A
heroína silenciada e a evolução do herói
Eliane
F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais - RJ)
A
terceira parte do estudo – reenfatize-se a leveza dele – sobre
Senhora, de José Alencar,
como caracterização da mulher do século XIX, usará como foco a
personagem romântica personificada em Aurélia Camargo,
a protagonista do romance.
Em primeiro lugar, é necessário se
ressaltar que tais protagonistas seguem um padrão de idealização,
que, de forma geral, enquadram as mulheres de então, ficcionais ou
não.
É indispensável também ser
ressaltado que a palavra “idealização” não traz em si uma
fixidez significativa, como aliás, a maioria dos termos: o ideal
para uma época pode não ser para outra.
Assim,
o ideal de mulher do século referido e compartilhado pela trama de
Senhora seria um ser
recatado, guardião da sacralidade do lar, consciente de seus
limites, principalmente intelectuais, cujo extremismo sentimental
faria dele só coração. Esses atributos comporiam um tipo
romântico.
Quem
lê o romance em questão imagina que Alencar faz, portanto, de sua
personagem um ser ímpar por desenhá-la diferente de tais padrões:
submete todos os seus pretendentes a sua vontade, é mais senhora de
seu tutor do que regida por ele, traça um plano racionalizado em
seus mínimos detalhes para sujeitar seu marido comprado a toda a
sorte de humilhações. Em vez de uma personagem “tipo” –
aquela que está submetida a um padrão comportamental, no caso, a
que seguisse fielmente o projeto romântico –, Aurélia seria uma
personagem “indivíduo” – aquela personagem que tem
características próprias e não pode ser identificada em outras
personagens. A alusão ao
termo “senhora”, que inclusive, dá título ao romance, refere-se
a esse aparente perfil da personagem principal:
Aurélia
tomou o braço do marido, e afastou-se lentamente ao longo da
alameda.
– Por
que me chama senhóra?
perguntou ela fazendo soar o ó com
a voz cheia?
– Defeito
de pronúncia.
– Mas
às outras diz senhora. Tenho notado; ainda esta noite.
– Esta
é, creio eu, a verdadeira pronúncia da palavra; mas nós, os
brasileiros, para distinguir da fórmula cortês, a relação de
império e domínio, usamos da variante que soa mais forte, e com
certa vibração metálica. O súdito diz à soberana, como o servo à
sua dona, senhóra. Eu talvez não reflita e confunda.
– Quer
isso dizer que o senhor considera-se meu escravo? – perguntou
Aurélio fitando Seixas. (p. 197)
Enganar-se-á,
porém, essa pessoa leitora, se não reparar em alguns detalhes
bastante importantes, que podem ser inferidos dos exemplos baixo e
que serão comentados a seguir e vão compondo uma personagem, que,
ao final do romance, se mostra a heroína romântica, por excelência.
– É
verdade! Desculpe-me, Aurélia, a precipitação... Ele
exige vinte contos de réis à
vista, até amanhã, sem o que não aceita.
– Pague-os!
….................................................................................................
Cobria-se-lhe
o semblante de uma palidez mortal; e por momentos parecia que a vida
tinha abandonado aquele formoso vulto, congelado em uma estátua de
mármore. (p. 57)
Nesse trecho, o tutor
informa à Aurélia que Seixas havia não só aceitado casar-se com
ela por um dote maior, desfazendo o arranjo matrimonial e financeiro
anterior que tinha com outra moça, mas exigia um adiantamento. É
importante se observar o transe emocional por que passa a personagem:
o que deveria ter sido recebido com alegria – o sucesso em
casar-se, por fim, com o antigo amado –, indica um sentimento
oposto: “uma palidez mortal”.
A personagem principal
já tinha, desde o início da trama, quando não possuía ainda
fortuna e entregara seu amor a Seixas em vão, fornecido pistas
concretas de suas características tão caras ao estilo de época:
– A
sua promessa de casamento o está afligindo, Fernando; eu lha
restituo. A mi basta-me o seu amor, já lho disse uma vez; desde que
mo deu, não lhe pedi nada mais. (p.104)
– […]
Mas Deus nos deu uma missão neste mundo, e temos de cumpri-la [disse
Seixas].
