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domingo, 23 de janeiro de 2011

A complexidade do simples - Literatura, já.

Nydia Bonetti (Piracaia SP/1958) é engenheira civil e poeta e se dedica, atualmente, ao projeto do seu primeiro livro. Publica seus trabalhos no OVERMUNDO (link) e tem textos publicados na “Revista ZUNÁI” (link), “Germina Literatura” (link), “Cronópios” (link) e outras mídias eletrônicas, segundo suas próprias palavras. Bloga no Longitudes (link), espaço através do qual entrou como seguidora de meu blogue Poema Vivo. Fui até lá para conhecer minha visitante e tive uma das mais gratas surpresas: encontrei uma poeta que eu, imperdoavelmante, ainda não conhecia. Tenho tido, frequentemente, essas surpresas agradáveis nessa Internet. Nesse mundo pós-moderno e louco, felizmente, porém, uma especialista em literatura, como sou, tem a oportunidade de se reciclar quase em tempo real.
Comprovei, mais uma vez, que ser poeta não é profissão, não é atividade, não é passatempo: é destino. O poeta nasce, assim, assinalado. E, mesmo que escolha qualquer profissão outra, não se livra desse sinal, que o seguirá até o fim. O poema abaixo já começa comprovando o que digo.

Solares

Nydia Bonetti

outra vez
me ronda a poesia

agora é assim

quase uma sombra
colada em mim

não

ela é o sol
eu,
a sombra


O material que Nydia Bonetti utiliza, em um primeiro momento, em seu olhar indagativo sobre o mundo, são as coisas comuns e simples que a envolvem externamente. Mas como, internamente, nada é simples e comum, a manufatura que se apresenta aos olhos do leitor é outra, abençoada pela subjetividade e emoção, que se simula equilíbrio e contenção – observar o último verso do poema "Risco". Identifico até um certo tom blasé, o que é conseguido pelo manusear de uma linguagem bastante cotidiana. Engano do leitor se não for bastante observador: no poema que se segue, jogando com a homofonia de “expiar/espiar” – ouso dizer que a maioria das pessoas toma um termo pelo outro, sem diferenciação –, no derradeiro verso, vários significados e atributos podem ser agregados ao termo “cordeiro”:
1.Seres sem ação e defesa, passivos, o que seria conseguido por “espiam” (observar, olhar, esperar, aguardar) – verificar que abutres e lobos percebem algo e se mantém longe -, que, embora não escrito, é trazido para o texto por sua homonímia com o termo presente.
2.Seres que são sempre utilizados para remir a culpa de outrem diante do assustador uivo da vida, o que se depreende do “expiam”, realmente explícito no texto.
3.Mas aquele mesmo “espiam” do item 1 poderia, trazer, paradoxalmente, a ideia de “procurar descobrir, com o fim de fazer danos” (Dicionário Aurélio, versão digital), o que marcaria “cordeiros” com uma malícia insuspeitada e inverteria a dinâmica do que se supõe à primeira vista, ou os tornaria cúmplices latentes daquele perigo ameaçador da vida. Dada a sutileza da grafia do verbo “expiam” – o termo tem uma entrada muito menos frequente na língua popular –, provavelmente os itens 1 e 3 têm uma garantia maior de entendimento, ainda que não fosse essa a intenção verdadeira da escritora ou que ela não suspeitasse do alcance do que disse. A Teoria da Recepção tem batido nessa tecla e, neste mesmo blogue (confira aqui), já fiz alusão a esse aspecto.


Expiação

Nydia Bonetti

I.

serpentes de barro
rios
de silêncio
rouca
a voz das águas
silencia

II.

ouve-se da vida
um uivo
lobos se esquivam
abutres sobrevoam
enquanto
cordeiros expiam


Mas vamos aos textos – preciso confessar que foi uma enorme dificuldade a escolha:

Risco

Nydia Bonetti

o grande risco do poema
é que ele é feito de giz

e não apaga dor

. . .

Nydia Bonetti

e se eu dissesse apenas
do que sei
e sinto

calava


Outro dia

Nydia Bonetti

a tarde dourada no campo de centeio
não diz das chuvas que virão
diz do sol
embora quase noite
diz do pão
embora as mãos vazias
diz de nós
na janela de outro dia
que já passou

Alma

Nydia Bonetti

a alma do mundo grita
no mormaço dos dias rasos
na escuridão
das noites infinitas
no abandono
das dores terminais
no corpo
do homem que habita
desolada
depois de gerações ainda
aprisionada
que da eternidade
a que almeja sabe
tão pouco quase
nada

Meu pé de não sei que

Nydia Bonetti

árvore do cerrado- cresceu comigo
rude e exótica
mas era minha
eu fui embora - ela não quis
ela não tinha pés
eu não tinha raiz

Nódoa

Nydia Bonetti

árvores do quintal da infância
revi vi
sumo nos olhos:
saudade é nódoa que não sai

Choro pitangas

Nydia Bonetti

preciso rir
chuvas e sóis
preciso rir
primaveras
preciso rir
flores se abrindo
perfume beija-flor

porque ainda
é inverno
não posso

me calo em frio
galho seco noite
choro pitangas
lágrima ácida dor
porém brilhante
vermelha doce
lágrima de esperar


Desejo ao visitante que se delicie neste dia de domingo.

Convido o visitante deste blogue a ir a Conto-gotas (por aqui), onde há um novo conto meu e a Poema Vivo (o caminho é esse).

