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domingo, 4 de janeiro de 2015

Os diversos caminhos do discurso da poesia: Murilo Mendes

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais - RJ)

Murilo Mendes (1901- Juiz de Fora/ 1975 – Portugal) foi um poeta brasileiro. Participou do Movimento Modernista.
Passou muitos anos de sua vida pela Europa, divulgando a cultura e a literatura brasileiras. Embora possam ser identificadas em sua poesia várias tendências, percebe-se em grande parte delas muitos traços do surrealismo. Recomendo a visita, neste mesmo blogue, a duas postagens que contém poemas e reflexões sobre o poeta (link1 e link2). Vamos ler uma poesia sua agora e refletir sobre  ela.

Solidariedade

Sou ligado pela herança do espírito e do sangue
Ao mártir, ao assassino, ao anarquista,
Sou ligado
Aos casais na terra e no ar,
Ao vendeiro da esquina,
Ao padre, ao mendigo, à mulher da vida,
Ao mecânico, ao poeta, ao soldado,
Ao santo e ao demônio,
Construídos à minha imagem e semelhança.
(MENDES, Murilo. Murilo Mendes – poesia. Rio de janeiro: Agir, 1983. Coleção “Nossos Clássicos. )

Vamos dar uma olhada no texto, analisando os elementos presentes e que serão o roteiro para nossa compreensão. Nele, entramos em contato com um ser poético que, segundo o título, se solidariza com outros seres. Tais seres, embora pertençam ao universo poético, podem ser reconhecidos também numa realidade extratexto. São não só elementos comuns – casais na terra; vendeiro na esquina; mendigo; mecânico; soldado –, mas podem pertencer a um mundo marcado por uma divisão maniqueísta entre Bem – santo; mártir; padre e quase todos os outros elementos anteriormente citados – e Mal – demônio; assassino; anarquista; mulher da vida (a qual dos dois lados pertenceria “poeta”?). Pode-se identificar em “casais no ar” uma presença nitidamente surrealista, um tributo a essa tendência forte de outros textos do autor.
Porém há mais do que solidariedade: esse sujeito poético reconhece em si uma ligação profunda – uma herança, espiritual e carnal, física, do sangue –  com tais seres. Desse modo, ele está ligado aos outros seres, tanto no Bem, quanto no Mal. Seu discurso, em resumo, leva à constatação de que, através de uma herança comum a todos, há nele, carnal e espiritualmente, esses dois atributos.  Pode-se ousar além e dizer que, mais do que uma análise de outros caracteres, é a si mesmo que o eu poético analisa, usando os demais elementos como analogia palpável de si. Esse dado é muito importante e não deve ser esquecido ou desprezado, pois será reconvocado adiante.
A palavra “herança” levanta um outro aspecto indispensável para a discussão do texto: é um “patrimônio” - no caso algo espiritual e carnal – legado ao sujeito lírico (e a todos os citados por ele) por alguém. O enunciador do discurso poético estaria, então, como involuntário beneficiário de algo transmitido a ele por um outro ser.
Essa constatação é importante, visto que se torna contraditória em relação ao último verso, o qual, fechando o poema e não estando ali por acaso, apresenta um aspecto significativo fundamental. É um claro aproveitamento de uma das mais importantes ações de Deus, no Gênesis, primeira parte da Bíblia, livro considerado sagrado por grande parte da humanidade e que faz parte do conjunto cultural e religioso do homem ocidental: “... e, (por fim) disse: Façamos o homem à nossa imagem e semelhança” (Gn, 1, 26). Observemos aqui o chamado “plural deliberativo” (nós), segundo a versão bíblica que consultei. Esse “nós”, no entanto, tem encontrado outras interpretações bem mais polêmicas, mas aqui não vem ao caso.
Desse modo, esse sujeito que enuncia o discurso acaba agregando a si uma dupla – e dúbia – função de agente divino (o doador da herança, pelo verso final, enfaticamente resumido no “minha”) e, no sentido contrário, de paciente (seu beneficiário espiritual e carnal, pelos versos anteriores) de uma ação divina, de criatura ligada a seus pares e, ao mesmo tempo, de seu criador.
E o que mais enriquece o texto é a possibilidade entrevista por quem lê de que esse criador divino faça-se confessor de sua vulnerabilidade, de sua solidariedade espiritual e carnal com suas criaturas, de sua ambivalência entre o Bem e o Mal.