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domingo, 27 de dezembro de 2009

Palavras sobre palavras 9

O escritor Marcelino Freire (para ir a seu blog basta clicar em “eraOdito” em “Minha lista de blogs” e aqui para ler sua entrevista à revista online Verbo21) resolveu, segundo suas palavras, desafiar cem escritores a escreverem contos com apenas cinquenta letras, fora o título e a pontuação e organizou o livro Os cem menores contos brasileiros do século (Cotia, SP: Ateliê Editorial, 200 4, Coleção 5 minutinhos), o qual eu recomendo. Desde o título, já se vê o bom humor do propósito. Embora sejam “menores”, o título é hipérbole pura. E o público recebe um presentão, porque o fato de serem pequenos é apenas um detalhe a mais. Embora alguns, em minha opinião, não sejam narrativas, portanto contos, pode-se selecionar um bom número para análise. Além dos autores lidarem magistralmente com o gênero narrativo, manejam as virtualidades da linguagem, introduzindo o leitor como parceiro dessa autoria.
Os que me chamaram a atenção, de cara, foram os de tema bíblico. Mas eles não reproduzem o famoso texto. Na verdade, sempre o desorganizam, com leituras inovadoras e críticas. Em alguns, colocarei todas as interpretações que as narrativas me provocam. Quem acompanha esse blog tem o direito de encontrar outras.

Conto 1 (6 na coletânea)

O RESTO É LENDA

André Laurentino

Depois de expulsá-los,
Deus morreu.


Primeiro, ao introduzir a palavra “lenda”, o autor já discute a sacralidade do texto que enfoca. A expressão “Deus morreu” admite a possibilidade – interpretação inocente – de um possível sofrimento divino. Ou, diferentemente, seres humanos espalhados pela Terra, livre seu pensamento, a expressão traz para o texto toda a filosofia nietzschiana contida nela (para uma maior explicação vá ao site da Revista Ética e Filosofia Política, clicando aqui). Tal expressão, nesse caso, seria uma conclusão filosófica, uma concepção humana, não um fato em si.

Conto 2 (9 na coletânea)

A BÍBLIA (SPECIAL FEATURES)

Antônio Prata

Olha, Pai, eu tentei,
mas acho que
não deu muito certo não...


De novo, aqui a ambiguidade impressa no relacionamento da expressão “Bíblia” com o “eu tentei”. Vamos ver algumas opções de entendimento do texto.
O título como chamada para o assunto:
1. Fala de Adão – representante do ser humano –, que não conseguiu estar à altura do plano divino.
2. Confissão de Eva – representante humana feminina –, que desejava proporcionar a Adão – representante humano masculino – uma perspectiva de independência e sabedoria, oferecendo o fruto da árvore do conhecimento. Projeto gorado. Essa é uma leitura mais ousada e que, confesso, me delicia.
O título como início do texto:
3. Alguém que escreve o livro chamado sagrado, a Bíblia, seja lá qual for a intenção de Deus, e vê que seu trabalho foi em vão.

Conto 3 (96 na coletânea)

CRIAÇÃO

Tatiana Blum

No sétimo dia, Deus descansou.
Quando acordou, já era tarde.

Tatiana usa, com extrema habilidade, a duplicidade dos dois níveis de linguagem. O nível denotativo de “Quando Deus acordou, já era tarde.”: cansado, a divindade dorme muito e passa da hora. A frase, dessa maneira, refere-se apenas a Deus. E, na verdade, atribui uns “ares” meio humanos a quem não os teria.
O nível conotativo: “acordar”, no sentido de “perceber”, “se dar conta”; “ser tarde”, como “agora não há nada mais a fazer”. Entendido o trecho desse modo, passa-se a ter uma avaliação da conduta humana. A possibilidade da interseção dos dois níveis cria a glória do conto.

Conto 4 (97 na coletânea)

DIA ZERO

Whisner Fraga

Disse o Homem: haja Deus!
E houve Deus.

O último conto postado, aproveitando o linguajar bíblico, ecoa a velha piada: “E o homem fez Deus à sua imagem e semelhança.” .
O importante de todo esse trabalho literário é o desafio em que o leitor se acha: ao desfazer ambiguidades, vai agregando significados diferentes às mesmas palavras, ou seja, com um mesmo conto, ele tem vários. Outro fator, e para mim o de mais relevância, é a subversão do texto de que partem, propiciando a crítica, a releitura, não só do texto bíblico, mas do próprio ser humano.
E vou fechar esse estudo superficial, citando Mário Quintana (Caderno H), poeta gaúcho (1906 - 1994), por quem sou apaixonada, citação que se estenderia de poetas a contistas e que, embora não faça parte do livro de Marcelino Freire, calha aqui como uma luva:

Versículo inédito do Gênesis

Mário Quintana

E eis que, tendo Deus descansado no sétimo dia, os poetas continuaram a obra da criação.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

A força lírica das Bachianas - Literatura, já 9

Como tenho lidado com o poema abaixo, resolvi colocá-lo nesta seção, a qual antecipo. A poeta da vez sou eu. O texto foi feito este ano, em um momento particularmente difícil, a doença de minha mãe, que faleceu em agosto e a qual homenageio agora, quando o ano se finda, mas de quem não poderei nunca me esquecer. Desejo que a(o) leitora (leitor), clique no vídeo e o veja, enquanto lê meu texto. Assim terá a dimensão do que digo. Ao ouvir as "Bachianas brasileiras n.o 5" - Ária (Cantilena), do genial maestro e compositor Heitor Villa-Lobos, cujo cinquentenário da morte se deu no dia 17 de novembro deste ano, o poema surgiu.

Elegia

Eliane F.C.Lima

As Bachianas n.o 5 tem o desespero do meu presente,
as Bachinas n.o 5 tem.
As Bachianas n.o 5 tocam também o meu passado,
essas Bachianas n.o 5.
As Bachianas n.o 5 dizem o que não posso dizer,

pois minha garganta está sufocada,
minha respiração suspensa.
Minha vida está suspensa.
Mas há as Bachianas n.o 5.
Vivo ali, nas Bachianas n.o 5.
O sofrimento que me mata
soa nas Bachianas n.o 5.
As Bachianas n.o 5 choram o meu pranto por mim.
E, por isso, me salvam.
(26-03-2009)

Agradeço e remeto, mais uma vez, ao YOUTUBE (clique aqui).


domingo, 13 de dezembro de 2009

O espelho, a alma e o agora.