– A
minha é amá-lo. A promessa que o aflige, o senhor pode retirá-la
tão espontaneamente como a fez. Nunca lhe pedi, nem mesmo simples
indulgência, para esta afeição; não lha pedirei neste momento em
que ela o importuna. (p. 107)
Abandonando-a Seixas
por vender-se a primeira vez, a comoção por que passa a personagem
principal já aponta seu apego à idealização com que são
configuradas as mulheres de então, como se evidencia na passagem
adiante:
Recebeu
uma carta anônima. Comunicavam-lhe que Seixas a havia abandonado por
um dote de trinta contos de réis. Acabando de ler essas palavras
levou a mão ao seio, para suster o coração que se lhe esvaía.
Nunca
sentira dor como esta. Sofrera com resignação e indiferença, o
desdém e o abandono, mas o rebaixamento do homem, a quem
amava, era suplício infindo, de que só podem fazer ideia os que já
sentiram apagarem-se os lumes d'alma, ficando-lhes a inanidade.
Debalde
Aurélia refugiou-se nos primeiros sonhos de seu amor. A
degradação de Seixas repercutia no ideal que a menina criara em sua
imaginação, e imprimia-lhe o estigma. Tudo ela perdoou a seu
volúvel amante, menos o tornar-se indigno de seu amor.
Que
pungente colisão! Ou expelir do coração esse amor que tinha
decaído, e deixar a vida para sempre erma de um afeto; ou
humilhar-se adorando um ente que se aviltara, e associando-se
à sua vergonha. (grifo meu. p. 108)
Não é a lacuna do
amado que faz Aurélia sofrer, mas a lacuna do amor que desapareceria
por aquele não corresponder a esse.
Na noite das núpcias,
o marido descobre todas as motivações anteriores de sua mulher para
escolhê-lo dentre outros pretendentes mais legítimos. Ao conseguir
comprá-lo por um valor mais alto – Fernando aceita a proposta
feita anonimamente pelo tutor de Aurélia –, retomando-o da noiva
pela qual tinha sido preterida e que lhe oferecera também um dote, a
protagonista irá se decepcionar pela segunda vez, sendo esse um
golpe irrecuperável na idealização do amor. Na verdade, o fato
revelado por ela é o verdadeiro mote para o desenvolvimento da
narrativa.
– Conheci
que não amava-me, como eu desejava e merecia ser amada. Mas não era
sua a culpa e só minha que não soube inspirar-lhe a paixão, que eu
sentia. Mais tarde, o senhor retirou-me essa mesma afeição com que
me consolava e transportou-a para outra, em quem não podia encontrar
o que eu lhe dera, um coração virgem e cheio de paixão com que eu
o adorava. Entretanto, ainda tive forças para perdoar-lhe e amá-lo.
A
moça agitou então a fronte com uma vibração altiva:
– Mas
o senhor não me abandou pelo amor de Adelaide e sim pelo seu dote,
um mesquinho dote de trinta contos! Eis o que não tinha o direito de
fazer, e que jamais lhe podia perdoar. Desprezasse-me embora, mas
não descesse da altura em que o havia colocado dentro de minha alma.
Eu tinha um ídolo; o senhor abateu-o de seu pedestal e atirou-o no
pó. Essa degradação do homem
a quem eu adorava, eis o seu crime; a sociedade não tem leis para
puni-lo, mas há um remorso para ele. Não se assassina assim um
coração que Deus criou para amar, incutindo-lhe a descrença e o
ódio.
….................................................................................................
