficcionais. Têm
ligação com as personagens. O
enunciado de realidade passa
a dar lugar ao texto narrativo ficcional. Os aspectos temporais
deixam de ser os gramaticais – reais,
autênticos –, ao se
esvaziarem
do
campo da vivência do sujeito-de-enunciação, porque a narrativa
entra no campo da experiência das personagens épicas,
que fazem a literatura narrativa.
Transcrevamos
alguns trechos das próprias palavras da estudiosa em seu citado
livro:
Pois
não tinha sido posto em discussão que o pretérito possa deixar de
ser, em algum lugar qualquer da manifestação verbal, a expressão
de acontecimentos passados. (p.46)
A
mudança de significação, porém, consiste em que o pretérito
perde a sua função gramatical, que é a de designar o passado.
(em itálico no livro, p. 46)
Pois
é somente a entrada em cena, ou seja, a expectativa da entrada da
eu-origo fictícia dos
personagens do romance, a razão
para o desaparecimento da eu-origo real
e concomitantemente, em consequência lógica, para a destituição
pelo pretérito da sua função de passado. (eu-origo é
um termo pelo qual a autora substitui, agumas vezes,
sujeito-de-enunciação ou sujeito/personagem por
questões epistemológicas.
p. 53)
(…)
o que significa do ponto de vista da Teoria Literária a noção de
personagem fictício e por que é apenas a sua entrada em cena que dá
à narração o caráter de não-realidade, tirando,
consequentemente, ao imperfeito o seu significado de passado. (p. 53)
Pois
nenhum texto pode esclarecer mais nitidamente que com este imperfeito
desaparece a eu-origo
do narrador, retira-se da narração, dando lugar às eu-origines
fictícias dos personagens.
A
expressão “não
era nesse tempo de sua mocidade” não
marca
um tempo em relação ao presente do sujeito-de-enunciação, porém
em relação ao próprio tempo da narrativa de Leonardo-Pataca,
personagem que já começa a
surgir
como ser agente, quando a mimese
aristotélica começa a ser introduzida. Na
mocidade, ou já na velhice, muitos
anos
depois,
Leonardo-Pataca continua a ser narrado no passado, que
mostra assim o enriquecimento ficcional conseguido com esse tempo
épico, em detrimento de sua temporalidade gramatical.
Daqui
em diante aparece o reverso da medalha. Segui-se a morte de D. Maria,
a do Leonardo-Pataca, e uma enfiada de acontecimentos tristes que
pouparemos aos leitores, fazendo aqui ponto final. (Memórias de
um sargento de milícias. p. 209)
Alguns
dados acima, secundados pela teoria da escritora alemã, devem ser
destacados e resumidos:
1.
Um enunciado de realidade é comandado por um sujeito-de-enunciação,
que é sempre real. Um “aqui” espacial real – lugar de onde
esse sujeito enuncia – e verbos com seus aspectos temporais também
reais, por acontecerem em relação a um “sujeito que fala”, como
conceituam as gramaticas, são exemplos linguísticos desse
sujeito-de-enunciação. Quando surge um pretérito, o tempo é
realmente pretérito.
2.
Há uma lógica da criação literária, da ficção, que é
construída – e identificada, posteriormente, – por aspectos
línguísticos, além da presença de personagens que agem e falam
por si mesmos:
a.
verbos situacionais e de processos internos – impossíveis de
serem usados em enunciados reais – que surgem na narrativa.
b.
verbos que estruturalmente estão no pretérito, mas são vazios de
sua intencionalidade temporal. São mecanismos narrativos. Fazem
parte do processo mimético aristotélico, ou seja, realizam-se na
presença das personagens que agem e falam.
O
estudo superficial feito aqui sobre toda a conceituação da “lógica”
literária, feita por Käte Hamburger, não substitui o mergulho em
seu livro. A intenção é apenas aguçar a curiosidade da/do visitante
e incentivá-la (lo) a estudos mais aprofundados, para enriquecimento da
pessoa leitora, chegando-se até à possibilidade de questionamentos
ou refutação dos argumentos e conclusões da teórica.
Possivelmente farei, em uma outra ocasião, um estudo sobre suas
concepções sobre a narrativa em primeira pessoa, interessantes e
inovadoras, sobre as quais tenho claras discordâncias.