Neste segmento vou retomar o tema do espelho, agora, na literatura atual, e fazer alguns comentários sobre o uso do tema.
O primeiro poema postado pertence a uma poeta portuguesa, Lídia Bulcão, cujo blogue A ilha dentro de mim é um dos que curto. Aconselho a visitá-lo, clicando aqui. Nele, o leitor se depara com um eu que se olha ao espelho, fisicamente, e, como em Cecília Meireles (ver a seção anterior) vê ali uma das feições do tempo. E a palavra “feição” me parece bastante apropriada, em todos os seus sentidos. Percebe-se que o tempo se concretiza através de seus efeitos. Mais do que um rosto particular, o que ali se reflete é essa dimensão que, em última análise, submete os seres.

Em frente ao espelho

Lídia Bulcão

Sinto-me nua diante do espelho.
Vejo, mas não reconheço
a mulher que me olha com
espanto e estranheza.
Como se as rugas de expressão
pertencessem a outro rosto,
a outra vida, a outro sofrimento.

Reparo nos contornos do rosto
que sempre olhei com
a ligeireza das coisas fugazes.
Olho os vincos do tempo e percebo.
Décadas são apenas folhas caídas
do calendário colado na porta do frigorífico.


O segundo poema, já foi publicado neste blogue. Mas me pareceu bastante oportuno reconduzi-lo e comentar. Primeiro, o termo, que está sendo discutido é usado no plural. Isso cria um ambiente de inapreensão possível, o que, em poesia, é uma possibilidade fértil. Depois, a gente pode constatar que são objetos internos – “meus espelhos” – e que, ao contrário da característica primeira, eles é que são refletidos e “nas dores da alma”. A imagem poética tem seu grande efeito. Mas esse eu lírico segue derrubando a pré-imagem do espelho, quando acrescenta que “são todos quebrados”. Dessa forma, adiciona ao espelho o velho e místico sentimento do “espelho quebrado”, que carrega atrás de si todos os seus presságios. E consegue reforçar o tom plangente da voz que se analisa.

Espelhos

Viviane Arena Figueiredo

Segredos e imagens
Segregam formas,
Lembram momentos,
Refletem luz
Em estilhaços,
Em meus espelhos
Todos quebrados
E refletidos
Nas dores da alma ...


O último poema é de minha autoria e está postado, em outubro de 2009, em meu blogue Poema vivo. Gostaria de sua visita lá (clique aqui). Foi esse o poema que ensejou o comentário da Lídia: "É curioso como os espelhos despertam o fascínio das gentes, desde tempos imemoráveis."
O tratamento novo dado ao objeto é o de personalificá-lo e de se inverterem as ações: aqui é o eu que duplica o espelho, o qual se observa no rosto e se vê tomado do mesmo estranhamento daquele eu do poema da poeta de Portugal. E esse jogo de repetições vai se alternando, ora lá, ora cá. Mas ao final, o leitor sente que, de um lado ou de outro, o sofrimento da alma é o revelado.

Reflexos

Eliane F.C.Lima

Este espelho me olha assombrado
e desconhece seu rosto refletido:
não sabe de quem é o riso gelado,
não consegue ver bem o olhar sumido.

Espelho, espelho meu, que ora duplico,
espelho, espelho meu, eu lhe suplico,
não fuja , estupefato, do semblante
que é meu, posto que seu, por semelhante.

Encare a boca, aflita, também sua,
tal qual a dor perene e tão crua,
e a lágrima que a sua face molha.

Se hoje sou só eu que não sorrio,
se nesses dias sou a que não olha,
também há no espelho o que é sombrio.

sábado, 5 de dezembro de 2009

Palavras sobre palavras /Literatura de ontem 8

Novamente, neste segmento, irei reunir duas seções, como indica o título acima. Dessa vez, aproveitando o comentário interessante de Lídia Bulcão (será apresentada na próxima postagem: Literatura, já 8) de que o espelho é um tema que atrai as (os) poetas. Mas o tratamento dado a ele, espelho, é bastante variado. De simples referente, objeto do mundo real, transforma-se, além de sua mágica de reproduzir quem se olha, pela mágica da poesia. Começamos o estudo por Cecília Meireles.

Mulher ao espelho

Cecília Meireles

Hoje que seja esta ou aquela,
pouco me importa.
Quero apenas parecer bela,
pois, seja qual for, estou morta.

Já fui loura, já fui morena,
já fui Margarida e Beatriz.
Já fui Maria e Madalena.
Só não pude ser como quis.

Que mal faz, esta cor fingida
do meu cabelo, e do meu rosto,
se tudo é tinta: o mundo, a vida,
o contentamento, o desgosto?

Por fora, serei como queira
a moda, que me vai matando.
Que me levem pele e caveira
ao nada, não me importa quando.

Mas quem viu, tão dilacerados,
olhos, braços e sonhos seus
e morreu pelos seus pecados,
falará com Deus.

Falará, coberta de luzes,
do alto penteado ao rubro artelho.
Porque uns expiram sobre cruzes,
outros, buscando-se no espelho.

A segunda estrofe do poema está carregada de ambiguidade. A primeira interpretação, pode revelar uma mulher que, levada pelas exigências de um mundo (“Por fora, serei como queira/a moda, que me vai matando.” ou “Quero apenas parecer bela,”), vai se metamorfoseando (“...que seja esta ou aquela,...”), oprimida: “Só não pude ser como quis.” Observemos que os versos “... pois, seja qual for, estou morta.”; “... e morreu pelos seus pecados,” e “Porque uns expiram sobre cruzes,/outros, buscando-se no espelho.” revelam uma pessoa infeliz nessa busca exterior resumida em “espelho”.
Uma outra leitura daquela mesma estrofe, pode entendê-la como a fala de uma mulher não individualizada, não personalizada, tanto que viveu vidas muito diferentes. Observe-se a oposição cultural entre “Maria” e “Madalena”. Mas esse discurso, ao contrário, não quer criar um ser arquetípico “Mulher”, como se poderia supor. Demonstra que a variedade de aspectos de todas as mulheres citadas ali reforça a nova postura dos movimentos feministas que afirmam a pluralidade da mulher e negam velhas fórmulas como “alma feminina”, “essência feminina”. O ser humano é plural, já foi dito em outra postagem. Apontam, com mais força ainda, a opressão. Em qualquer época, a mulher não pode ser como quer e é sempre levada a “expirar diante de um espelho”, como se vê com a enxurrada de operações plásticas do mundo moderno.
Embora o poema acima mostre um eu que olha para o espelho para enxergar-se fisicamente, os outros poemas de Cecília, a seguir, mostram, na verdade, um uso diferente do tema do espelho e que é quase sempre constante.

