Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais - RJ)
Para começar de forma radical o novo ano, vamos falar da escritora Branca Maria de Paula, que é mineira de Aimorés. Sua vida literária tem sido marcada pelas premiações, que tem recebido.
É graduada, porém, em Filosofia, tendo se especializado em Filosofia Contemporânea. Mas tem diversas atividades em outras áreas da cultura, tendo trabalhado no jornal Minas Gerais na parte literária e como fotógrafa, outra atividade sua. No cinema, tem participações como roteirista e corroteirista.
Na literatura, estreou em 1978, recebendo um prêmio na prestigiada revista “Status”, da época, embora seu conto - “Fundo Infinito” -, bem como o de Dalton Trevisan e Rubem Fonseca, tenha sido proibido e só publicado no ano seguinte, junto com os dos outros dois, em um encarte separado da revista. O texto deu nome a seu livro em 2005.
A escritora tem uma produção na literatura de poesia e uma bastante fecunda na literatura infanto-juvenil.
Se é mais divulgada sua ficção de feição erótica – a produção de uma mulher nesse campo, gera sempre curiosidade e um certo frisson, num mundo de predomínio de homens e que reserva a si essa parte da natureza humana –, não é apenas sob a sensualidade que são erigidos seus textos. E a linguagem, a forma de estruturar a narrativa, um não compromisso com a realidade palpável dão também um caráter peculiar aos contos de apelo ao carnal ou não. Vamos a alguns
Duas maneiras de ser feliz
Branca Maria de Paula
Esquizofrenizou-se às seis horas da tarde ao som da Ave-Maria, quando uns anjos lhe disseram que largasse tudo e fosse pro convento seduzir a pequena Flor-de-Liz, enquanto outros aconselharam que ela se dirigisse imediatamente ao shopping mais próximo e comprasse lingerie de cor vermelha – aquela com abertura coincidente com as aberturas de nascimento – e subisse lá pros altos da Avenida Afonso Pena que aí sim, ela estaria perto do céu.
Então Marilene deu dois passos pra frente, dois pra trás e ficou paralisada, ouvindo as vozes cada vez mais perto.
O enforcado
Branca Maria de Paula
A rua sobe em curvas pela montanha, em busca de ar fresco e horizontes abertos. Procura uma paisagem singular, distante dos prédios espremidos no miolo da cidade.
Cheia de flor e passarinho, a rua transpira sossego. Alguns gatos pulam de quintal em quintal, desafiando os muros altos.
A brisa da manhã sopra um friozinho bobo, que é melhor ignorar. Mesmo assim, o pé de madressilva estremece.
Um cão raivoso assusta os colegiais, que passam de mochila às costas.
Ninguém vê o corpo que oscila, na varanda da frente do moderno sobrado.
A deusa
Branca Maria de Paula
Comeu-o com muito gosto, estalando a língua e gemendo de prazer. Mas não o fez de maneira selvagem. Ao contrário, foi bastante cortês.
Comeu-o aos poucos, com requinte e sabedoria. Dispôs igualmente de todas as partes, sem rejeitar nenhum ossinho, por miúdo que fosse. Aproveitou tudo tudo, inclusive os dedos dos pés.
Sugou primeiro os lábios carnudos, suspirando delicado.
Quando mordiscava o lombo, gemeu alto. Ao chupar a coxa, quase perdeu a compostura.
Perdeu a compostura ao lamber as partes tenras. Sacrificou-o em grande estilo, arrancando-lhe as vísceras sem sombra de culpa ou tardio remorso. Mas o momento de gozo ela viveu ao devorar-lhe a cabeça.
Ele perdeu a pele, as carnes, ficou nu por fora e por dentro. E ela não teve dó. Arrebatara seu coração. Enfim.
O salvador
Branca Maria de Paula
Então ele me tocou e eu fiquei curada.
O véu da cegueira se rasgou e eu vi: o tisnado da pele, o veludo dos olhos. A saturação do melado: rapadura batida e rebatida, em calor absoluto. Os lábios exatos — café claro e duas pitadas de chocolate.
Lembro antílopes e tigres e esquilos.