Gostaria
de receber comentários dos visitantes. Saber quem são e os motivos
que os trouxeram aqui. Como não posso atender a esclarecimentos
pessoais pelo blogue, peço que estudantes de Letras, que desejarem,
postem seus e-mails, que não serão, claro, publicados.
quarta-feira, 20 de janeiro de 2016
Parte II - Os fenômenos fundamentais da Criação Literária
Eliane
F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais - Rio de
Janeiro)
Hoje
vou fazer a segunda postagem sobre a teoria de Käte Hamburger, a
estudiosa alemã sobre a qual se falou anteriormente. Serão
colocados aqui alguns pontos fundamentais anteriores, embora
resumidos, para que a/o visitante consiga acompanhar o que vem pela
frente.
1.
Ela segue o caminho da “lógica” da criação literária, em
detrimento da busca estética. Esse encontro da “lógica” se dá,
essencialmente, por aspectos linguísticos.
2.
Na
busca dessa lógica, focalizará
a
tensão conceitual entre “criação literária” (apenas
como literatura
narrativa
e
dramática) e
“realidade” (“realidade”
em seu sentido de confronto ou relação com a ficção).
3.
Ela segue, ainda, o pensamento aristotélico da mimesis (como
sinônimo de poiesis) como ficção em que a personagem surge
no texto através de suas próprias ações e de sua voz.
4.
Propõe que se estude e estabeleça a linguagem da criação
literária justamente pela diferença com a linguagem da realidade.
5.
Para
isso, vai pelo caminho inverso: examina
os critérios da linguagem não poética, ou
seja, da
linguagem comprometida com a realidade,
o sistema
enunciador da linguagem,
do
enunciado
de realidade.
xxx
Faremos,
então, a partir daqui um estudo do enunciado de realidade -
“ toda
enunciação é uma expressão da realidade”,
disse a escritora –, usando para isso textos publicados
aqui no Brasil,
para
maior entendimento da pessoa leitora brasileira e porque, em síntese,
é a nossa cultura
que nos interessa, afinal.
Para
tal,
no
entanto, é necessário que se entre
antes
em contato com
certos conceitos
estabelecidos pela estudiosa.
Enunciado
O
enunciado, que sempre é um enunciado de realidade, é a enunciação
de um sujeito-de-enunciação sobre um objeto-de-enunciação (o
conteúdo). O caráter e a função do enunciado são reconhecidos
pelo enfoque no sujeito-de-enunciação.
Enunciação
Apresenta-se
como a estrutura sujeito/objeto da língua. No enunciado “eu
enuncio algo” (enunciação em si): o enunciado é a enunciação
de um sujeito (eu) sobre o objeto (algo). A fórmula de enunciação,
segundo
a filósofa alemã,
não
é válida para a criação do gênero narrativo,
o
que é um dado
extremamente relevante como diferencial para se conhecer o genêro
narrativo.
Mas
ela
é
válida em todo o domínio restante da linguagem. A estudiosa também
reconhece a validez da fórmula da enunciação para a criação
lírica. Como afirma que toda enunciação é uma expressão da
realidade e fundamento para determinar a diferença “realidade” X
“criação literária”, já podemos inferir que Käte, então,
aparta o gênero lírico da criação literária e o aproxima da
realidade.
Guardemos
esses dois dados:
1.
A presença da
fórmula de enunciação (expressão
da realidade)
indica
que não
há ali
gênero narrativo.
2.
Há
validez da fórmula da enunciação (expressão da realidade) para a
criação lírica também.
O
gênero lírico estaria próximo da realidade e longe da criação
literária.
Objeto-de-enunciação
O
objeto é o conteúdo da enunciação
em qualquer modalidade proposicional (enunciativa/declarativa;
exclamativa; interrogativa etc).
Sujeito-de-enunciação:
Não
confundi-lo
com o eu-emissor
da comunicação que
se opõe a um “tu-receptor”, fora do texto
(eu-emissor/tu-receptor).
O sujeito-de-enunciação sempre enuncia exclusivamente em relação
a seu objeto-de-enunciação (sujeito/objeto).
O
sujeito-de-enunciação
é o elemento estrutural da estrutura da linguagem.
A
análise do sujeito-de-enunciação converte o enorme campo
temático-material dos enunciados em um sistema de três categorias:
a.
sujeito histórico – definido, individual. ex.: presente em uma
carta.
b.
sujeito teórico: geral, interindividual. ex.: responsávelpor uma
sentença matemática, texto científico ou lógico; texto teórico,
enfim.
c.sujeito
pragmático: quer algo referente ao objeto-de-enunciação. ex.:
pergunta, ordem, pedido.