Epigrama do Espelho Infiel

A João de Castro Osório

Cecília Meireles

Entre o desenho do meu rosto
e o seu reflexo,
meu sonho agoniza, perplexo.

Ah! pobres linhas do meu rosto,
desmanchadas do lado oposto,
e sem nexo!

E a lágrima do seu desgosto
sumida no espelho convexo!

No poema acima, como costuma ocorrer em autorias diversas, o espelho é apenas uma dissimulação de uma análise subjetiva, de um eu que se autoinvestiga.

Retrato

Cecília Meireles

Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.

Eu não tinha estas mãos, sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
– Em que espelho ficou perdida
a minha face?

De início, devemos ampliar o significado da palavra “retrato” do título. Pode-se referir realmente a uma fotografia, mas pode ser também apenas o representar das características de alguém. Como se vê, mais do que uma figura exterior, o que se retrata é toda uma mudança ocorrida por um sofrimento de vida – “... eu não tinha este coração/que nem se mostra.” –, revelados elementos inapreensíveis pelo olhar. Finalmente, “o espelho” da última estrofe esvazia-se de sua condição de objeto físico, porque se lhe agrega, nitidamente, a noção de “tempo”.
Mas, como comprovam os textos seguintes, de autoria masculina, não são apenas as mulheres que se olham no espelho. Conhecidíssimo, o texto a seguir, nega a eficiência do espelho enquanto objeto revelador, apontando uma dicotomia entre o fora e o mais profundo do eu poético.

Versos de Natal

Manuel Bandeira

Espelho, amigo verdadeiro,
Tu refletes as minhas rugas,
Os meus cabelos brancos,
Os meus olhos míopes e cansados.
Espelho, amigo verdadeiro,
Mestre do realismo exato e minucioso,
Obrigado, obrigado!

Mas se fosses mágico,
Penetrarias até o fundo desse homem triste,
Descobririas o menino que sustenta esse homem,
O menino que não quer morrer,
Que não morrerá senão comigo,
O menino que todos os anos na véspera do Natal
Pensa ainda em pôr os seus sapatinhos atrás da porta.

O próximo texto traz um novo ângulo ao tema. Aqui, esse eu, ao olhar a si no espelho, descobre o pai – observe-se a ousada, e de efeito surpreendente, construção de “Como pude ficarmos assim?” – e essa duplicação termina por ser uma revelação mais nítida de si mesmo. Permite, ainda, ao leitor, uma inferência da condição de todo ser humano.

Espelho

Mário Quintana

Por acaso, surpreendo-me no espelho: quem é esse
Que me olha e é tão mais velho do que eu?
Porém, seu rosto... é cada vez menos estranho...
Meu Deus, meu Deus... Parece
Meu velho pai - que já morreu!
Como pude ficarmos assim?
Nosso olhar – duro – interroga:
"O que fizeste de mim?!
Eu, Pai?! Tu é que me invadiste,
Lentamente, ruga a ruga... Que importa! Eu sou, ainda,
Aquele mesmo menino teimoso de sempre
E os teus planos enfim lá se foram por terra.
Mas sei que vi, um dia – a longa, a inútil guerra! –
Vi sorrir, nesses cansados olhos, um orgulho triste...

O último texto é de um escritor surrealista. A estética desse movimento, que atingiu todas as artes, pretendia utilizar imagens características do inconsciente, do sonho, utilizando um discurso não racional. Para um aprofundamento da definição, remeto ao E-Dicionário de Termos Literários, como já fiz em outras postagens (clique aqui). Cria-se uma atmosfera de mundos paralelos: “Um plano superpõe-se a outro plano./O mundo se balança entre dois olhos,”. A pergunta “Mas quem me vê? Eu mesmo me verei?” instaura a possibilidade de um outro alguém, de um outro mundo, ser aquele que olha. E ainda “Correspondo a um arquétipo ideal.” traz para o texto o pensamento platônico, reafirmando a interpretação. Mas a revelação sutil e poética está naquele “Signo de futura realidade sou.”, lembrando que a palavra “signo”, lapidada de todas as diversas interpretações da história da Semiótica, é, em última análise, o uso de uma coisa presente para indicar outra coisa ausente, reafirmando a idéia de dois mundos que se tangenciam, ligados por esse signo, por esse eu lírico. Isso tudo está implícito na idéia de espelho do título que, levada por “ondas de terror”, uma manopla parte.

O Espelho

Murilo Mendes

O céu investe contra o outro céu.
É terrível pensar que a morte está
Não apenas no fim, mas no princípio
Dos elementos vivos da criação.

Um plano superpõe-se a outro plano.
O mundo se balança entre dois olhos,
Ondas de terror que vão e voltam,
Luz amarga filtrando destes cílios.

Mas quem me vê? Eu mesmo me verei?
Correspondo a um arquétipo ideal.
Signo de futura realidade sou.

A manopla levanta-se pesada,
Atacando a armadura inviolável:
Partiu-se o vidro, incendiou-se o céu.

Como o tema não se esgota aqui, a seção Literatura já, 8 irá trazer para o presente, ainda, o fascínio do espelho.

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

O epitáfio poético de Ana Cristina César

Apesar da escritora aqui postada, prematuramente, já fazer parte do passado, pela atualidade de seu texto e pela ciranda que compõe com duas outras, bem vivas e atuantes, dou seus poemas nesta seção. Ana Cristina Cruz César (1952-1983) ou Ana C., como se autodenominava, era carioca de uma culta família de classe média. Escreveu em jornais e revistas alternativas, fez crítica literária e escreveu boa poesia. Fez parte de um grupo chamado de poesia marginal ou de mimeógrafo, dos anos 70, geração fecunda da qual fizeram parte Chacal, Cacaso, Francisco Alvim e Paulo Leminski (já postado neste blogue). Foi ela mesma que produziu e financiou seus livros de poema Cenas de abril (1979), Correspondência completa (1979) e Luvas de pelica (1980).
De poesia, podemos citar seus livros A Teus Pés (publicado pela Editora Brasiliense ainda em vida - 1982); Inéditos e Dispersos (póstumo - 1985); Novas Seletas (póstumo, organizado por Armando Freitas Filho). Ficou conhecida num livro chamado 26 poetas hoje, organizado por Heloisa Buarque de Hollanda, em 1976. Seu suicídio em 1983, surpreendeu o público. A última estrofe do poema abaixo, de autoria de Ana Cristina, parecia antecipar o fato.


