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domingo, 30 de maio de 2010

Autoria de mulher: um olhar pós-moderno sobre o mundo - Literatura, já 14/Palavras sobre palavras 16

Eliane F.C.Lima

A escritora sobre a qual vou refletir hoje – Luci Collin – é da novíssima geração. O texto foi transcrito do livro 25 mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira, organização de Luiz Ruffato (Rio de Janeiro: Record, 2004). Ela nasceu e mora em Curitiba e leciona Literaturas de língua inglesa, na UFPR. É premiada por sua obra literária no Brasil e nos EUA.
Obras literárias publicadas: Poesia: Estarrecer (1984), Espelhar (1991), Esvazio (1991), Ondas e Azuis (1992), Poesia Reunida (1996), Todo Implícito (1998); Contos: Lição Invisível (1997), Precioso Impreciso (2001), Inescritos (2004). Publicou, também, obras acadêmicas.
Recomendo a excelente e esclarecedora entrevista dada pela escritora – esclarece aspectos da literatura contemporânea brasileira – ao site Germinal literatura (clique aqui), da qual transcrevo algumas palavras, que ajudam a compreender seu conto:“Fragmentação, cortes, sobreposição, exploração de temas não usuais, ironia, colagem, absurdo, manipulação sintática e semântica, como eu apresento nos meus textos, não é transgressão, não é novidade genuína, é uma tentativa de aproximação da maravilhosa desordem da realidade que não pode, por seu dinamismo, ser registrada tendo por base regras artificiais.” (Luci Collin – site Germinal literatura).Sobre o conto – seria essa a caracterização de gênero correta? –, devo esclarecer que foram, por mim, extraídos trechos, dos quais, evidentemente, não se pode dizer que não fazem falta, desde que ali foram colocados pela autora e têm uma função bastante relevante. São elementos estranhos ao andamento maior do conto – de propósito devo acrescentar – e de várias naturezas. Dois deles, por exemplo, pretensos comerciais, interrompem o eixo que encadeia as várias partes, e transformam o texto, provisoriamente, numa representação de televisão, transgredindo o gênero. Pela exiguidade do espaço deste blogue, optei por publicar apenas os trechos que estão sob um mesmo fio condutor. Mas, de início, devo prevenir meu visitante para não se entusiasmar com o termo “fio condutor”, que usei. Apenas se vislumbra uma ligação sutil entre esses segmentos, talvez conduzida pela expressão “A personagem principal”, enfaticamente reiterada neles.Antes de chegar ao texto, quero que se atente para o título “No céu, com diamantes”, em relação ao nome Luci, da autora, e se faça a ligação, que qualquer pessoa, adolescente dos anos 1960, faria com a canção dos Beatles “Lucy in the sky with diamonds” (1967). Na época, por causa da observação das iniciais do título, remeteu-se, imediatamente, a canção ao alucinógeno LSD, embora fosse dada, posteriormente, outra versão (clique aqui). Observe, ainda, o final da primeira parte, que parece fazer coro a isso. Entendendo-se dessa forma, parece que essa é uma narrativa “psicodélica”, termo tão em moda na época – aconselho o dicionário – e a pessoa que lê está sendo conduzida por esse entendimento. Sinal dos tempos literários, do Pós-modernismo, que leva o caminho irreverente iniciado pelo Modernismo às últimas consequências. Quero chamar a atenção, ainda, para o fato de que as notas numeradas abaixo, em fonte 10, são, ainda, do texto ficcional e estão descontínuas, pelo fato de eu ter retirado alguns trechos, como foi informado. Mas observe o que comento adiante a respeito delas. No céu, com diamantes.Luci CollinTUDO ESTÁ ENTRE PARÊNTESES: Sim, tem caráter autobiográfico. É um texto com mau caráter.2 A personagem principal é severamente míope (CLOSE). A personagem principal sempre escreve atraso com “Z”. A personagem principal pensa que é a protagonista e que, no correr da pena, um intrincado enredo se apresentará, mas nada de importante, nada mesmo, acontecerá neste parágrafo. Nem nos outros. Todas as terças e quintas a personagem principal rega uma samambaia, daquelas vagabundinhas que nunca vai pra frente, só porque alguém colocou uma samambaia ali no escritório e ninguém molha. Ou seria “ali no laboratório”? Ou seria “ali no consultório”? “Ali no gabinete”? “Ali na sacristia”? A personagem principal tem uma rinite crônica que lhe confere um quê de irritabilidade. Ninguém, nem ela mesma, sabe que é alergia a pólen e derivados. A personagem principal sofre de insônia e ninguém sabe.3 Mas tem aquelas olheiras esquisitíssimas (CLOSE) – acho que algumas pessoas já deduziram a coisa toda da insônia.