Meu sorriso rompe o gelo, já não dói.
Meus membros vencem a crosta de gesso, já não sou uma estátua.
Abro as vidraças.
Ensaio passos de uma nova dança, ouvindo uma música que nem mesmo sei se existe.
Porque ele me assiste*.
* O verbo “assistir”, aqui, significa “acompanhar (alguém) na qualidade de ajudante ou assessor.”, conforme o dicionário Aulete digital.
Golpe de naja
Branca Maria de Paula
Eu nem perguntaria o nome dele.
Iria para um canto qualquer, um vão de escada e, na pressa, talvez fizesse em pedaços a camisa azul.
Minhas mãos aflitas procurariam o caminho e abririam o zíper enquanto eu esfregaria minhas tetas no corpo trêmulo e meteria a perna atrevida entre as pernas do homem, revolucionando os quadris.
Era o que eu pensava naquele carnaval, sentada com os outros em torno da imensa távola redonda, enquanto o macho ao lado, um perfeito estranho, corria a mão pela minha coxa e me lambia a cara com sua língua fogosa.
Não quis ver-lhe o rosto, não me virei, nada fiz. Apenas imaginava a cena e seus desdobramentos. O golpe de naja, o salto primitivo.
Então, num sobressalto, acordei.
No meio da palha
Branca Maria de Paula
Então ele me disse muito sério eu sou o lobo, mas eu não acreditei e fui logo chegando perto, chegando perto. E ele gritou não se aproxime, é perigoso e eu disse quem sabe sou eu, tem muito lobo falso por aí, deixa ver.
Mas eu sou o lobo sim, repetiu mostrando as garras.
Que nada, existe um monte de unhas postiças e rabos e orelhas, tudo de mentira. Quero ver de perto, respondi, sempre caminhando na direção dele e insistindo por favor, deixa ver se é de verdade, eu queria tanto encontrar um lobo – sabe como? – daquele que me comesse de roupa e tudo, de repente, entende? Assim, sem eu esperar. E que tivesse uns olhos grandes pra me enxergar de verdade, umas orelhas grandes pra me escutar de verdade e uma boca que pudesse me engolir inteira e uma língua que me lambesse toda como se eu fosse assim um pirulito e me derretesse como se eu fosse um sorvete até me deixar quentinha, molinha, sem conseguir fazer nada, nem mesmo gritar pedindo socorro, só gemesse baixinho na hora do susto. Um lobo assim vale a pena conhecer.
Que me esperasse atrás da moita e de mim fizesse gato e sapato, sem apelação.
Nem reclamar eu ia. Um lobo de braços grandes, pernas fortes, enorme, e que me colocasse na palma da mão. E que me mordesse sem dó, que me comesse sem piedade. Ah, isso anda tão difícil, nem sei se ainda acontece nos dias de hoje. O mundo mudou muito mesmo. Que me comesse aos bocados, soltando grunhidos de prazer pra floresta toda escutar e estremecer de inveja.
Fui falando assim, falando e me aproximando e notei que as orelhas dele tremiam, que o rabo murchou de repente e que baixou o focinho quando parei na frente dele. E também baixou as pálpebras, envergonhado, quando insisti em olhar ele nos olhos. Tentou ainda um gesto pra me deter. Abriu a boca, mas não conseguiu articular nenhum som. Deu foi um discreto passo pra trás, parecendo assustado.
Então resolvi mudar de tática. Estendi a mão e num gesto rápido arranquei-lhe as patas, as orelhas e o rabo. Comi aquele cordeirinho ali mesmo, no meio da palha, a poucos passos da casa da vovó.
xxxx
Quando da leitura, é interessante se atentar para o ponto de vista de mulher que os textos mantém, subvertendo, quase sempre a perspectiva tradicional de alguns temas: a clara inversão de valores do conto “No meio da palha” ou de “Uma deusa” – repare-se no verbo “comer” tão caro ao vocabulário masculino – inaugura um novo olhar sobre eles. Mais do que contos eróticos esses são contos de sublevação contra uma condição humana.