Tenho uma folha branca
e limpa à minha espera:
mudo convite



tenho uma cama branca
e limpa à minha espera:
mudo convite



tenho uma vida branca
e limpa à minha espera.

O poema de Cacaso (Antônio Carlos de Brito), contemporâneo e marginal como a poeta, cuja partida também foi prematura, traduz a estupefação geral.

Ana Cristina

Cacaso

Ana Cristina cadê seus seios?
Tomei-os e lancei-os
Ana Cristina cadê seu senso?
Meu senso ficou suspenso
Ana Cristina cadê seu estro?
Meu estro eu não empresto
Ana Cristina cadê sua alma?
Nos brancos da minha palma
Ana Cristina cadê você

Estou aqui, e você não vê?


Posto abaixo uma seleção de belos poemas da escritora.

Poema I

Ana Cristina César

Acreditei que se amasse de novo
esqueceria outros
pelo menos três ou quatro rostos que amei
Num delírio de arquivística
organizei a memória em alfabetos
como quem conta carneiros e amansa
no entanto flanco aberto não esqueço
e amo em ti os outros rostos


Poema II

Este Livro

Ana Cristina César

Meu filho. Não é automatismo. Juro. É jazz do
coração. É prosa que dá prêmio. Um tea for two
total., tilintar de verdade que você seduz,
charmeur volante, pela pista, a toda. Enfie a
carapuça.
E cante.
Puro açúcar branco e blue.


Poema III

Nada, Esta Espuma

Ana Cristina César

Por afrontamento do desejo
insisto na maldade de escrever
mas não sei se a deusa sobe à superfície
ou apenas me castiga com seus uivos.
Da amurada deste barco
quero tanto os seios da sereia.

Poema IV

Poesia

Ana Cristina César

jardins inabitados pensamentos
pretensas palavras em
pedaços
jardins ausenta-se
a lua figura de
uma falta contemplada
jardins extremos dessa ausência
de jardins anteriores que
recuam
ausência frequentada sem mistérios
céu que recua
sem pergunta

(Este poema foi usado como uma das epígrafes de minha Tese de doutorado, do capítulo 6, denominado “O palco do indeciso”.)


Poema V

Samba-canção

Ana Cristina Cesar

Tantos poemas que perdi.
Tantos que ouvi, de graça,
pelo telefone – taí,,
eu fiz tudo pra você gostar,
fui mulher vulgar,
meia-bruxa, meia-fera,
risinho modernista
arranhando na garganta,
malandra, bicha,
bem viada, vândala,
talvez maquiavélica,
e um dia emburrei-me,
vali-me de mesuras
(era comércio, avara,
embora um pouco burra,
porque inteligente me punha
logo rubra, ou ao contrário, cara
pálida que desconhece
o próprio cor-de-rosa,
e tantas fiz, talvez
querendo a glória, a outra
cena à luz de spots,
talvez apenas teu carinho,
mas tantas, tantas fiz...

Trago, além de Ana C. e de Cacaso, duas poetas que foram homenageadas neste blogue (Rosângela A. de Castro - outubro – “Literatura, já 5” e Cintia Barreto - setembro – “Literatura, já 4”) e que se reportaram a ela em suas produções. É bom a gente comparar o poema anterior ao que vem abaixo.

Com Ana Cristina

Rosângela A. de Castro


I

um dia emburrei-me
porque inteligente
me punha sem sentido
tinha mentido
qual o sentido?
ser bicha, malandra,
avara, vândala?
e se der certo?
se eu tiver o seu carinho?
inteligente sou
triste
só e dona da existência
em que Deus e o Demônio
se encontram no bar
fazem comércio
das almas em pânico
as sossegadas já
foram arrematadas
num leilão disputado

II

mas tantas fiz...
fiz poema fiz comida
fiz a vida simplesinha
fiz difícil bem pensada
fiz a música cantada
tocada é pedir demais
fiz seu céu estrelado
fiz a chuva de trovão
fiz no quarto o que queria
tudo tudo não

III

esse homem exige tanto
se vende caro e quem sabe
(não li direito na placa)
a paga está bem aqui
no quente da minha mão
(poeminha safado)


À Ana C.

Cintia Barreto

Desculpe o egoísmo, amiga,
mas eu a quero aqui.

Eu a quero minha.
Não deixe a mudança de curso
verter os ébrios caminhos
da marginal.

Olhe mais uma vez
pela janela, sem medo.
Escale as ruínas e
tampe os ouvidos aos falantes.

Desfaça velhas intrigas e
libere o Eros acorrentado.

Agora, venha, dê-me a mão.
Olhe, novamente, pela janela
e vamos juntas retirá-la deste chão.

domingo, 22 de novembro de 2009

Para Literatura de ontem 1 - setembro

Visitante,
Em "Literatura de ontem 1" - setembro - foi postada uma matéria sobre Manuel Bandeira e minha bisavó Emerentina. Recebi agora um comentário que lá ficou. Mas achei pouco, tal a delicadeza dele. Reproduzo-o aqui e recomendo o blog de Nei Schimada, inteligente, talentoso e irreverente: Poemas de Bandeira (aqui). Vou repassar para o resto da família, que vai ficar orgulhosa com uma bisavó, postumamente, musa. Agradeço ao poeta.

Benedita Emerentina
que cantou com o poeta,
aprendeu desde menina
e tal qual, ensinou a neta.

Belo, bela, belas.

