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sábado, 12 de março de 2016

Parte III - Os fenômenos fundamentais da Criação Literária

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais - Rio de Janeiro)


Resumo das postagens anteriores sobre o pensamento de Käte Hamburguer:


1. ENUNCIADO DE REALIDADE: A presença de um sujeito-de-enunciação caracteriza um enunciado de realidade. Não é o conteúdo de realidade que marca tal enunciado. Mesmo que se identifiquem elementos “invencionados” ali, fantasiados, isso não descaracteriza a realidade, porque o sujeito-de-enunciação é sempre real.





2. TEXTO FICCIONAL: É a presença de personagens em suas ações, em suas próprias falas – a mimese aristotélica –, que indica o texto ficcional. O narrado deixa de estar no campo da experiência ou de vivência do sujeito-de-enunciação e passa para o campo da vivência de personagens.


3. Há aspectos linguísticos – nomeados “sintomas” pela escritora –, que são identificados por ela e que estabelecem, então, a “lógica” da criação literária – tese do livro estudado –, os quais, dependendo de sua natureza, tanto mostram o enunciado de realidade (a não ficção), como o contrário, o texto ficcional.



Nesta postagem, serão mostrados os elementos que Käte Hamburguer aponta para identificar um sujeito-de-enunciação e seu enunciado de realidade X o texto de ficção, o que realmente interessa ao leitor. Tal estudo foi direcionado aqui para textos de Literatura Brasileira (ALMEIDA, Manuel Antônio. Memórias de um sargento de milícias. Ed. Crítica de Cecília de Lara. Rio de Janeiro:livros Técnicos e Científicos, 1978. p. 5) (biblioteca Universitária de literatura brasileira: Série C, ficção, romance e conto; v. 2), acessíveis, portanto, a todos os leitores brasileiros.



Texto 1


Uma das quatro esquinas que formam as ruas do Ouvidor e da Quitanda, cortando-se mutuamente, chamava-se nesse tempo – O canto dos meirinhos –; e bem lhe assentava o nome, porque era aí o lugar de encontro favorito de todos os indivíduos dessa classe (que gozava então de não pequena consideração). Os meirinhos de hoje não são mais do que a sombra caricata dos meirinhos do tempo do rei; esses eram gente temível e temida, respeitável e respeitada; formavam um dos extremos da formidável cadeia judiciária que envolvia todo o Rio de Janeiro no tempo em que a demanda era entre nós um elemento de vida: o extremo oposto eram os desembargadores. Ora, os extremos se tocam, e estes, tocando-se fechavam o círculo dentro do qual se passavam os terríveis combates das citações, provarás, razões principais e finais, e todos esses trejeitos judiciais que se chamavam o processo.

Daí sua influência moral. (pág. 6)


Inicialmente, observemos o dado curioso de que este recorte de romance apresenta a mesma estrutura linguístico-lógica que o trecho da biografia do escultor Michelangelo Buonarroti, por exemplo. É construído de tal modo que poderia ser proveniente de um relato histórico. Se nos fosse apresentado esse segmento, desligado do romance, compreenderíamos aquele local retratado como o campo de experiência do sujeito relator, podendo ser esse considerado um sujeito-de-enunciação teórico, como no caso da biografia de Michelangelo Buonarroti. Havendo no texto acima um sujeito-de-enunciação, estamos no caso de um enunciado de realidade e não de um texto de ficção, segundo a autora em questão.

Se lermos, porém, esse trecho, sabendo que é o começo de um romance, supomos que a paisagem não faz parte do campo de experiência desse e passa a ser cenário de outras figuras – as personagens fictícias, as figuras de romance –, cuja entrada em cena aguardamos.

Mas o problema não é tão simples assim. Na verdade, enfim, esse trecho, apesar de fazer parte de um romance, segundo os critérios da teórica, configura-se, sim, como um enunciado de realidade. Comecemos observando o dêitico “aí” (linha 3), que marca uma localização no espaço em oposição a um hipotético “aqui”, não escrito, mas local de onde fala o sujeito enunciador e que não se refere a personagens que surgirão, mas a ele mesmo.