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TUDO NOS CONFORMES: Sim, cheira a autobiografia. A personagem principal usa lentes de contato e enxerga relativamente bem, obrigado. A personagem principal balança a perna quando está irrequieta (CLOSE). A personagem principal tem uma obturação antiga que incomoda mas, por falta de tempo/dinheiro/referência, não vai nunca ao dentista. Dorival fica se perguntando o tempo todo: “Terei mau hálito?” Joanice fica se perguntando o tempo todo: “Estará meu hálito adequado para a situação que se insinua?” Elisvaldo fica se perguntando o tempo todo: “Será que lembrei de escovar os dentes antes de sair de casa?”4 Demétria fica se perguntando o tempo todo:”Devo perguntar a alguém se meu hálito está realmente agradável?” A personagem principal não pergunta nada. Não pergunta nada. Não pergunta nada a ninguém. Porra, isso sim é personagem, cara! A personagem principal exagera o tempo todo – mas só por dentro. A personagem principal só entra pela porta da frente.............................................................................TUDO DE BOM, QUERIDA!: “Sim, está me cheirando a autobiografia.9 A personagem principal tem umas pontadas do lado direito, mais pra cima, isso, bem aí! Mas só às vezes (principalmente ao subir aquela maldita escada que dá para o laboratório). Mas não é caso de operar. A personagem principal, de acordo com os moradores da região, é “uma prevalecida” (quer dizer, é uma besta). A personagem principal rói vergonhosamente as unhas – mas só quando as lentes estão embaçadas ou a rinite piora. (“Dava-lhe nos nervos”, registrará um futuro biógrafo com português ruim.) A personagem principal tem plena consciência das diferenças básicas entre Kojak e Kodak; contudo, foi vista, uma vezinha só mas foi, comendo com a boca quase-aberta. Era plenilúnio. Cogita-se que tal personagem seja principal porque não há mais ninguém interessado no papel. A personagem principal só entra pela porta dos fundos. Só funda pela porta da prente. Fó sunda fela porta pa frente...................................................................................(SEGUE): Tomei a água da samambaia! Cometi o pecado da gula. Depois jejuei por três meses e, por conselho de médicos especializados, voltei a comer. Voltei a matar, roubar, faltar aos cultos e afins, às cerimônias de coroação, às sagrações da primavera...............................................................................Estou confessando: não guardei nem domingos nem feriados e não comi bacalhau na sexta-feira santa e ainda escutei hard rock mesmo sem gostar no dia que era pra fazer silêncio, só para afrontar a vizinha de cima. Não paguei o dízimo e gastei o dinheiro com um cd de boleros uma revistinha da mafalda um cachecol de listinhas coloridas um anel com o yin e yang que eu nunca vou usar uma maço de free curto um detergente com glicerina pra não estragar muito as mãos quando tiver coragem de lavar a louçarada da pia uma caixa de band-aid redondo pra pôr no calcanhar quando usar o sapato novo um tubinho de super bonder pra consertar o que estiver lascado um adesivo do meu time pra pôr na janela da frente e provocar o vizinho do lado um pente. Pensando bem, o band-aid (peguei mania nessa coisa de tracinho) deveria ter sido o tradicional. Pensando bem, a revistinha poderia ter sido de sacanagem, o cachecol liso, o anel poderia ter sido do meu time, o detergente um sabão em barra que durava mais e o cigarro um pirulito que não causa dano ao pulmão, acho. Mas o pente tá bom.Não fiz o separe em sí-la-bas, não engraxei os sapatos não passei fio dental corretamente não sei o que quer dizer “inconcusso” não fui ao baile e formatura não liguei pra ninguém no ano-novo. Confesso.E nunca amei-nos como a mim mesmo.Brilhos que nem sempre se vê.Tudo está entre parênteses:“diamante”, do gr. adámas, “indomável”, pelo lat. adamante.13Só fui para casa.Tinha céu.E pensei que era escritor.