Nei

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Relações humanas: o enlace dos artistas da palavra - Palavras sobre palavras/Literatura de ontem 7

Levei algum tempo decidindo sobre qual título deveria colocar nestes comentários, afinal, qualquer um dos dois acima, faria sentido. Decidi que, desta vez, teríamos duas seções em uma só. Aqui falo de nosso Machado de Assis, cujo centenário de morte foi o ano passado, e do poeta Carlos Drummond de Andrade. Mas tem mais poeta no meio
Na nota sobre o poema "Quadrilha", de Drummond, em Seleta em prosa e verso, da Editora José Olympio, aparece a citação do capítulo XLII de Memórias Póstumas de Brás Cubas, como fonte para o poema. A mesma nota diz que Drummond nega o fato, apesar de ter apreciado a aproximação: ele fazia alusão ao escritor, frequentemente, com admiração e reverência. Deve-se ao poeta o título "Bruxo do Cosme velho", que se aderiu a Machado como um acatamento de veneração mística por parte de todos os que apreciam a boa literatura.
Aí vai o trecho:

Capítulo XLII - Que escapou a Aristóteles

Machado de Assis
.................................................................................................
Suponhamos que a primeira bola se chama... Marcela, - é uma simples suposição; a segunda, Brás Cubas; a terceira, Virgília. Temos que Marcela, recebendo um piparote do passado rolou até tocar em Brás Cubas, - o qual, cedendo à força impulsiva, entrou a rolar também até esbarrar em Virgília, que não tinha nada com a primeira bola; e eis aí como, pela simples transmissão de uma força, se tocam os extremos sociais, e se estabelece uma coisa que poderemos chamar - solidariedade do aborrecimento humano. Como é que este capítulo escapou a Aristóteles?
(Memórias póstumas de Brás Cubas)

xxxxxxx

Primeiro devo recomendar a quem ainda não o fez a leitura do romance inteiro. Considerado o livro que inaugura a fase realista do escritor - 1881 -, é imperdível. Aqui já se veem suas principais linhas. Reunindo e escondendo todos os interesses financeiros, de glória e de aplauso que enlaça as três personagens e as aproxima sob uma pseudodinâmica social involuntária a elas, disfarça como filosofia imparcial uma ironia que só se aguça justamente por esse mesmo motivo. Sua ironia, que normalmente não poupa nem o leitor, se estende ao próprio enunciador do discurso ao final.
Vamos agora ao texto de Drummond, já no século XX.

Quadrilha

Carlos Drummond de Andrade

João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém.
João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história.

xxxxx
Ouça o texto na voz do próprio autor. Créditos para YOUTUBE (aqui).



No poema fica caracterizada uma dinâmica social concretizada através do amor e o poeta não se vale de uma falsa ação incontrolável de um agente metafísico, como o faz tão sarcasticamente o narrador do romance, tão . Mas parece impossível não se fazer uma ligação entre os dois textos e não se aproximar aquele "que não tinha nada com a primeira bola" do romancista ao "que não tinha entrado na história" do poeta. E se a gente repara bem na objetividade de vida da Lili drummoniana - "que não amava ninguém" - e que vai se casar com um J. Pinto Fernandes, cujo nome e sobrenome citados cheiram a capitalismo, acaba-se descobrindo uns fantasmas de Marcela, Brás Cubas e Virgília, e todo o jogo de interesses que os guiava, a rondar.
É preciso se atentar ainda para a palavra "quadrilha" que, no texto, remete à dança. Se no ficcionista do século XIX é um impulso metafísico que rege os destinos, no poeta, a ligação entre todos pelo "amava",enlaça-os em um bailado especial.
Mas, em 1975, o compositor Chico Buarque apresenta no Canecão, em show com a cantora Maria Bethânia, uma canção que aparecerá no álbum "Chico Buarque & Maria Bethânia ao vivo", cuja letra vem abaixo. Destaque-se o final da letra onde está clara a presença de Drummond e seu poema. Brincando com isso, o letrista insere o próprio nome Carlos na nova ciranda, pagando-lhe o tributo. Já não há metafísica, porém uma física clara de corpos, dessa vez impulsionada por seus hormônios fervilhantes na "flor da idade". Mas, além do elemento sexual introduzido pelo compositor, a palavra "quadrilha" tem agora um significado moderno de bandidagem adolescente, agregando à idéia de dança um quê de ritual de iniciação sexual, o qual já vinha sendo desenhado desde o "A gente" do primeiro verso. Coisas já dos anos 70 do século XX. No entanto quem leu o romance do século XIX e sabe que Marcela era uma prostituta interesseira - "... Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis; nada menos." -, que Brás Cubas era um lascivo e que Virgília, casada, era sua amante, percebe que os dois textos aproximam, mais do que à primeira vista, o Chico do Machado.

Abaixo coloco vídeo do compositor cantando sua canção, em homenagem à poeta Marise Ribeiro, já apresentada neste blogue, por sabê-la admiradora incondicional de Chico Buarque. Dou, novamente, os créditos ao YOUTUBE (aqui).

Flor da idade

Chico Buarque de Holanda

A gente faz hora, faz fila na vila do meio dia
Pra ver Maria
A gente almoça e só se coça e se roça e só se vicia
A porta dela não tem tramela
A janela é sem gelosia
Nem desconfia
Ai, a primeira festa, a primeira fresta, o primeiro amor

Na hora certa, a casa aberta, o pijama aberto, a família
A armadilha
A mesa posta de peixe, deixa um cheirinho da sua filha
Ela vive parada no sucesso do rádio de pilha
Que maravilha
Ai, o primeiro copo, o primeiro corpo, o primeiro amor

Vê passar ela, como dança, balança, avança e recua
A gente sua
A roupa suja da cuja se lava no meio da rua
Despudorada, dada, à danada agrada andar seminua
E continua
Ai, a primeira dama, o primeiro drama, o primeiro amor

Carlos amava Dora que amava Lia que amava Léa que amava Paulo
Que amava Juca que amava Dora que amava Carlos que amava Dora
Que amava Rita que amava Dito que amava Rita que amava Dito que amava Rita que amava
Carlos amava Dora que amava Pedro que amava tanto que amava
a filha que amava Carlos que amava Dora que amava toda a quadrilha.




terça-feira, 10 de novembro de 2009

Comentando...6

Começou, em setembro, um movimento popular de fiscalização da política nacional. Tem como objetivo acompanhar desde as campanhas políticas até o que está sendo realizado, depois, a partir daquilo que fez parte das promessas de campanha. Seu nome é "Moralizar". Iniciou-se em Minas Gerais, mas a intenção é se estender a todo o Brasil. Tenho um amigo que é "ponta de lança" do movimento e tem me pedido sugestões de textos. Como professora que sou, preocupada com a clareza e com didática, escrevi o texto abaixo para que ele use - se quiser usar - como achar melhor.

