Pesquisar este blog

sábado, 19 de maio de 2012

O tempo da enunciação X o tempo do enunciado (diegese): anacronias – PARTE II

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais - RJ)
Neste artigo, será dado prosseguimento ao estudo das não coincidências temporais entre o caminho do narrar (enunciação) e o do enunciado, focalizando-se outro tipo de anacronia narrativa – alteração do tempo da progressão cronológica do texto – bem mais comum: a analepse (em inglês flash-back), que consiste em uma volta ao passado, em relação ao presente narrativo, para se dar conta a quem lê de elementos que ele desconhece.
 
Não trazia ideias adequadas ao convite, é verdade; vinha com a herança na cabeça, o testamento, o inventário, coisas que é preciso explicar primeiro, a fim de entender o presente e o futuro. Deixemos Rubião na sala de Botafogo, batendo com as borlas do chambre nos joelhos, e cuidando na bela Sofia. Vem comigo, leitor; vamos vê-lo, meses antes, à cabeceira do Quincas Borba. (QB, p. 644)

Citação intensamente esclarecedora, se percebe que os acontecimentos diegéticos (a história em si) ficam parados no tempo do presente (“Deixemos Rubião na sala de Botafogo”), enquanto o discurso enunciativo "pega a quem lê pela mão" e o conduz ao passado.
A prolepse, ao contrário do processo acima, é bem mais rara e difícil de ser encontrada, embora abunde em Memórias de um sargento de milícias. Configura-se como uma superficial antecipação do que virá mais adiante. Uma dessas situações, por rica nos dois tipos de anacronia, deve ser transcrita, comparada e comentada:

… Pelo meu ofício... verdade é que eu arranjei-me (há neste arranjei-me uma história que havemos de contar)...” (MSM, p. 16).

Observe-se que o narrador, nos parênteses, se intromete na fala da personagem e aponta para um tempo futuro. Mas essa noção de “futuro” se dá apenas no nível do discurso do narrador, ou seja, o esclarecimento será feito em páginas à frente (páginas 37-39). Na verdade, no entanto, nessas páginas, o esclarecimento se dará através de um flash-back em relação à vida da personagem, de como pôde estabelecer-se, no passado, como barbeiro. Então, o “futuro” se limita à enunciação, ao narrar; o “passado”, se dará no enunciado, na história propriamente dita.

Os leitores estarão lembrados do que o compadre dissera quando estava a fazer castelos no ar a respeito do afilhado, e pensando em dar-lhe o mesmo ofício que exercia, isto é, daquele arranjei-me, cuja explicação prometemos dar. Vamos agora cumprir a promessa. (MSM, p. 37).

O compadre decidiu-se a instituir-se herdeiro do capitão, e assim o fez.
Eis aqui como se explica o arranjei-me, e como se explicam muitos outros que vão aí pelo mundo. (MSM, p. 39)


Antecipando os acontecimentos, o enunciador, através desse seu tempo enunciativo, vai inoculando em quem faz a leitura a curiosidade pela progressão diegética.

A comadre continuou a aparecer daí em diante por um motivo que mais tarde se saberá. (MSM, p. 31)

Já vê pois o leitor que o negócio andava mal parado, e em breve saberá o resultado de tudo isso. (MSM, p. 35)


A comadre tinha uma sobrinha que vivia em sua companhia, e que lhe pesava sofrivelmente sobre as costas; desde há muito nutria por isso uma ideia de que o leitor mais tarde terá conhecimento quando ela se realizar... (MSM, p. 72).

Mas há um processo, de controle absoluto do narrador, que é o de resumir o tempo da narrativa, passando por cima de acontecimentos que são dispensáveis ao curso da história. Atente-se para o fato de que tais períodos, embora não constantes no discurso da enunciação, ficam, por um acordo tácito com a destinatária/o destinatário do texto, marcados como acontecidos: não ocorrem na enunciação, mas ocorreram no enunciado.

Unamos agora os pés e demos um salto por cima da escola, enfadonha escola, onde aprendi a ler, escrever, contar, dar cacholetas, apanhá-las, e ir fazer diabruras, ora nos morros, ora nas praias, onde quer que fosse propício a ociosos. (MBC, p.531)

Passemos por alto sobre os anos que decorreram desde o nascimento e batizado do nosso memorando, e vamos encontrá-lo já na idade de sete anos. (MSM, p. 9)


É mister agora passar em silêncio sobre alguns anos da vida do nosso memorando para não cansar o leitor repetindo a história de mil travessuras de menino no gênero das que já se conhecem... (MSM, p.51)

Agora vamos saltar por cima de alguns anos, e vamos ver realizadas algumas dessas esperanças. (MSM, p. 81)


Compor uma narrativa, dominar todos os seus aspectos – personagens, espaço, escolha do ponto de vista do narrador –, é uma difícil tarefa. Mas talvez uma das mais trabalhosas seja a de compor o tempo, trafegando entre a temporalidade diegética (da história) e a discursiva (do narrador), visto que tal dicotomia tem implicações profundas na economia narrativa.

Faça uma visita também a meus blogues Poema Vivo (link) e Conto-gotas (link).