Obras individuais e de literatura para adultos
A mulher proibida – contos – 1980
Fundo infinito – contos eróticos - 2005
Para começar de forma radical o novo ano, vamos falar da escritora Branca Maria de Paula, que é mineira de Aimorés. Sua vida literária tem sido marcada pelas premiações, que tem recebido.
É graduada, porém, em Filosofia, tendo se especializado em Filosofia Contemporânea. Mas tem diversas atividades em outras áreas da cultura, tendo trabalhado no jornal Minas Gerais na parte literária e como fotógrafa, outra atividade sua. No cinema, tem participações como roteirista e corroteirista.
Na literatura, estreou em 1978, recebendo um prêmio na prestigiada revista “Status”, da época, embora seu conto - “Fundo Infinito” -, bem como o de Dalton Trevisan e Rubem Fonseca, tenha sido proibido e só publicado no ano seguinte, junto com os dos outros dois, em um encarte separado da revista. O texto deu nome a seu livro em 2005.
A escritora tem uma produção na literatura de poesia e uma bastante fecunda na literatura infanto-juvenil.
Se é mais divulgada sua ficção de feição erótica – a produção de uma mulher nesse campo, gera sempre curiosidade e um certo frisson, num mundo de predomínio de homens e que reserva a si essa parte da natureza humana –, não é apenas sob a sensualidade que são erigidos seus textos. E a linguagem, a forma de estruturar a narrativa, um não compromisso com a realidade palpável dão também um caráter peculiar aos contos de apelo ao carnal ou não. Vamos a alguns
Duas maneiras de ser feliz
Branca Maria de Paula
Esquizofrenizou-se às seis horas da tarde ao som da Ave-Maria, quando uns anjos lhe disseram que largasse tudo e fosse pro convento seduzir a pequena Flor-de-Liz, enquanto outros aconselharam que ela se dirigisse imediatamente ao shopping mais próximo e comprasse lingerie de cor vermelha – aquela com abertura coincidente com as aberturas de nascimento – e subisse lá pros altos da Avenida Afonso Pena que aí sim, ela estaria perto do céu.
Então Marilene deu dois passos pra frente, dois pra trás e ficou paralisada, ouvindo as vozes cada vez mais perto.
O enforcado
Branca Maria de Paula
A rua sobe em curvas pela montanha, em busca de ar fresco e horizontes abertos. Procura uma paisagem singular, distante dos prédios espremidos no miolo da cidade.
Cheia de flor e passarinho, a rua transpira sossego. Alguns gatos pulam de quintal em quintal, desafiando os muros altos.
A brisa da manhã sopra um friozinho bobo, que é melhor ignorar. Mesmo assim, o pé de madressilva estremece.
Um cão raivoso assusta os colegiais, que passam de mochila às costas.
Ninguém vê o corpo que oscila, na varanda da frente do moderno sobrado.
A deusa
Branca Maria de Paula
Comeu-o com muito gosto, estalando a língua e gemendo de prazer. Mas não o fez de maneira selvagem. Ao contrário, foi bastante cortês.
Comeu-o aos poucos, com requinte e sabedoria. Dispôs igualmente de todas as partes, sem rejeitar nenhum ossinho, por miúdo que fosse. Aproveitou tudo tudo, inclusive os dedos dos pés.
Sugou primeiro os lábios carnudos, suspirando delicado.
Quando mordiscava o lombo, gemeu alto. Ao chupar a coxa, quase perdeu a compostura.
Perdeu a compostura ao lamber as partes tenras. Sacrificou-o em grande estilo, arrancando-lhe as vísceras sem sombra de culpa ou tardio remorso. Mas o momento de gozo ela viveu ao devorar-lhe a cabeça.
Ele perdeu a pele, as carnes, ficou nu por fora e por dentro. E ela não teve dó. Arrebatara seu coração. Enfim.
O salvador
Branca Maria de Paula
Então ele me tocou e eu fiquei curada.
O véu da cegueira se rasgou e eu vi: o tisnado da pele, o veludo dos olhos. A saturação do melado: rapadura batida e rebatida, em calor absoluto. Os lábios exatos — café claro e duas pitadas de chocolate.
Lembro antílopes e tigres e esquilos.
Meu sorriso rompe o gelo, já não dói.