"Nosso país já tem 500 anos de vida e 187 de independência. Não somos mais crianças em termos de cidadania. Mesmo uma criança, hoje em dia, já não aceita que as combinações feitas pelos adultos sejam descumpridas. Nem elas acham graça nisso ou ficam indiferentes. Já sabem protestar de todas as formas.
As palavras daqueles que pretendem se eleger são um contrato assinado com o povo: ações futuras em troca do voto. Não é no candidato que votamos, mas em suas realizações no governo. Acordo bilateral – povo/candidato – não cumprido merece as punições legais. Exigir o cumprimento da palavra dada em campanha é o caminho da lei. Não votar nunca mais naquele político é o caminho do cidadão adulto e inteligente."

Se hoje em dia já há muitos organismos que lidam com a DEFESA DO CONSUMIDOR, o que prova que o povo perdeu a timidez e exige seus direitos, devemos entender que aquilo que um candidato político coloca em sua campanha, se votado e eleito, passa a ser um "direito do consumidor" também, pois ele vai receber salários pagos com o nosso dinheiro. Não importa o partido que o eleito tenha, se é diferente do nosso: eleito, passa a fazer parte do interesse de todo mundo, objeto da fiscalização de todo mundo. Um prefeito em quem não votei, se está lá, é meu prefeito também, e vai ter de fazer o que disse que faria. Foi o contrato estabelecido para ganhar votos.
Vamos, como povo, finalmente tomar o poder. Exigindo o cumprimento da palavra dada. Se você concorda com isso, mobilize-se. Vamos arquivar os jornais onde os candidatos derem suas declarações. O que podemos fazer é, no mínimo, eliminar os "tratantes" (pessoa que age com velhacaria) das futuras eleições. O e-mail do "Moralizar" é moralizar@yahoo.com.br.
Não entender de política ou não gostar dela não faz a menor diferença: as ações dos desonestos eleitos caem sobre todas as cabeças. O poeta e dramaturgo alemão Bertolt Brecht (1898 -1956) diz, mais ou menos isso, em seu famoso texto:

O Analfabeto Político

Bertolt Brecht

O pior analfabeto é o analfabeto político. Ele não ouve, não fala, nem participa dos acontecimentos políticos. Ele não sabe que o custo de vida, o preço do feijão, do peixe, da farinha, do aluguel, do sapato e do remédio dependem das decisões políticas.

O analfabeto político é tão burro que se orgulha e estufa o peito dizendo que odeia a política. Não sabe o imbecil que, da sua ignorância política, nasce a prostituta, o menor abandonado, e o pior de todos os bandidos, que é o político vigarista, pilantra, corrupto e lacaio das empresas nacionais e multinacionais.

Atualíssimo e verdadeiro. Se for possível, entre no movimento criado ou inicie um movimento parecido em seu município. Antigamente acreditávamos que o que interessava era por QUEM seríamos governados. Hoje sabemos que o que importa é COMO seremos governados. E quem vai decidir isso, agora, somos nós!

domingo, 8 de novembro de 2009

Literatura, já 6

Conheci a poeta Viviane Arena Figueiredo, na UFRJ, também - manancial de talentos. Os poemas postados abaixo foram também publicados no Boletim do NIELM (Núcleo Interdisciplinar de Estudos da Mulher na Literatura) da Faculdade de Letras da Universidade. Conheci seu trabalho acadêmico e seus textos artísticos.

Poema I

Espelhos


Viviane Arena Figueiredo

Segredos e imagens
Segregam formas,
Lembram momentos,
Refletem luz
Em estilhaços,
Em meus espelhos
Todos quebrados
E refletidos
Nas dores da alma ...

Poema II

Equidistante

Viviane Arena Figueiredo

Medo...
Vejo-te...
Lúcido,
Plácido,
Raro
EQUIDISTANTE...
Na frieza de um papel em branco
Eu calo...

Poema III

Viviane Arena Figueiredo

Vi sua foto,
Passado presente em minhas
Memórias...
Palavras que pouco traduzem a sua imagem
Jovem,
Inexperiente,
Distante de ti que é hoje...
Rosto ingênuo, angelical,
Sem máculas, sem máscaras,
Apenas tu
Revelado em um papel amarelado,
Uma lembrança desgastada
De dias opostos
Do que és hoje,
De como te enxergo,
De como te sinto,
De como te entendo,
Apenas tu...
E minhas memórias...

Literatura de ontem 6

A poeta, cujas poesias são postadas agora, é Adelaide de Castro Alves Guimarães (1854-1940). O sobrenome é conhecido, sim, era Sinhá, a irmã querida do também poeta Castro Alves e responsável pelo acervo do irmão. Embora ele tenha morrido aos 24 anos, a irmã viveu até os 86 anos. Tendo sida casada com um intelectual conhecido, recebia em sua casa nomes famosos, como Rui Barbosa. Tendo-se dedicado também à música e à pintura e feito seus primeiros poemas na infância, só publicou já no século XX, morto o marido, e por incentivo da filha, já no Rio de Janeiro, onde morreu: O imortal (1933) e Arpejos em surdina (póstumo - 1954).



Adelaide C.A.Guimarães

Acercou-se do leito em andar vagaroso:
Condenada dir-se-ia a chegar ao degredo...
O vazio... o abandono... o sossego penoso...
Na marmórea brancura um funéreo lajedo!!...

Onde a estância risonha, o país venturoso
Dos afagos sutis... da carícia em segredo...
Dos seus dois corações o pulsar amoroso
De onde sorte cruel a expulsara tão cedo?!...

Nesta angústia, que espera esse olhar assim fito
No macio colchão, na macia almofada,
Testemunhos do amor que ora mata-a, ora a encanta.

Se tão longe, tão longe! em lençóis do infinito
Prisioneiro ele dorme em alcova isolada
Nesse leito do qual ninguém mais se levanta?...

Maria de Mágdala

Adelaide C.A.Guimarães

Caída ao pé da cruz: hirta, sombria...
Tem no semblante a palidez dos círios,
Nos lábios desmaiados, roxos lírios,
Quase extinta do olhar a chama fria...

Solta a roupagem morna descobria,
Da mágoa a revelar cruéis delírios,
Fontes de gozos, fontes de martírios,
Primores que a madeixa em vão cobria...

"Mestre! - soluça enfim desalentada,
Em torrentes de lágrimas banhada,
Um derradeiro olhar! Seja o perdão!... "

Entreabre o Cristo a pálpebra cansada:
Disco de luz coroa a transviada...
Ergue-te, Santa! Amor é a Redenção!...