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2. Em 25 de maio próximo passado nossa emérita Annamaria Polli-Sanson publicou um artigo(pequeno, quase uma notinha, alegando “desnecessariedade em tomar o tempo dos leitores”) n’A Tribuna de Curitiba atentando para o “caráter degenerativo da produção pretensamente literária” do autor deste conto. Contatos com Polli-Sanson (palestras, manhãs de autógrafo, entrevistas, chás) pelo e-mail annita@rapindinha.com.br
3.Cf. THEODORO, 2003:242, para comentário sobre o uso dos artigos o/a antecedendo a palavra “personagem” quando substantivo comum de dois ou mais gêneros.
4. Até quando está em casa, coitado.
9. “Um cheirinho ruim”, conforme SYDNEY et alii (2003:26 a 37).
13. HOLANDA, 2003:585
xxxxxxxx
Há muita coisa a ser observada. A primeira delas é o humor sarcástico que conduz a narrativa. O uso das notas introduzidas pelo escritor (veja a numeração acima), principalmente pela (pseudo) formalidade acadêmica em que se apresentam, são uma clara crítica desconstrutiva à tal linguagem, situação vivida pela própria Luci. E é preciso atentar para o fato de que a primeira já se apresenta com o número 2, ou seja, ou encena um puro descompromisso com a realidade ou pretende uma quebra do princípio, meio e fim ou insinua que haveria uma parte não acessível ao leitor.Optei por ir comentando, aos poucos, cada segmento para facilitar o acompanhamento.Parte 1 (TUDO ESTÁ ENTRE PARÊNTESES)1. Há a insinuação de que o texto, supostamente ficcional, como se avalia pela palavra “personagem”, tem íntimas ligações com a pessoa que escreve: é autobiográfico. Ao longo da análise, veremos que isso nada tem a ver com Luci Collin.2. "Personagem principal" e "protagonista" são, no dicionário, sinônimos. Logo, começa a se estabelecer o nonsense que domina o texto, apimentado por uma ironia que tudo domina.3. Em todas as quatro partes, há como que uma apresentação, uma caracterização da personagem. Isso é comum em textos narrativos. Porém, o leitor, do mesmo modo que a personagem, fica sempre com a impressão de que os textos são uma preparação para o início da narração que nunca começa. Aliás, ele já havia sido avisado de que nada de importante nesse sentido aconteceria.4. Observe-se que com a expressão “close”, a caracterização física desce a minúcias, mas não a minúcias literárias: a alusão a uma câmera que se aproxime leva o leitor à dinâmica do visual, ou seja, da arte dramática.5. Com o trecho “A personagem principal pensa...”, o narrador a delineia como um ser, até certo ponto autônomo e fora do texto, que reflete sobre a própria narrativa e, assim, traça-lhe uma existência pré-textual.Parte 2 (TUDO NOS CONFORMES)6. Nessa altura, o leitor já percebeu a linguagem coloquial, não formal, não comprometida com o que seria, em período estético