– […]
Entretanto, ainda eu afagava uma esperança. Se ele recusa nobremente
a proposta aviltante, eu irei lançar-me a seus pés. Suplicar-lhe
que aceite a minha riqueza, que a dissipe se quiser; mas consinta
que eu o ame. Esta última
consolação o senhor a arrebatou. Que me restava? Outrora atava-se o
cadáver ao homicida, para expiação da culpa; o senhor
matou-me o coração; era justo
que o prendesse ao despojo de sua vítima. (grifos meus. p. 120-121)
Após onze meses de vilipêndio, o
marido comprado restitui o dinheiro que recebera, conseguido com seu
trabalho e honestamente e, por esse modo, libera-se da palavra dada,
terminando com um casamento que, podia ser, então, uma prática
social, mas contrariava o idealizado casamento por amor. Nesse
momento, Seixas é alçado à condição de herói romântico,
situação a qual não correspondera até então. Diferentemente da
personagem protagonista, que tem um comportamento sempre preso aos
parâmetros da heroína literária epocal e, portanto, uma postura
estática, como constatam as mesmas passagens do romance, a
personagem masculina central evolui em direção ao papel que lhe
cabe na estética romântica. É nessa condição que ele,
finalmente, sobe a seu “pedestal”, à sua condição de ídolo e
tem, portanto, um lugar no coração ressuscitado da heroína.
– Pois
bem, agora ajoelho-me a teus pés, Fernando, e suplico-lhe que
aceites meu amor, este amor que nunca deixou de ser teu, ainda quando
mais cruelmente ofendia-te. (grifo meu, p. 234)
– Aquela
que te humilhou, aqui a tens abatida, no mesmo lugar onde
ultrajou-te, nas iras de sua paixão. Aqui a tens implorando seu
perdão e feliz porque te adora, como o senhor de sua alma. (grifo
meu, p. 234-235)
Duas particularidades
dos trechos, nem um pouco desprezíveis, ao
contrário, bastante significativas, saltam aos olhos de quem lê:
primeiro a subserviência
a que se entrega Aurélia – o vocábulo “abatida” pode ter o
significado de “diminuído em suas forças físicas e/ou morais”
–, ela sempre tão orgulhosa e altiva, ajoelhada, numa posição de
inferioridade frente ao marido. Pode-se
até imaginar uma ave que, acostumada a altos e grandes voos, é
caçada e se faz ao chão. A imagem é forte, mas corresponde
bastante ao trecho. Para
mostrar-se digna do amor de Fernando, ela tem de descer à condição
estabelecida para a mulher do século XIX. Se ele tem de subir em seu
pedestal, como ídolo, como herói, ela tem de ser rebaixada, para
corresponder a essa mesma idealização.
Segundo – e confirmando essa primeira particularidade –, a oposição que se estabelece na troca de posições entre Aurélia e Fernando – inadequadas até então, de acordo com os preceitos do Romantismo, caros ao século. O termo que é escolhido no texto não é apenas uma coincidência: ela, que era “senhóra” (rever p. 197)), abdica de sua posição e pede ao amado que se torne “o senhor de sua alma”. Invertem-se os papéis. Mais do que uma questão amorosa, evidencia-se uma submissão prevista pela sociedade. O fecho do romance indica, finalmente, que essa era a condição “essencial” para a paz e desejava desde o princípio pela própria Aurélia: “As cortinas cerraram-se, acariciando o seio das flores, cantavam o hino misterioso do santo amor conjugal.” (p. 235)
Segundo – e confirmando essa primeira particularidade –, a oposição que se estabelece na troca de posições entre Aurélia e Fernando – inadequadas até então, de acordo com os preceitos do Romantismo, caros ao século. O termo que é escolhido no texto não é apenas uma coincidência: ela, que era “senhóra” (rever p. 197)), abdica de sua posição e pede ao amado que se torne “o senhor de sua alma”. Invertem-se os papéis. Mais do que uma questão amorosa, evidencia-se uma submissão prevista pela sociedade. O fecho do romance indica, finalmente, que essa era a condição “essencial” para a paz e desejava desde o princípio pela própria Aurélia: “As cortinas cerraram-se, acariciando o seio das flores, cantavam o hino misterioso do santo amor conjugal.” (p. 235)