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

O paraíso: movimento e som

Palavras sobre palavras 6

Eliane F.C.Lima

Hoje vamos voltar a falar sobre o que já se começou a fazer em “Literatura de ontem 4”, naquele diálogo tão profícuo entre Castro Alves e Bandeira. A intertextualidade é justamente essa absorção, por assim dizer, de elementos de um texto em outro(s), quer seja no tema, quer seja, principalmente, de elementos explícitos desse naquele. Às vezes esse encontro é involuntário, não há como fugir dele, como se verá na reflexão sobre o assunto enfocado abaixo.
O tema sobre o qual os quatro poemas a seguir são construídos é o jogo lúdico-literário em que cada poeta se vê mergulhado em sua busca pela criação poética, quando, mais do que em qualquer outro tipo de arte, se vê diante de sua fugaz matéria de trabalho, a palavra.
Ter como motivo de seu poema a construção poética faz com que se caminhe em um terreno escorregadio, que é a metalinguagem (para maiores esclarecimentos sobre o termo, vá ao link explicativo, clicando aqui).
Cecília Meireles e Drummond fizeram isso em dois magníficos textos bastante conhecidos.


Voo

Cecília Meireles

Alheias e nossas as palavras voam.
Bando de borboletas multicores, as palavras voam
Bando azul de andorinhas, bando de gaivotas brancas,
as palavras voam.
Viam as palavras como águias imensas.
Como escuros morcegos como negros abutres,
[as palavras voam.
Oh! alto e baixo em círculos e retas acima de nós, em redor de nós as
[palavras voam.

E às vezes pousam.

O Lutador

C. Drummond de Andrade

Lutar com palavras
é a luta mais vã.
Entanto lutamos
mal rompe a manhã.
São muitas, eu pouco.
Algumas, tão fortes
como o javali.
Não me julgo louco.
Se o fosse, teria
poder de encantá-las.
Mas lúcido e frio,
apareço e tento
apanhar algumas
para meu sustento
num dia de vida.
Deixam-se enlaçar,
tontas à carícia
e súbito fogem
e não há ameaça
e nem há sevícia
que as traga de novo
ao centro da praça.
(...)

Luto corpo a corpo,
luto todo o tempo,
sem maior proveito
que o da caça ao vento.
Não encontro vestes,
não seguro formas,
é fluido inimigo
que me dobra os músculos
e ri-se das normas
da boa peleja.
(...)

O ciclo do dia
ora se consuma
e o inútil duelo
jamais se resolve.
O teu rosto belo,
ó palavra, esplende
na curva da noite
que toda me envolve.
Tamanha paixão
e nenhum pecúlio.
Cerradas as portas,
a luta prossegue
nas ruas do sono.

(Para fruir esse poema integralmente, o que é imperdoável deixar de fazer, clique aqui).

Podemos perceber que a poetização da busca literária sempre suscita metáforas de mesma natureza. Os títulos dos dois primeiros poemas já sugerem a idéia de uma atividade que envolve a máxima dificuldade. Os três últimos versos do texto de Cecília Meireles são claríssimos nesse sentido. Drummond enuncia que o “inútil duelo jamais se resolve.”
Aproveito para continuar apresentando a poeta Rosângela A. de Castro, que foi homenageada em “Literatura, já 5”, dando-lhes o presente de outro texto.

Lá no tatame

Rosângela Abrahão de Castro

Uma palavra passou voando
alguém pegou
Uma palavra trazia várias.
Estava tudo calmo sem elas
e aí começou o vira e mexe
as palavras as palavras
em que buraco se metem?
em que sendas se embrenham
as palavras as palavras
qual o preço de uma arroba?
quanto se paga por elas?
as palavras as palavras
se arrumam e nos arrumam
tamanha indisposição
as palavras quando falam
levam tudo ao rés-do-chão.

Podemos reconhecer, desde o título, o lutador de Drummond. Se os versos “em que buraco se metem?/em que sendas se embrenham/as palavras as palavras”, de Rosângela, parecem ecoar no “e súbito fogem” do poeta, o “Alheias e nossas as palavras voam.” de Cecília é outra forma de dizer seu “Uma palavra passou voando”.
Coloquei também meu poema de 2007, em cujo título, partindo do vocábulo “Palavra”, chego à idéia que me traduz essa luta poética, do mais fino trabalho e de suor, o cultivo da terra, a colheita, a palavra-semente: lavra.

Lavra

Eliane F.C.Lima

Palavra me traga,
palavra me leva,
palavra me diz,
palavra me doa,
palavra me voa,
palavra me pousa.
Palavra me sente,
palavra-semente.
Palavra espreita,
palavra engana,
palavra tirana...
Palavra revela,
palavra esconde,
palavra, aonde?

Nesse texto, vê-se, ainda, essa mesma relação do embate poeta/palavra, motivado pela esquivança da linguagem – “palavra engana,/palavra tirana... “ – e tal qual nos de Cecília Meireles, Drummond, Rosângela A. Castro, como ademais em qualquer outro poeta, chego à mesma conclusão: “Palavra revela,/palavra esconde,/palavra, aonde?”



sexta-feira, 16 de outubro de 2009

A poética de Pedro Kilkerry - Literatura de ontem 5

Eliane F.C.Lima

Pedro Kilkerry nasceu na Bahia e viveu de 1885 a 1917. Era filho de uma brasileira e um inglês ou irlandês. Apesar de ter conseguido se formar em Direito e falar diversas línguas, viveu pobre. Escreveu em prosa, fez traduções e publicou crônicas em jornais do estado. Mas o que ficou de maior foram seus poemas.
Esses nunca foram publicados, tendo-os escrito em papéis dispersos, o que dificultou sua publicação póstuma. Foi aos poucos sendo descoberto, mas veio à luz realmente com o livro de Augusto de Campos, um dos papas da Poesia Concreta, no livro ReVisão de Kilkerry. Apesar de ser considerado um poeta simbolista, não há nada nos outros poetas simbolistas, que se compare à sua poesia. Constrói seus textos numa linguagem que surpreende a cada passo, por quebrar a sintaxe, a ordem lógica do pensamento, mesmo em poesia, que já, tradicionalmente, tem esse direito.Muitos analistas o apontam como inaugurador da modernidade poética. Infelizmente, como eu comentei sobre o cânone, em meu perfil, as antologias que chegam aos estudantes, raramente oferecem ao jovem seus belos textos.Quem desejar encontrar maiores esclarecimentos sobre o poeta, vale a pena clicar aqui e aqui.
É o Silêncio...

