Pesquisar este blog

domingo, 9 de janeiro de 2011

Poesia: o paradoxo da linguagem

Eliane F.C.Lima

Tenho usado o interessante livro da Doutora em Ciência da Literatura Maria Antonieta J. O. Borba, Tópicos de teoria para a investigação do discurso literário, de 2004, editado pela 7Letras, como instrumento de consulta em meu trabalho de análise literária. Mas há, pelo menos, nesse livro, uma afirmativa da qual discordo, em relação a um poema de Manuel Bandeira, transcrito após a citação abaixo, afirmativa e poema os quais usarei como tema de minha discussão.
A afirmativa:

No caso dos versos de Bandeira, nada impediria a classificação como língua padrão segundo as normas formalistas, não fosse o espaço em que primeiramente apareceram e o nome que os assina. Em outras palavras, nada impediria que fizessem parte de um contexto pragmático. (BORBA, 2004, p. 37)

O poema

Poema tirado de uma notícia de jornal

Manuel Bandeira

João Gostoso era carregador de feira livre e morava no morro da Babilônia num
[barracão sem número

Uma noite ele chegou ao bar Vinte de [Novembro
Bebeu
Cantou
Dançou
Depois se atirou na Lagoa Rodrigo de Freitas e [morreu afogado
(Libertinagem - 1930)

Devemos observar que os termos “língua padrão”, “normas formalistas”, “contexto pragmático”, usados no texto da especialista para caracterizar o poema de Bandeira, nos sugerem um texto apenas comunicativo, denotativo, preso a uma realidade concreta e extratextual, ao referente externo, em suma, o que é sugerido pela expressão “uma notícia de jornal” do título do texto, essa, se realmente existiu como ponto de partida da criação, sem dúvida, com tais características. Entretanto é preciso se começar a desconfiar do puramente literal, visto que “poema tirado” nos induz a “poema criado a partir de”, ou seja, um elemento linguístico totalmente diferente.
Vamos caminhar pela forma do poema e suas consequências significativas e líricas, cuidadosamente escolhidas e que anulam qualquer suposição de vinculação à denotação de um texto de comunicação.
A primeira estrofe do poema remete a uma notícia e, intencionalmente, repete-lhe certos termos tradicionais, como o “barracão sem número”. E toda ela já traz o leitor para uma situação de pobreza e, talvez, desamparo: um sujeito poético de quem não se cita o nome oficial – um texto de jornal daria esse detalhe fundamental –, sem endereço exato, o que sempre é um parâmetro social e moral.
Essa incerteza social e psicológica, reforçada pelo nome popular daquele ser poético – João Gostoso – , e traduzida no não número da moradia, no entanto, contrasta, para o leitor, com a precisão do nome do bar “Vinte de Novembro”, que inicia a estrofe seguinte, e ressalta a importância de um espaço físico em detrimento de uma individualidade humana.
Observe-se, ainda, que a expressão “uma noite”, começa a anular qualquer ligação possível com a precisão da notícia midiática, que se valeria de termos exatos, tipo “na noite de segunda-feira”, “na noite de 13 de outubro”, por exemplo. As circunstâncias reais são assim esvaziadas em proveito das circunstâncias emocionais, sentimentais, enfim, que levaram João Gostoso ao bar. A realidade concreta é abandonada e, em seu lugar, surge uma realidade interna ao texto, poetizada.
Os três versos seguintes chamam a atenção pela exiguidade do tamanho – uma palavra só para cada um – em contraste com os versos anteriores e o posterior. Colocados um abaixo do outro, esses vocábulos dão um ritmo marcado de tambor, ao mesmo tempo que aceleram a leitura do poema.
Além desse aspecto gritantemente sonoro, há que se atentar para a camada significativa desses verbos: bebeu, cantou, dançou. Juntos, trazem em si um efeito de comemoração. Será essa a intenção do resultado musical introduzido pela sequência dos três versos?
Um sentido inverso, “um resultado de desespero”, um outro leitor poderá identificar, atento ao significado de desejo de alienação psíquica, implícito na palavra “bebeu”, relacionada a “bar”, o que reforçaria a disposição vertical desses três mesmos termos/ações. Será essa, afinal, a sensação sugerida pelo som musical introduzido pela sequência dos três versos, agora de forma contrária? Já não mais festa, mas toque dramaticamente fúnebre de premonição e suspense pelo final? Ou os dois estratos significativos, antagônicos e paradoxais, se superpõem, num movimento de negação e atração?
Essa irresolução em que se acha o leitor – alegria ou desespero – se prolonga no gesto final do sujeito textual. E ela é o grande trunfo desse texto, é sobre ela que está construída sua dimensão lírica.
Não há nada de “normas formalistas” ou “contexto pragmático” nesse texto, negados por aquela indecisão citada acima, que, valendo-se da camada aparentemente “padrão da língua”, subverte-a, dobra-a e a submete ao engenho poético.

Estou também em Conto-gotas (link), Poema Vivo (link), Debates Culturais, onde passo, agora a publicar alguns artigos, bastando um clique, na lista "Colunistas", à direita, em Eliane Lima (link) e Recanto das Letras (aqui).

4 comentários:

ju rigoni disse...

Só posso concordar com tudo que você brilhantemente destaca, mas em minha interpretação viajo, - dou tratos à bola diante de escolhas tais como "carregador de feira livre" e principalmente de "morro da Babilônia".

O estilo direto, simples, do Bandeira muitas vezes me confundiu, e precisei de no mínimo quarenta dias no deserto para tentar, só tentar, decifrar alguns de seus escritos que, à primeira vista pareciam dizer muito menos do que realmente diziam. Simples, direto, - mas precioso.

No mais, sendo a notícia o resultado de uma coleta de dados que leva em consideração uma fórmula pré-determinada (quem, o quê, quando, onde, como, - e quando possível - por que) não há nenhuma dúvida de que você tem toda razão.

Sempre aprendo com você, mestra! Um beijo e inté!

Marise Ribeiro disse...

Eliane, na minha humilde visão, Bandeira pintou um quadro do cotidiano com as tintas da poesia.
Quando fazia os meus "Bom-Dia com Poesias" em meus grupos de poesia, eu selecionava um poeta, acrescentava uma resumida biografia e alguns poemas do autor em foco.
Na ocasião em que fiz a seleção dos textos de Bandeira, encontrei este poema e ele vinha acompanhado de um texto imaginário, como exemplo da notícia que poderia ter suscitado o poema. Não salvei o endereço do estudo, mas salvei o texto e o poema, e o coloco aqui a título de ilustração.

... O carregador de feira livre, João Batista de Almeida, conhecido como João Gostoso, morreu afogado, ontem, na Lagoa Rodrigo de Freitas.
O afogamento aconteceu à noite, mas o corpo só foi encontrado hoje pela manhã, por José Fernandes, feirante que estivera com o carregador na noite do acidente, num bar, onde ambos beberam algumas cervejas. "Ao sair do boteco, João estava cantando e dançando com grande alegria",
diz José Fernandes. Ninguém sabe ainda o motivo da tragédia.

Parabéns pela brilhante análise!
Beijos,
Marise

Vanessa Souza disse...

Vou favoritar teu blog e olhar com um tempo merecido - para meu deleite.
Abraço!

Anônimo disse...

Muito bom !! Obrigado meu ajudou bastante com atividades para casa!