Examinemos também os tempos verbais – presentes (“formam”, “são”) e pretéritos (“chamava”, “assentava”, “eram” etc) – e as expressões temporais “nesse tempo”, “de hoje”, “então”, “do tempo do rei”: fica bastante claro que as formas temporais estão fixadas em relação à experiência do sujeito-de-enunciação: observe-se a localização precisa da esquina de “hoje” – tempo atual desse sujeito e sua importância relativamente à lembrança dele ao que era no passado. O uso das relações temporais está preso, estritamente, ao conceito descrito nas gramáticas: pretérito, presente e passado são tempos estabelecidos por um sujeito. Faz parte de um enunciado de realidade, portanto, mesmo que a pessoa leitora já saiba que entrarão, adiante, as personagens de uma ficção.



Texto II

Mas voltemos à esquina.

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Entre os termos que formavam essa equação meirinhal pregada na esquina havia uma quantidade constante, era o Leonardo-Pataca.

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Sua história tem pouca coisa de notável. Fora Leonardo algibebe em Lisboa, sua pátria; aborrecera-se porém do negócio, e viera ao Brasil. Aqui chegando, não se sabe por proteção de quem, alcançou o emprego de que o vemos empossado, e que exercia, como dissemos, desde tempos remotos. Mas viera com ele no mesmo navio, não sei fazer o que, uma certa Maria da hortaliça, quitandeira das praças de Lisboa, saloia rechonchuda e bonitota. O Leonardo, fazendo-se-lhe justiça, não era nesse tempo de sua mocidade mal apessoado, e sobretudo maganão. Ao sair do Tejo, estando a Maria encostada à borda do navio, o Leonardo fingiu que passava distraído por junto dela, e com o ferrado sapatão assentou-lhe uma valente pisadela no pé direito. A Maria, como se já esperasse por aquilo, sorriu-se como envergonhada do gracejo, e deu-lhe também em ar de disfarce um tremendo beliscão nas costas da mão esquerda. (Mesmo romance, ainda pág. 6)

No trecho, há muitos detalhes a serem observados. Várias expressões ainda denunciam a presença daquele mesmo sujeito-de-enunciação acima: “como dissemos”, “não sei fazer o que”, além do advérbio “aqui” (X Lisboa), que demonstra, ainda sem sombra de dúvidas, o local de onde se posiciona o sujeito narrador. A presença desse sujeito, segundo o conceito expresso da estudiosa alemã, ainda denuncia um enunciado de realidade, mesmo com fortes indícios da presença do “invencionado”, do “fingido”. Seguindo a conceituação aristotélica, a mimese ficcional só se apresenta como tal, quando a personagem age, pensa, fala. Ainda não seria o caso.

Mas a atenção de quem lê já dispara, pois não se pode deixar de observar o significado dos verbos “aborrecera-se” (l.7) e “fingiu”, que são os chamados verbos de processos internos, processos esses que uma pessoa de fora não tem conhecimento sobre outra pessoa em um contdo de realidade, mas somente em narrativas ficcionais. Esse é um “sintoma” ou aspecto linguístico-semântico marcante, quanto à ficção, que faz parte do que a teórica vem nomeando como “lógica” literária.

Outro detalhe a ser anotado é o emprego dos verbos situacionais. Käte Hamburguer chama a atenção para o fato de que, em um enunciado de realidade, transcorrido no passado autêntico, tais verbos, do tipo “sorrir”, “andar”, “deitar”, ou seja, de significado extremamente momentâneo, são impossíveis de serem usados. Eles não cabem em situações passadas reais. Registremos as ações situacionais em “assentou-lhe uma valente pisadela no pé direito”; “sorriu-se como envergonhada...”; “deu-lhe também em ar de disfarce um tremendo beliscão...”. Só a narrativa ficcional, como se vê, prevê e permite o uso largo de tais verbos. Diz lá a autora:




Em asserções sobre situações reais empregamos tais verbos de situação no imperfeito somente com referência a situações temporais próximas, porque designam uma situação concreta, ainda visualizável e lembrada pelo enunciador. (p. 67)


Já se pode perceber, desse modo, que os verbos no passado listados nos dois casos deixam de ser tempos gramaticais, pois não têm mais uma ligação específica com o sujeito de enunciação, perdendo sua função e capacidade marcadora do passado, para serem apenas recursos ficcionais. Têm ligação com as personagens. O enunciado de realidade passa a dar lugar ao texto narrativo ficcional. Os aspectos temporais deixam de ser os gramaticais – reais, autênticos –, ao se esvaziarem do campo da vivência do sujeito-de-enunciação, porque a narrativa entra no campo da experiência das personagens épicas, que fazem a literatura narrativa.