anterior, a linguagem literária.7. Observou também a interseção entre “a realidade” – chamemos de realidade o espaço fora do espaço da “personagem principal”, onde estão Dorival, Joanice, Elisvaldo, Demétria e o narrador – e a ficção. Com essa estratégia, criam-se dois níveis narrativos: um explícito, o da “personagem principal” e outro implícito, onde se movimentam narrador e os outros. Parte 3 (TUDO DE BOM, QUERIDA!)8. O narrador introduz no texto um interlocutor com quem dialoga – “mais pra cima, isso, bem aí!” – e que pertence, também, à narrativa dita implícita. Ele não é o leitor.9. “Cogita-se que tal personagem seja principal porque não há mais ninguém interessado no papel.” A frase pretende, intencionalmente, aniquilar qualquer certeza do leitor sobre a diferença entre gênero literário e dramático. Na verdade, a ideia sensata seria: ... que tal atriz tenha o papel principal, porque...”. Uma personagem não reivindica para si a função principal, ela é ou não é. Mas a sensatez, no sentido tradicional do termo, é a última coisa que se pretende aqui. O confundir a leitura é a meta.Parte 4 (SEGUE)10. A última parte dá o tiro de misericórdia no leitor: o “escritor”, como se nomeia e caracteriza o narrador – pense-se aqui na personagem inscrita na ficção implícita, na falsa realidade textual – toma a água da samambaia de sua personagem, como a se embeber de ficcionalidade, ele mesmo. E aqui se revela por inteiro a expressão autobiográfica. Sua personagem desaparece e ele se torna personagem de si mesmo.11. Fica patente a invasão, no texto, de uma realidade, essa sim, não textual. A intromissão de produtos da vida cotidiana é uma marca do Pós-modernismo, que não se furta ao imediatismo de seu tempo.12. Mas devo registrar que a leitura do texto acima, me lembrou muito o discurso do narrador de A hora da estrela (1977), de Clarice Lispector, em todos os procedimentos literários, até na criação de vários níveis ficcionais. Mesmo com um aparente hiper-realismo pelo apropriar-se do externo e do concreto do corriqueiro diário, mais do que em todas as outras partes, a derradeira assume, pela renúncia à pontuação, pelo ímpeto discurso, um enunciado comum ao fluxo do pensamento, muito comum na literatura não só contemporânea e brasileira, mas mundial, e muito utilizada a partir do século XX. Esse discurso, portanto, resumido no “Estou confessando”, se autojustica em sua não sensatez.
Confundido pelo choque desses dois extremos – o excesso de aproveitamento do exterior concreto de um lado e a não linearidade do processo mental, de outro, que se expressa através de idas e vindas, de interrupções –, aquele que acompanha o texto submerge. O que satisfaz inteiramente ao propósito “inconcusso” pós-moderno da escritora de subverter as premissas racionais de seu leitor.