Meus membros vencem a crosta de gesso, já não sou uma estátua.
Abro as vidraças.
Ensaio passos de uma nova dança, ouvindo uma música que nem mesmo sei se existe.
Porque ele me assiste*.
* O verbo “assistir”, aqui, significa “acompanhar (alguém) na qualidade de ajudante ou assessor.”, conforme o dicionário Aulete digital.
Golpe de naja
Branca Maria de Paula
Eu nem perguntaria o nome dele.
Iria para um canto qualquer, um vão de escada e, na pressa, talvez fizesse em pedaços a camisa azul.
Minhas mãos aflitas procurariam o caminho e abririam o zíper enquanto eu esfregaria minhas tetas no corpo trêmulo e meteria a perna atrevida entre as pernas do homem, revolucionando os quadris.
Era o que eu pensava naquele carnaval, sentada com os outros em torno da imensa távola redonda, enquanto o macho ao lado, um perfeito estranho, corria a mão pela minha coxa e me lambia a cara com sua língua fogosa.
Não quis ver-lhe o rosto, não me virei, nada fiz. Apenas imaginava a cena e seus desdobramentos. O golpe de naja, o salto primitivo.
Então, num sobressalto, acordei.
No meio da palha
Branca Maria de Paula
Então ele me disse muito sério eu sou o lobo, mas eu não acreditei e fui logo chegando perto, chegando perto. E ele gritou não se aproxime, é perigoso e eu disse quem sabe sou eu, tem muito lobo falso por aí, deixa ver.
Mas eu sou o lobo sim, repetiu mostrando as garras.
Que nada, existe um monte de unhas postiças e rabos e orelhas, tudo de mentira. Quero ver de perto, respondi, sempre caminhando na direção dele e insistindo por favor, deixa ver se é de verdade, eu queria tanto encontrar um lobo – sabe como? – daquele que me comesse de roupa e tudo, de repente, entende? Assim, sem eu esperar. E que tivesse uns olhos grandes pra me enxergar de verdade, umas orelhas grandes pra me escutar de verdade e uma boca que pudesse me engolir inteira e uma língua que me lambesse toda como se eu fosse assim um pirulito e me derretesse como se eu fosse um sorvete até me deixar quentinha, molinha, sem conseguir fazer nada, nem mesmo gritar pedindo socorro, só gemesse baixinho na hora do susto. Um lobo assim vale a pena conhecer.
Que me esperasse atrás da moita e de mim fizesse gato e sapato, sem apelação.
Nem reclamar eu ia. Um lobo de braços grandes, pernas fortes, enorme, e que me colocasse na palma da mão. E que me mordesse sem dó, que me comesse sem piedade. Ah, isso anda tão difícil, nem sei se ainda acontece nos dias de hoje. O mundo mudou muito mesmo. Que me comesse aos bocados, soltando grunhidos de prazer pra floresta toda escutar e estremecer de inveja.
Fui falando assim, falando e me aproximando e notei que as orelhas dele tremiam, que o rabo murchou de repente e que baixou o focinho quando parei na frente dele. E também baixou as pálpebras, envergonhado, quando insisti em olhar ele nos olhos. Tentou ainda um gesto pra me deter. Abriu a boca, mas não conseguiu articular nenhum som. Deu foi um discreto passo pra trás, parecendo assustado.
Então resolvi mudar de tática. Estendi a mão e num gesto rápido arranquei-lhe as patas, as orelhas e o rabo. Comi aquele cordeirinho ali mesmo, no meio da palha, a poucos passos da casa da vovó.
xxxx
Quando da leitura, é interessante se atentar para o ponto de vista de mulher que os textos mantém, subvertendo, quase sempre a perspectiva tradicional de alguns temas: a clara inversão de valores do conto “No meio da palha” ou de “Uma deusa” – repare-se no verbo “comer” tão caro ao vocabulário masculino – inaugura um novo olhar sobre eles. Mais do que contos eróticos esses são contos de sublevação contra uma condição humana.
Obras individuais e de literatura para adultos
A mulher proibida – contos – 1980
Fundo infinito – contos eróticos - 2005
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