Transcrevamos alguns trechos das próprias palavras da estudiosa em seu citado livro:

Pois não tinha sido posto em discussão que o pretérito possa deixar de ser, em algum lugar qualquer da manifestação verbal, a expressão de acontecimentos passados. (p.46)



A mudança de significação, porém, consiste em que o pretérito perde a sua função gramatical, que é a de designar o passado. (em itálico no livro, p. 46)



Pois é somente a entrada em cena, ou seja, a expectativa da entrada da eu-origo fictícia dos personagens do romance, a razão para o desaparecimento da eu-origo real e concomitantemente, em consequência lógica, para a destituição pelo pretérito da sua função de passado. (eu-origo é um termo pelo qual a autora substitui, agumas vezes, sujeito-de-enunciação ou sujeito/personagem por questões epistemológicas. p. 53)



(…) o que significa do ponto de vista da Teoria Literária a noção de personagem fictício e por que é apenas a sua entrada em cena que dá à narração o caráter de não-realidade, tirando, consequentemente, ao imperfeito o seu significado de passado. (p. 53)



Pois nenhum texto pode esclarecer mais nitidamente que com este imperfeito desaparece a eu-origo do narrador, retira-se da narração, dando lugar às eu-origines fictícias dos personagens.


A expressão “não era nesse tempo de sua mocidade” não marca um tempo em relação ao presente do sujeito-de-enunciação, porém em relação ao próprio tempo da narrativa de Leonardo-Pataca, personagem que já começa a surgir como ser agente, quando a mimese aristotélica começa a ser introduzida. Na mocidade, ou já na velhice, muitos anos depois, Leonardo-Pataca continua a ser narrado no passado, que mostra assim o enriquecimento ficcional conseguido com esse tempo épico, em detrimento de sua temporalidade gramatical. 
 

Daqui em diante aparece o reverso da medalha. Segui-se a morte de D. Maria, a do Leonardo-Pataca, e uma enfiada de acontecimentos tristes que pouparemos aos leitores, fazendo aqui ponto final. (Memórias de um sargento de milícias. p. 209)


Alguns dados acima, secundados pela teoria da escritora alemã, devem ser destacados e resumidos:



1. Um enunciado de realidade é comandado por um sujeito-de-enunciação, que é sempre real. Um “aqui” espacial real – lugar de onde esse sujeito enuncia – e verbos com seus aspectos temporais também reais, por acontecerem em relação a um “sujeito que fala”, como conceituam as gramaticas, são exemplos linguísticos desse sujeito-de-enunciação. Quando surge um pretérito, o tempo é realmente pretérito. 

 

2. Há uma lógica da criação literária, da ficção, que é construída – e identificada, posteriormente, – por aspectos línguísticos, além da presença de personagens que agem e falam por si mesmos:

a. verbos situacionais e de processos internos – impossíveis de serem usados em enunciados reais – que surgem na narrativa.

b. verbos que estruturalmente estão no pretérito, mas são vazios de sua intencionalidade temporal. São mecanismos narrativos. Fazem parte do processo mimético aristotélico, ou seja, realizam-se na presença das personagens que agem e falam.

O estudo superficial feito aqui sobre toda a conceituação da “lógica” literária, feita por Käte Hamburger, não substitui o mergulho em seu livro. A intenção é apenas aguçar a curiosidade da/do visitante e incentivá-la (lo) a estudos mais aprofundados, para enriquecimento da pessoa leitora, chegando-se até à possibilidade de questionamentos ou refutação dos argumentos e conclusões da teórica. Possivelmente farei, em uma outra ocasião, um estudo sobre suas concepções sobre a narrativa em primeira pessoa, interessantes e inovadoras, sobre as quais tenho claras discordâncias. 

 

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