domingo, 23 de maio de 2010

Construção literária: o jogo do vazio e das negações - Literatura, já 13/Palavras sobre palavras 15

Eliane F.C.Lima

Volto hoje a Os cem menores contos brasileiros do século (Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2004, Coleção 5 minutinhos), cujos contos já comentei em "Palavras sobre palavras 9" (para voltar lá e ter informações seguras sobre o organizador Marcelino Freire, clique aqui).

Desta vez, escolhi três escritoras que já são bastante conhecidas, embora pertençam à novíssima e excelente geração (para acessar o blogue da primeira, basta ir à minha lista de blogues).
Para iniciar, devemos relembrar, sucintamente, a noção de isotopia, já colocada antes: é um plano de sentido, uma leitura que se pode fazer de um texto (ou até frase). Alguns só admitem um significado possível. Mas os textos literários, quase sempre, permitem que se façam várias leituras, o que pode ter sido a intenção do autor ou não.
Nos três minicontos abaixo, está óbvia essa intenção, não só por sua exiguidade, que não permitiria a fixação de um plano através de pistas dadas ao leitor, mas, pelo domínio literário das escritoras, que, brincando com várias possibilidades, exploram ao máximo a dinâmica de seus textos. Vamos a eles.

Conto 1 (01 da coletânea)

Adriana Falcão

(Informações sobre a escritora em Revista TPM. UOL ou clique aqui)

Ali, deitada, divagou:
se fosse eu,
teria escolhido lírios.


Está claro que o entendimento de que uma personagem, de um sofá, cama ou rede, olha para flores colhidas ou mesmo plantadas em um jardim, não pode, de modo nenhum, ser descartado. Mas, em minha visão, pela pobreza desse significado, esse texto perderia sua importância e não teria sua criação justificada. O vocábulo “deitada”, ao unir-se à idéia de “flores” – os lírios desejados ou a outra espécie que, em verdade, ali está –, me levou a imaginar uma personagem deitada em seu próprio caixão e que, de forma nenhuma, está alheia ao momento, exercendo, ainda, sua opinião. Anulando a impressão de tristeza, a qual sempre acompanha um momento dessa natureza, um quê de humor crítico em relação à cena fúnebre e à pessoa que comanda o velório domina o texto.


Conto 2 (48 da coletânea)

ATRIZ NO DIVÃ

Lívia Garcia-Roza
(Dados sobre a escritora vá a Digestivo Cultural ou clique aqui).

- Doutor, o senhor
já me viu representar?
- Fora daqui?

Uma atriz sempre representa em espaços específicos. E a pergunta “Fora daqui?” pode ser tomada, com ingenuidade, por apenas um inútil e redundante reforço de sentido por parte do psicanalista. Se o leitor se encaminha para uma segunda leitura, percebe, deliciado, no entanto, todo o alcance analítico e sarcástico da personagem “doutor” sobre a atuação da personagem “atriz” naquilo que deveria ser seu “revelar-se”: ela continua representando mesmo no divã.


Conto 3 (75 da coletânea)

TERRORES NOTURNOS

Paloma Vidal
(Para saber mais sobre a escritora leia Portal Literal - Terra ou clique aqui).

Abriu os olhos, pulou da cama,
correu até a porta: trancada.

O terceiro conto é o que permite, talvez, mais leituras.
A primeira: incitada por um sonho ruim, de invasão de seu quarto (ou acordada por um barulho do lado de fora), por exemplo, alguém vai até a porta e se tranquiliza: a porta está realmente trancada.
A segunda: ainda o sonho ou o barulho e, levada pelo medo, tenta sair e não consegue: alguém trancou a porta por fora.
Terceira: alguém está preso no quarto e adormece. De repente, acorda e, esperançoso, vai tentar a porta. Nada, trancada ainda.
Quarta...
Como se vê, os rígidos limites estabelecidos para alguém que escreve e tem talento – o escritor só podia usar cinquenta letras, sem contar o título e a pontuação, lembra? – pode ser uma arma usada a seu favor, instigando sua capacidade criadora, o que brinda os leitores com verdadeiros textos literários.



sábado, 15 de maio de 2010

Literatura: quando objeto se faz sujeito - Literatura, já 12

Eliane F.C.Lima

Pedindo licença a meus visitantes, hoje vou comentar pela segunda vez um conto meu postado em meu blogue Conto-gotas, o conto “Eva”, e tenho de solicitar a leitura prévia do mesmo para que minhas palavras sejam entendidas, ação indispensável (clique aqui). O comentário a meu texto não é estratégia ou falta de modéstia. Faço-o pelo mesmo motivo que me levou a comentar o outro: tenho a posição privilegiada – nem tanto, como verão adiante – de estar de um lado, como leitora e analista, e de outro, como testemunha do processo de criação.