Pedro Kilkerry

É o silêncio, é o cigarro e a vela acesa.
Olha-me a estante em cada livro que olha.
E a luz nalgum volume sobre a mesa...
Mas o sangue da luz em cada folha.

Não sei se é mesmo a minha mão que molha
A pena, ou mesmo o instinto que a tem presa.
Penso um presente, num passado. E enfolha
A natureza tua natureza.
Mas é um bulir das cousas... Comovido
Pego da pena, iludo-me que traço
A ilusão de um sentido e outro sentido.
Tão longe vai!
Tão longe se aveluda esse teu passo,
Asa que o ouvido anima...
E a câmara muda. E a sala muda, muda...
Afonamente rufa. A asa da rima
Paira-me no ar. Quedo-me como um Buda
Novo, um fantasma ao som que se aproxima.
Cresce-me a estante como quem sacuda
Um pesadelo de papéis acima...
(...)

E abro a janela. Ainda a lua esfia
Últimas notas trêmulas... O dia
Tarde florescerá pela montanha.

E oh! minha amada, o sentimento é cego...
Vês? Colaboram na saudade a aranha,
Patas de um gato e as asas de um morcego.

O muro

Pedro Kilkerry

Movendo os pés doirados, lentamente,
Horas brancas lá vão, de amor e rosas
As impalpáveis formas, no ar, cheirosas...
Sombras, sombras que são da alma doente!

E eu, magro, espio... e um muro, magro, em frente
Abrindo à tarde as órbitas musgosas
— Vazias? Menos do que misteriosas —
Pestaneja, estremece... O muro sente!

E que cheiro que sai dos nervos dele,
Embora o caio roído, cor de brasa,
E lhe doa talvez aquela pele!

Mas um prazer ao sofrimento casa...
Pois o ramo em que o vento à dor lhe impele
É onde a volúpia está de uma asa e outra asa...


O poema de Kilkerry, a seguir transcrito, foi musicado por Cid Campos e gravado por Adriana Calcanhotto em seu álbum, muito apropriadamente denominado “A fábrica do poema”, o que contribuiu para divulgar a obra pouco conhecida do poeta. Na música, pode-se ouvir a voz de Augusto de Campos fazendo a leitura da segunda estrofe do poema. Quando ponho meu CD para tocar, costumo repetir a faixa muitas vezes.
O verme e a estrela

Pedro Kilkerry

Agora sabes que sou verme.
Agora, sei da tua luz,
Se não notei minha epiderme...
É, nunca estrela eu te supus
Mas, se cantar pudesse um verme,
Eu cantaria a tua luz!
E eras assim... Por que não deste
Um raio, brando, ao teu viver?
Não te lembrava. Azul-celeste
O céu, talvez, não pôde ser...
Mas, ora! Enfim, por que não deste
Somente um raio ao teu viver?
Olho, examino-me a epiderme,
Olho e não vejo a tua luz!
Vamos que sou, talvez, um verme...
Estrela nunca eu te supus!
Olho, examino-me a epiderme...
Ceguei! Ceguei da tua luz?



quarta-feira, 14 de outubro de 2009

A poesia vibrante de Rosângela A. de Castro - Literatura, já 5

Eu, ao fundo, e a poeta Rosângela A. de Castro no REDEFEM, 2001,
Niterói, onde apresentei trabalho sobre a escritora Ondina

Ferreira. Os rostos das outras pessoas foram tampados
porque não foram avisadas da postagem da foto.

Eliane F.C.Lima

A poeta, cujos textos dou a público, e que continuará a se revelar em "Palavras sobre Palavras 6", é uma amiga muito querida. Conversar com ela sempre foi uma experiência e tanto. Eu saía das conversas enriquecida. Assunto de gente inteligente, uma cabeça de idéias arejadas. A poesia dela é um retrato fiel de quem ela é. Nunca vi ninguém que se dissesse tanto em textos: sua linguagem é seu conteúdo. Apresento-lhes Rosângela Abrahão de Castro.

Poema I

Mulheres gregas

Rosângela A. de Castro

e me rasgo em melodias
me costuro em alegrias
vãs
rota a alma
que não se quer nova
e perfeita

não me basta
ser penélope!



Poema II De noite - com Drummond

Rosângela A. de Castro que é isso de amar
quando mesmo purifica
arde faz uma ferida

que é isso de amar
que chateia e apurrinha
que me faz bem mesquinha

que é isso de amar
me acorda a toda hora
vira a cabeça e transtorna

que é isso de amar

bota pra dormir mais cedo
o faro do que dá medo

que é isso de amar
faz andar no fio da navalha
mas não há nada que valha
isso de muito amar


Poema III

Quebra-cabeça

Rosângela A. de Castro

Foi um deus-nos-acuda
sai de baixo
corre-corre
o beijo
o alvoroço
a pele aos saltos
o salto alto
nas nuvens
caí da cama
caí de cama
é cama-de-gato
a corda bamba
caramba
quase entro bem
entrei
pelo cano
saí de fininho
o trrriiimmm
o cheirinho
de novo
de salto alto
o gozo
o ui
manhã
os carros vão passando e eu esperando pra atravessar
eu sabia!
de novo
o outro
o mesmo
calor
cansaço
mente sempre
é o jeito
assim não dá
haja saco
haja papo
cuidado, uma palavra pode pegar!
pegou!

o amor é um triz.

Poema IV
Rosângela A. de Castro

nada que está fora
me preenche
o que me devora
de repente

enche de discórdia

o senso
lato e escrito

que a memória

aprisiona


Poema V

Rosângela A. de Castro

Querendo acertar no alvo do incerto
acertei a mosca do desassossego.

Mas desde sempre o que queria
Era descobrir aquela ferida antiga

E assim meio que distraída
Escorregar o cotovelo

Só pra ver teu sangue escorrendo
Doce denso imensa poça
Onde eu possa descansar.


Poema VI

Rosângela A. de Castro

a pérola
no fundo daquela ostra
tão rara
tão cara
e bela

o amor
no fundo do nosso tempo
só nosso
tão caro
doce
e belo

o beijo
no mundo da tua boca
tão calmo
tão mágico
doce
e terno