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domingo, 3 de fevereiro de 2013

Ficcionalidade: a interseção de mundos


Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais - RJ)

A conhecidíssima escritora Marina Colasanti (1937) nasceu em Eritreia, uma, então, colônia italiana na África. Viveu, posteriormente, na Itália, durante onze anos, findos os quais sua família emigrou para o Brasil. Suas primeiras experiências com a arte foram com a pintura, tendo participado de várias exposições e, só mais tarde, se reportando para a literatura.
Tem uma obra extensa. Publicou 33 livros de contos, poesia, prosa, literatura infantil e infanto-juvenil, como o conto a seguir. Já ganhou várias vezes o prêmio Jabuti, como o de poesia por Rota de colisão (1993 - poemas) e, em 2010, por Passageria em trânsito. São bastante conhecidos seus livros Uma ideia toda azul (1978 - contos)  e  Eu sei, mas não devia (1995 – crônicas). Para maiores informações remeto ao link .

Antes que chegue a manhã

Marina Colasanti

Acabada a sopa de nabos, um ferreiro cochilou por instantes junto ao fogo, depois foi deitar-se ao lado da esposa, soprou a vela e adormeceu.
Sonhou que subia em uma carruagem. Os cavalos galopavam, galopavam, e embora a noite fosse interminável, logo chegaram a uma cidade e pararam diante de uma edificação nobre e grandiosa. O ferreiro saltou, atravessou o grande umbral, subiu a escadaria de pedra. Seus pés conheciam cada degrau. Chegando ao alto, abriu a segunda de muitas portas de uma longa galeria e, apressado para não ser colhido pela manhã, despiu-se e meteu-se entre os lençóis na grande cama de dossel vermelho. O dossel ondulou de leve, sua cabeça despencou no sono.
Acordou com a primeira luz da manhã varando a janela e cortinado. Suas roupas estavam na cadeira. Vestiu-se rapidamente, abriu a porta, desceu a escadaria, e entrou na carruagem.
Os cavalos galoparam, galoparam e embora o dia parecesse não ter fim, logo era noite e chegaram a uma aldeia. Pararam diante de uma casa. O ferreiro saltou, empurrou a porta que sua mão conhecia tão bem, sentou-se à mesa e começou a comer. Acabada a sopa de nabos, cochilou por alguns minutos junto ao fogo, depois foi deitar-se com a esposa, apagou a vela como quem apaga o dia, e entregou a cabeça ao travesseiro.
Lá fora, a carruagem esperava.
(do seu coração partido - 2009)

O texto se apresenta, numa primeira abordagem, como uma narrativa que se divide em duas partes: a primeira coincidiria com o parágrafo inicial e se caracterizaria por configurar o mundo real, embora ficcional. 
A partir do “Sonhou que”, no segundo parágrafo, a narrativa muda de rumo e envereda por uma atmosfera de sonho.
Com o início do terceiro parágrafo, levada pelo "acordou com a primeira luz da manhã", a pessoa leitora, em um primeiro momento, imagina o final desse mundo do inconsciente, mas, ao se ver diante da alusão à escadaria do sonho e da figura "carruagem", uma de suas principais marcas oníricas e de grande valor significativo para o texto, acaba imaginando que esse mundo especial, então, continua dominando a narrativa até o final do conto.
Ao entrar no trecho “Acabada a sopa de nabos” do quarto parágrafo, porém, a/o agente da leitura reconhece, a partir dali, os principais elementos do que supunha até então ser o mundo real, o mundo vígil da personagem “ferreiro”,  reconhecível no primeiro parágrafo, o que vai criando uma sensação de estranhamento – e de crescente dúvida –, visto estar inserido, agora, na sequência de sonho que vinha se desenvolvendo. 
O paradoxo chega a seu grau máximo, quando aquele símbolo onírico - “Lá fora, a carruagem esperava.”-, que parecia já ser parte significativa de um determinado percurso de leitura, o qual começava a ser supostamente desviado para o outro, fecha a sucessão, no último parágrafo, enredando quem recebe o texto num círculo vicioso e num furacão de possibilidades interpretativas.
De posse desse novo dado, a certeza de que a figura ferreiro está, no parágrafo que abre o texto, em um mundo real, a certeza de que aquele caminho de leitura deve ser aceito, se abala. A receptora/o receptor do texto, inconscientemente, refaz o início da leitura e se pergunta se não deve suspeitar ali também da presença não declarada do “Lá fora, a carruagem esperava.” 
Diversos textos de Marina Colasanti, como o conto transcrito, colocam a/o agente da leitura num terreno lábil, marcado pela incerteza, pela imbricação de várias trajetórias de leitura – por várias isotopias, como  são chamadas –, o que faz algumas/alguns analistas verem neles uma tendência ao fantástico, que se caracteriza pela hesitação entre um fato com uma explicação racional, do senso comum, e entre outro, que tem uma origem estranha às leis da natureza. Apesar da avaliação ser verdadeira para muitos deles, no texto em questão, diferentemente disso, a opção dessa/desse agente parece decidir a natureza do  conto.

Visite ainda Poema Vivo (link) e Conto-gotas (link).