Examinemos
o texto abaixo, retirado de Michelangelo,
da Coleção “Mestres da pintura”, da Abril Cultural, 1 ed, 1977,
página 6, e
que é identificado, no final do livro como de
José Arrabal Fernandes Filho, responsável
também pela pesquisa.
Nos
seus 89 anos de vivência no mundo das artes e no universo social
europeu, Michelangelo ascendeu a uma estatura jamais alcançada
anteriormente por qualquer outro artista. Viveu um tempo de gênios e
de obras grandiosas, numa época de grandes transformações nas
mentalidades, na economia e na política.
Objeto-de-enunciação:
biografia do escultor Michelangelo Buonarroti.
Sujeito-de-enunciação:
um biógrafo (sabe-se depois), que pesquisa e escreve o texto, por
encomenda da Coleção “Mestres da pintura”. É um
sujeito-de-enunciação geral, interindividual. Está de tal modo
indefinido, que seu nome nem aparece encabeçando o texto e só ao
final da publicação, por uma questão legal, provavelmente, é
citado. Tal sujeito-de-enunciação teórico, entretanto, apesar
dessa busca pela objetividade textual, por seu apagamento, também é
um sujeito real.
Começamos
a reconhecer que esse é um enunciado de realidade. Mas,
conforme nos ensina a teórica, não é a realidade do objeto o que
dá a esse enunciado seu caráter de realidade, senão a do
sujeito-de-enunciação, sujeito identificado como real.
Nesse
caso, como é um enunciado e de realidade, com um
sujeito-de-enunciação real, já podemos afirmar, com Käte
Hamburguer, que não é um texto de criação literária.
Para
enfatizar
e esclarecer isso
melhor, fazendo um paralelo com o que diz a
estudiosa,
devemos nos reportar ao filme documentário “Cinco vezes Chico –
o velho e sua gente”, recentemente lançado, em que vários
pescadores, seguindo o ritual da “mentira”, fazem relatos
flagrantemente imaginativos e
grandiosos,
para delícia dos espectadores. Pois
bem, esses relatos, ao contrário do texto
lido
acima, embora tenha
objetos-de-enunciação
invencionados,
termo
da própria escritora, são
enunciados de realidade, porque seus sujeitos-de-enunciação são
reais, eles são o fator decisivo. Como a escritora afirma na página
30:
A
enunciação sempre é real, porque o sujeito-de-enunciação é
real, porque, com outras palavras, uma enunciação somente pode ser
constituída por um sujeito-de-enunciação real, autêntico.
É
somente com o esclarecimento da noção de realidade concernente ao
sujeito-de-enunciação que se pode iluminar a estrutura do enunciado
de realidade (…).
Então,
invencionado ou real, não é o objeto o marcador do enunciado, mas o
sujeito-de-enunciação.
No
prefácio de Manuel Bandeira a
Cartas
a Manuel Bandeira,
de Mário de Andrade, provavelmente
livro póstumo, da Ediouro, Coleção Prestígio (sem indicação de
data ou edição), diz o poeta:
Tive
com Mário de Andrade uma correspondência epistolar que se iniciou
em 1922 e se prolongou sem interrupção até a sua morte. Mário
escreveu milhares de cartas. Nunca deixou carta sem resposta. Creio,
no entanto, que as de nossa correspondência têm importância
especial, porque comigo ele se abria em toda a confiança, de sorte
que estas cartas valem por um retrato de corpo inteiro, absolutamente
fiel. (p. 13)
Aqui
também temos um enunciado de realidade, cujo objeto-de-enunciação
são as cartas do escritor modernista Mário de Andrade e um pouco de
sua personalidade. Mas, continuemos a entender que,
o
que faz esse compromisso com a realidade, é a enunciação de um
sujeito real, aqui classificável como sujeito histórico, porque
definido, individual. Notemos a presença dos verbos e pronomes de
primeira pessoa, ali,
personalíssimos.
Como
diz Käte Hamburger, na página 34: “o
que foi enunciado é o campo da experiência ou de vivência do
sujeito-de-enunciação.”
A
próxima postagem irá analisar, finalmente, textos narrativos,
ficcionais. Confrontando-os com os argumentos caracterizadores do
enunciado (de realidade), ressaltar e definir a “lógica” da
criação literária.
Gostaria
de receber comentários dos visitantes. Saber quem são e os motivos
que os trouxeram aqui. Como não posso atender a esclarecimentos
pessoais pelo blogue, peço que estudantes de Letras, que desejarem,
postem seus e-mails, que não serão, claro, publicados.
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