Vou resumir a gênese do conto, que é interessante. Comecei a escrever a história de uma adolescente, que é chamada pela mãe, em seu leito de morte, a qual lhe revela que ela, a mais nova, não é sua filha. Cortei nesse ponto a narrativa e fui para um flashback, ou seja, para recompor o passado em que a personagem é doada pela família.
Ao voltar para esse passado, comecei a narrar os fatos que iniciam o conto como ele está hoje. Então alguma coisa extraordinária aconteceu: fiquei apaixonada por esse outro momento e ele começou a crescer. Desse modo, a pretensa protagonista do conto eclipsou-se e sua irmã mais velha dominou a cena e se impôs. E o conto se desenvolveu inteiramente nesse rumo, não deixando espaço para a outra vertente.
Voltei ao início e o apaguei. O conto passou a ter seu núcleo narrativo em uma família que perde uma filha e não mais em uma outra que ganha essa filha. Quem lê, passa a não saber absolutamente mais nada a respeito daquela menina.
Em minha opinião, a dramaticidade – esse termo aqui tem mais compromisso com o comover ou emocionar, ser grave e terrível – se adensa: a falta de informações sobre a personagem passa a afligir tanto à mãe e irmãs, quanto à pessoa que lê. Tem um efeito interno na narrativa, mas se estende para fora. O conto ganha, imagino eu, pelo enorme vazio da ausência.
E aqui faço coro com os outros escritores que dizem que, muitas vezes, as personagens tomam as rédeas da narração e não aceitam os destinos ficcionais que iam sendo impostos a elas. Eu pretendia que minha protagonista fosse uma, no entanto era à outra que cabia essa função. Era mais forte, era a dona da história e provou isso até o fim. Tão forte, que é capaz de direcionar a vida de outra personagem, seu irmão, e resgatar a sua vida e a de suas irmãs, libertando a todas.
Entretanto o mais surpreendente foi o que constatei depois do conto pronto, quando o li com olhos de crítica literária.
Sempre tive um grande fascínio, posso assim dizer – absolutamente não religioso, devo salientar –, pelo Genesis bíblico, incluindo a queda e a expulsão do paraíso. E nunca me conformei pelo papel dado à mulher ali, à Eva.
Em um determinado momento do conto, escrevo: “A moça aparou um menino magrinho, choro forte. Deu um sorriso, Mulher no paraíso saboreando a maçã.” Por isso, coloquei o título “Eva”, ainda inconsciente. E verifiquei, então, que, sem a menor intenção e racionalidade, no momento em que escrevia, eu criei uma Eva que duelava com Deus – o pai narrativo –, disputando Adão – o irmão – com ele, e que o vencia, finalmente. E que Adão, na verdade, era expulso do paraíso – a terrinha da família, espaço de domínio do pai/Deus, antítese que se configura em ironia – pela própria Eva. Morto o pai, de forma indireta com o concurso da filha, esta, que marca, junto com suas irmãs a importância do papel da mulher, passa a ser o centro do que visualizei como “o paraíso”, um lugar, agora, dela. Assim, a Mulher inverte a posição que a cultura judaico-cristã lhe havia predestinado.
Mas há um dado de caráter pessoal no conto, o qual vem confirmar minha afirmativa de que toda obra de arte, e a literatura de forma essencial, é autobiográfica. Essa autobiografia se apresenta, quase sempre, de forma velada, claro. Pois, ao criar um texto, toda a experiência de vida que se tem é mobilizada e trazida para o texto.
Meu conto não conta a história de minha vida manifestamente. Mas, sendo a terceira de três irmãs, nós apenas guardávamos lugar para um varão esperado desde o começo. A princípio, a chegada de duas meninas foi aceita como um fato inevitável. Porém, o anúncio de minha chegada veio encontrar pais que já tinham perdido a paciência de aceitar meninas. Fui a terceira menina e esses dois elementos não me favoreciam e vim antes de um filho homem, o esperado, o assinalado. Todas as Evas de meu conto já estavam latentes em minha vida, esperando ser, finalmente, narradas.



domingo, 9 de maio de 2010

A atualidade de Augusto dos Anjos, o poeta do hediondo - Literatura de ontem 13

Eliane F.C.Lima

O poeta de que tratarei nesta postagem chama-se Augusto dos Anjos. Em minhas aulas de literatura, quando lia seus poemas como apresentação de sua obra, as (os) adolescentes ficavam surpreendidas (os) e gostavam muito. Porque Augusto dos Anjos é realmente surpreendente. E, desta vez, vou deixar que ele mesmo se apresente:


O poeta do hediondo

Augusto dos Anjos

Sofro aceleradíssimas pancadas
No coração. Ataca-me a existência
A mortificadora coalescência
Das desgraças humanas congregadas.