Estou ainda em:
1.
Debates Culturais, onde passo, agora a publicar alguns artigos, bastando um clique, na lista "Colunistas", à direita, em Eliane Lima (link).
2
.
Recanto das Letras (aqui).
3. Portal Literal (aqui).
4. Alma de Poeta (aqui).

domingo, 9 de janeiro de 2011

Poesia: o paradoxo da linguagem

Eliane F.C.Lima

Tenho usado o interessante livro da Doutora em Ciência da Literatura Maria Antonieta J. O. Borba, Tópicos de teoria para a investigação do discurso literário, de 2004, editado pela 7Letras, como instrumento de consulta em meu trabalho de análise literária. Mas há, pelo menos, nesse livro, uma afirmativa da qual discordo, em relação a um poema de Manuel Bandeira, transcrito após a citação abaixo, afirmativa e poema os quais usarei como tema de minha discussão.
A afirmativa:

No caso dos versos de Bandeira, nada impediria a classificação como língua padrão segundo as normas formalistas, não fosse o espaço em que primeiramente apareceram e o nome que os assina. Em outras palavras, nada impediria que fizessem parte de um contexto pragmático. (BORBA, 2004, p. 37)

O poema

Poema tirado de uma notícia de jornal

Manuel Bandeira

João Gostoso era carregador de feira livre e morava no morro da Babilônia num
[barracão sem número

Uma noite ele chegou ao bar Vinte de [Novembro
Bebeu
Cantou
Dançou
Depois se atirou na Lagoa Rodrigo de Freitas e [morreu afogado
(Libertinagem - 1930)

Devemos observar que os termos “língua padrão”, “normas formalistas”, “contexto pragmático”, usados no texto da especialista para caracterizar o poema de Bandeira, nos sugerem um texto apenas comunicativo, denotativo, preso a uma realidade concreta e extratextual, ao referente externo, em suma, o que é sugerido pela expressão “uma notícia de jornal” do título do texto, essa, se realmente existiu como ponto de partida da criação, sem dúvida, com tais características. Entretanto é preciso se começar a desconfiar do puramente literal, visto que “poema tirado” nos induz a “poema criado a partir de”, ou seja, um elemento linguístico totalmente diferente.
Vamos caminhar pela forma do poema e suas consequências significativas e líricas, cuidadosamente escolhidas e que anulam qualquer suposição de vinculação à denotação de um texto de comunicação.
A primeira estrofe do poema remete a uma notícia e, intencionalmente, repete-lhe certos termos tradicionais, como o “barracão sem número”. E toda ela já traz o leitor para uma situação de pobreza e, talvez, desamparo: um sujeito poético de quem não se cita o nome oficial – um texto de jornal daria esse detalhe fundamental –, sem endereço exato, o que sempre é um parâmetro social e moral.
Essa incerteza social e psicológica, reforçada pelo nome popular daquele ser poético – João Gostoso – , e traduzida no não número da moradia, no entanto, contrasta, para o leitor, com a precisão do nome do bar “Vinte de Novembro”, que inicia a estrofe seguinte, e ressalta a importância de um espaço físico em detrimento de uma individualidade humana.
Observe-se, ainda, que a expressão “uma noite”, começa a anular qualquer ligação possível com a precisão da notícia midiática, que se valeria de termos exatos, tipo “na noite de segunda-feira”, “na noite de 13 de outubro”, por exemplo. As circunstâncias reais são assim esvaziadas em proveito das circunstâncias emocionais, sentimentais, enfim, que levaram João Gostoso ao bar. A realidade concreta é abandonada e, em seu lugar, surge uma realidade interna ao texto, poetizada.
Os três versos seguintes chamam a atenção pela exiguidade do tamanho – uma palavra só para cada um – em contraste com os versos anteriores e o posterior. Colocados um abaixo do outro, esses vocábulos dão um ritmo marcado de tambor, ao mesmo tempo que aceleram a leitura do poema.
Além desse aspecto gritantemente sonoro, há que se atentar para a camada significativa desses verbos: bebeu, cantou, dançou. Juntos, trazem em si um efeito de comemoração. Será essa a intenção do resultado musical introduzido pela sequência dos três versos?
Um sentido inverso, “um resultado de desespero”, um outro leitor poderá identificar, atento ao significado de desejo de alienação psíquica, implícito na palavra “bebeu”, relacionada a “bar”, o que reforçaria a disposição vertical desses três mesmos termos/ações. Será essa, afinal, a sensação sugerida pelo som musical introduzido pela sequência dos três versos, agora de forma contrária? Já não mais festa, mas toque dramaticamente fúnebre de premonição e suspense pelo final? Ou os dois estratos significativos, antagônicos e paradoxais, se superpõem, num movimento de negação e atração?
Essa irresolução em que se acha o leitor – alegria ou desespero – se prolonga no gesto final do sujeito textual. E ela é o grande trunfo desse texto, é sobre ela que está construída sua dimensão lírica.
Não há nada de “normas formalistas” ou “contexto pragmático” nesse texto, negados por aquela indecisão citada acima, que, valendo-se da camada aparentemente “padrão da língua”, subverte-a, dobra-a e a submete ao engenho poético.

Estou também em Conto-gotas (link), Poema Vivo (link), Debates Culturais, onde passo, agora a publicar alguns artigos, bastando um clique, na lista "Colunistas", à direita, em Eliane Lima (link) e Recanto das Letras (aqui).