Eliane
F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais)
O
estudo de hoje é sobre Mário Quintana.
Além
de poeta (1906-1994), foi tradutor e jornalista. Por sua importância
na literatura – em 1980, recebeu o prêmio Machado de Assis e em
1981, o prêmio Jabuti –, chegou a ser indicado para a Academia
Brasileira de Letras, embora a justiça não tenha sido feita. A
literatura perdeu pouco, pois seus textos não ficaram menos
magníficos por isso.
Se
seus poemas encantam, famosas ficaram, do mesmo modo, frases que
deliciam gerações:
Dos
grilos
Toda
a noite os grilos fritam não sei o quê. A madrugada chega, destampa
o panelão: a coisa esfria.
Da
relativa igualdade
Democracia?
É dar a todos o mesmo ponto de partida. Quanto ao ponto de chegada,
isso depende de cada um.
O
trágico dilema
Quando
alguém pergunta a um autor o que este quis dizer, é porque um dos
dois é burro.
Camuflagem
A
esperança é um urubu pintado de verde
O
pior
O
pior dos problemas da gente é que ninguém tem nada com isso.
Incorrigível
O
fantasma é um exibicionista póstumo.
Mentira?
A
mentira é uma verdade que se esqueceu de acontecer.
Provérbio
O
seguro morreu de guarda-chuva.
Mas
há um poema a ser estudado, que aprecio muito, e que se estrutura
sobre um tema que, como se verá adiante, tem, não só ligações
literárias, mas, ouso dizer, psicológicas, através dos sujeitos
líricos, com outro poema transcrito em seguida. Vamos lê-lo,
inicialmente.
Eu
nada entendo
Mário
Quintana
Eu
nada entendo da questão social.
Eu
faço parte dela simplesmente...
E
sei apenas do meu próprio mal,
Que
não é bem o mal de toda gente,
Nem
é deste Planeta... Por sinal
Que
o mundo se lhe mostra indiferente!
E
o meu Anjo da Guarda, ele somente,
É
quem lê os meus versos afinal...
E
enquanto o mundo em torno se esbarronda,
Vivo
regendo estranhas contradanças
No
meu vago País de Trebizonda...
Entre
os Loucos, os Mortos e as Crianças,
É
lá que eu canto, numa eterna ronda,
Nossos
comuns desejos e esperanças!...
(In
Nariz de vidro – São Paulo:
Moderna, 1984, p.17)
A
primeira observação a ser feita é de que há, nitidamente, uma
ruptura entre o mundo indiferente de toda gente, que se posta de um
lado, e aquele “eu” e seu Anjo da Guarda, que se postam no mesmo
lado que os Loucos, os Mortos e as Crianças.
E
há até a fixação de espaços diferentes para esses dois mundos:
um está neste “Planeta”; mas o sujeito poético constrói para
si e seus pares um “vago País de Trebizonda”, um “lá”, onde
é possível cantar, “numa eterna ronda,/Nossos comuns desejos e
esperanças”, sentimentos – “E sei apenas do meu próprio mal”
– a que o mundo se mostra indiferente.
É
importante observar que esse vago país é um local de exceção,
onde pode penetrar o Anjo da Guarda, que, afinal, é o único que lê
os versos desse sujeito poético, compartilhando-lhe o mal e, ainda,
seus desejos. Um local subjetivo onde é possível a realização de todas as ações e sonhos interditos no Planeta de onde o eu poético se evade.
Mas
a porta secreta dessa terra particular – seriam
os versos a
chave incógnita? – é
aberta a outras entidades
excepcionais, como os mortos, as crianças e os loucos, porque
sempre exclusos dos limites
do senso comum. A poesia –
e poetas, como seres igualmente de exceção –, como se conclui,
transita, igualmente, muito além dos padrões aceitos nas “questões
sociais”.
Vale a pena ler, agora, o poema de
Manuel Bandeira, citado no início e se verificar como tange,
similarmente, o tema do território inatingível da bem-aventurança,
só alcançado através da poesia.
Vou-me
Embora pra Pasárgada
Manuel
Bandeira
Vou-me
embora pra Pasárgada
Lá
sou amigo do rei
Lá
tenho a mulher que eu quero
Na
cama que escolherei
Vou-me
embora pra Pasárgada
Vou-me
embora pra Pasárgada
Aqui
eu não sou feliz
Rainha
e falsa demente
Vem
a ser contraparente
Da
nora que nunca tive
E
como farei ginástica
Andarei
de bicicleta
Montarei
em burro brabo
Subirei
no pau-de-sebo
Tomarei
banhos de mar!
E
quando estiver cansado
Deito
na beira do rio
Mando
chamar a mãe-d'água
Pra
me contar as histórias
Que
no tempo de eu menino
Rosa
vinha me contar
Vou-me
embora pra Pasárgada
Em
Pasárgada tem tudo
É
outra civilização
Tem
um processo seguro
De
impedir a concepção
Tem
telefone automático
Tem
alcaloide à vontade
Tem
prostitutas bonitas
Para
a gente namorar
E
quando eu estiver mais triste
Mas
triste de não ter jeito
Quando
de noite me der
Vontade
de me matar
—
Lá sou amigo do rei —
Terei
a mulher que eu quero
Na
cama que escolherei
Vou-me
embora pra Pasárgada.
(In Estrela da vida Inteira.
Rio de Janeiro, S. Paulo: Record, /s.d./, p.143-144)
Não é coincidência o fato de aqui
também surgir a presença do Louco - “Que Joana a Louca de Espanha
–, entrelaçado ao sujeito poético, apontando, novamente, para o
ser excêntrico, aqui empregado no sentido mesmo de “afastado ou
desviado de fora do centro”, numa terra subjetiva, um País de
Trebizonda, ora nomeado Pasárgada: “ Em Pasárgada tem tudo/É
outra civilização”.
Como se pode perceber, Trebizonda e Pasárgada são o território de todas as possibidades, a terra prometida do eu lírico doada a si mesmo.
Como se pode perceber, Trebizonda e Pasárgada são o território de todas as possibidades, a terra prometida do eu lírico doada a si mesmo.
Para fechar a argumentação, novo e
belíssimo texto do mesmo Mário Quintana.
Mário
Quintana
Se
eu fosse um padre, eu, nos meus sermões,
não
falaria em Deus nem no Pecado
–
muito menos no Anjo Rebelado
e
os encantos das suas seduções,
não
citaria santos e profetas:
nada
das suas celestiais promessas
ou
das suas terríveis maldições...
Se
eu fosse um padre eu citaria os poetas,
Rezaria
seus versos, os mais belos,
desses
que desde a infância me embalaram
e
quem me dera que alguns fosse meus!
Porque
a poesia purifica a alma
…
e um belo poema – ainda que Deus
se aparte –
um
belo poema sempre leva a Deus!
(Na
mesma obra de Mário Quintana, p. 44)