Em alucinatórias cavalgadas,
Eu sinto, então, sondando-me a consciência,
A ultra-inquisitorial clarividência
De todas as neuronas acordadas!

Quanto me dói no cérebro esta sonda!
Ah! Certamente eu sou a mais hedionda
Generalização do Desconforto...

Eu sou aquele que ficou sozinho
Cantando sobre os ossos do caminho
A poesia de tudo quanto é morto!

Embora não se deva confundir o eu lírico – aquele “eu” que conduz o poema – com o autor, o soneto acima é um autorretrato fiel dos procedimentos poéticos do escritor.
Tendo nascido, na Paraíba, em 1884 (faleceu aos 30 anos, em 1914), e vindo para o Rio de Janeiro, em 1910, em busca de reconhecimento e meios de publicar seu único livro – Eu –, só o fez mediante o auxílio do irmão, sendo renegado pela crítica da época, ainda dominada pela tríade parnasiana.
Imagina-se que ele ainda tenha herdado do Naturalismo, escola literária em prosa do final do século XIX, a aproximação com os termos científicos. Mas, diferentemente daquela escola, que recorria à ciência e sua linguagem de forma denotativa, ou seja, no que tinham de compromisso com a realidade, Augusto dos Anjos se apropriava delas subjetivamente, para conseguir revelar, com admiráveis efeitos, o âmago daquele ser enunciador, em seus poemas. Os temas de seus textos eram sempre a reflexão sobre o ser humano, em geral, e o individualismo de seus “eus” poéticos, em particular.

O morcego

Augusto dos Anjos

Meia-noite. Ao meu quarto me recolho.
Meu Deus! E este morcego! E, agora, vede:
Na bruta ardência orgânica da sede,
Morde-me a goela ígneo e escaldante molho.

"Vou mandar levantar outra parede..."
- Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho
E olho o teto. E vejo-o ainda, igual a um olho,
Circularmente sobre a minha rede!

Pego de um pau. Esforços faço. Chego
A tocá-lo. Minh’alma se concentra.
Que ventre produziu tão feio parto?!

A Consciência Humana é este morcego!
Por mais que a gente faça, à noite, ele entra
Imperceptivelmente em nosso quarto!

Psicologia de um vencido

Augusto dos Anjos

Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênese da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.

Profundissimamente hipocondríaco,
Este ambiente me causa repugnância...
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que se escapa da boca de um cardíaco.

Já o verme – este operário das ruínas –
Que o sangue podre das carnificinas
Come, e á vida em geral declara guerra,

Anda a espreitar meus olhos para roê-los,
E há de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra!

Se o enfoque da decrepitude da matéria do corpo era uma constante, beirando à tanatofilia – atração pela morte –, é o aspecto espiritual que o poeta sempre atinge por esse viés. Na verdade, o aspecto exterior do ser humano, sempre descrito de forma negativa, apresenta-se como um prolongamento da natureza desse ser.

Eterna Mágoa

Augusto dos Anjos

O homem por sobre quem caiu a praga
Da tristeza do Mundo, o homem que é triste
Para todos os séculos existe
E nunca mais o seu pesar de apaga!

Não crê em nada, pois, nada há que traga
Consolo à Mágoa, a que só ele assiste.
Quer resistir, e quanto mais resiste
Mais se lhe aumenta e se lhe afunda a chaga.

Sabe que sofre, mas o que não sabe
É que essa mágoa infinda assim não cabe
Na sua vida, é que essa mágoa infinda

Transpõe a vida do seu corpo inerme;
E quando esse homem se transforma em verme
É essa mágoa que o acompanha ainda!

Pau d'Arco – 1904

Apostrofe à carne

Augusto dos Anjos

Quando eu pego nas carnes do meu rosto.
Pressinto o fim da orgânica batalha:
— Olhos que o húmus necrófago estraçalha,
Diafragmas, decompondo-se, ao sol-posto...

E o Homem — negro e heteróclito composto,
Onde a alva flama psíquica trabalha,
Desagrega-se e deixa na mortalha
O tacto, a vista, o ouvido, o olfato e o gosto!

Carne, feixe de mônadas bastardas,
Conquanto em flâmeo fogo efêmero ardas,
A dardejar relampejantes brilhos,

Dói-me ver, muito embora a alma te acenda,
Em tua podridão a herança horrenda,
Que eu tenho de deixar para os meus filhos!

Era exatamente a surpresa de seus temas e de seus termos inusitados, que beiram ao bizarro, o que espantava e causava tanta admiração a minhas alunas e alunos adolescentes. Por isso, o poeta foge da literatura já meio óbvia do parnasianismo e abre uma porta nova, porque original dentro de sua extravagância, que o coloca naquilo que a crítica costuma chamar de Pré-modernismo, nome dado a uma série de tendências variadas, as quais têm em comum o fato de apontar um caminho para o futuro, cuja culminância viria em 1922 com a Semana de Arte Moderna. Ele inaugura aquela compreensão nova de linguagem literária desses poetas modernistas posteriores: qualquer palavra é palavra poética.
Certa feita, orientei uma aluna de Letras para a aula-prova que ela tinha de dar. Engenhosamente, ela planejou brindar os alunos com a ligação entre Augusto dos Anjos e a música “O pulso” do grupo de rock, pós-moderno, fim de século XX e princípio de XXI, Titãs. Apesar de eu ver entre os poemas do poeta e a canção diferenças fundamentais de intenção poética – a música de rock, como toda a obra do grupo, tem uma forte tendência à crítica social, ao contrário dos poemas, que são uma análise poético-filosófica nesses aspectos materiais do ser humano – posto também o vídeo dos Titãs e dou os créditos àquela jovem e inteligente futura professora pela interessante relação estabelecida e ao YOUTUBE pelo vídeo (clique aqui).

Roc

sábado, 1 de maio de 2010

Comentando... 10

Eliane F.C.Lima

Desejo dar uma dica de bom filme: assisti ao documentário "Utopia e barbárie" de Sílvio Tendler e achei excelente. Estando em uma sessão só para professores, ao final, o filme foi aplaudido e, enquanto descia as escadas, ouvi por todo lado: "Há muito tempo não via um filme tão bom.".

Por coincidência, no domingo anterior, na TV Educativa, eu havia assistido a uma entrevista com o diretor, no programa, reprisado, "Conexão Roberto D'Ávila". Ali, o diretor salientava, dentre outras coisas interessantes, que tivera que adequar acontecimentos, a partir da segunda guerra mundial até a eleição de Lula - um operário -, Obama - um negro, filho de queniano - e Evo Morales - um índio cocalero -, em duas horas e meia. A eleição dos três era a comprovação da vitória da utopia, concluí.
Porém mais do que um documentário político, o filme acaba sendo uma análise do comportamento humano na história: embora feche o ciclo positivamente na utopia, evidenciando-se que a humanidade sempre mantém vivo seu desejo de um mundo melhor - essa é a parte sadia dessa humanidade -, em contrapartida, percebe-se que um movimento contrário sempre chega também, fazendo emergir sua parte mais negativa. Fica claro que o ser humano é, então, extremamente ambíguo, pois as cenas de barbárie são revoltantes e inacreditáveis.
Vale a pena ver o filme para que a gente acredite que os sonhos valem a pena e lutar por eles também. E para que a lembrança do que foi feito com alguns desses sonhadores nunca seja esquecido.