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domingo, 5 de janeiro de 2014

O bem-aventurado mundo da poesia


Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais)

O estudo de hoje é sobre Mário Quintana.
Além de poeta (1906-1994), foi tradutor e jornalista. Por sua importância na literatura – em 1980, recebeu o prêmio Machado de Assis e em 1981, o prêmio Jabuti –, chegou a ser indicado para a Academia Brasileira de Letras, embora a justiça não tenha sido feita. A literatura perdeu pouco, pois seus textos não ficaram menos magníficos por isso.
Se seus poemas encantam, famosas ficaram, do mesmo modo, frases que deliciam gerações:

Dos grilos
Toda a noite os grilos fritam não sei o quê. A madrugada chega, destampa o panelão: a coisa esfria.

Da relativa igualdade
Democracia? É dar a todos o mesmo ponto de partida. Quanto ao ponto de chegada, isso depende de cada um.

O trágico dilema
Quando alguém pergunta a um autor o que este quis dizer, é porque um dos dois é burro.

Camuflagem
A esperança é um urubu pintado de verde

O pior
O pior dos problemas da gente é que ninguém tem nada com isso.

Incorrigível
O fantasma é um exibicionista póstumo.

Mentira?
A mentira é uma verdade que se esqueceu de acontecer.

Provérbio
O seguro morreu de guarda-chuva.

Mas há um poema a ser estudado, que aprecio muito, e que se estrutura sobre um tema que, como se verá adiante, tem, não só ligações literárias, mas, ouso dizer, psicológicas, através dos sujeitos líricos, com outro poema transcrito em seguida. Vamos lê-lo, inicialmente.

Eu nada entendo

Mário Quintana

Eu nada entendo da questão social.
Eu faço parte dela simplesmente...
E sei apenas do meu próprio mal,
Que não é bem o mal de toda gente,

Nem é deste Planeta... Por sinal
Que o mundo se lhe mostra indiferente!
E o meu Anjo da Guarda, ele somente,
É quem lê os meus versos afinal...

E enquanto o mundo em torno se esbarronda,
Vivo regendo estranhas contradanças
No meu vago País de Trebizonda...

Entre os Loucos, os Mortos e as Crianças,
É lá que eu canto, numa eterna ronda,
Nossos comuns desejos e esperanças!...
(In Nariz de vidro – São Paulo: Moderna, 1984, p.17)


A primeira observação a ser feita é de que há, nitidamente, uma ruptura entre o mundo indiferente de toda gente, que se posta de um lado, e aquele “eu” e seu Anjo da Guarda, que se postam no mesmo lado que os Loucos, os Mortos e as Crianças.
E há até a fixação de espaços diferentes para esses dois mundos: um está neste “Planeta”; mas o sujeito poético constrói para si e seus pares um “vago País de Trebizonda”, um “lá”, onde é possível cantar, “numa eterna ronda,/Nossos comuns desejos e esperanças”, sentimentos – “E sei apenas do meu próprio mal” – a que o mundo se mostra indiferente.
É importante observar que esse vago país é um local de exceção, onde pode penetrar o Anjo da Guarda, que, afinal, é o único que lê os versos desse sujeito poético, compartilhando-lhe o mal e, ainda, seus desejos. Um local subjetivo onde é possível a realização de todas as ações e sonhos interditos no Planeta de onde o eu poético se evade.
Mas a porta secreta dessa terra particular – seriam os versos a chave incógnita? – é aberta a outras entidades excepcionais, como os mortos, as crianças e os loucos, porque sempre exclusos dos limites do senso comum. A poesia – e poetas, como seres igualmente de exceção –, como se conclui, transita, igualmente, muito além dos padrões aceitos nas “questões sociais”.
Vale a pena ler, agora, o poema de Manuel Bandeira, citado no início e se verificar como tange, similarmente, o tema do território inatingível da bem-aventurança, só alcançado através da poesia.

Vou-me Embora pra Pasárgada

Manuel Bandeira

Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada

Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz

Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
Da nora que nunca tive

E como farei ginástica
Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe-d'água
Pra me contar as histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada

Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone automático
Tem alcaloide à vontade
Tem prostitutas bonitas
Para a gente namorar

E quando eu estiver mais triste
Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
— Lá sou amigo do rei —
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada.
(In Estrela da vida Inteira. Rio de Janeiro, S. Paulo: Record, /s.d./, p.143-144)

Não é coincidência o fato de aqui também surgir a presença do Louco - “Que Joana a Louca de Espanha –, entrelaçado ao sujeito poético, apontando, novamente, para o ser excêntrico, aqui empregado no sentido mesmo de “afastado ou desviado de fora do centro”, numa terra subjetiva, um País de Trebizonda, ora nomeado Pasárgada: “ Em Pasárgada tem tudo/É outra civilização”.
Como se pode perceber, Trebizonda e Pasárgada são o território de todas as possibidades, a terra prometida do eu lírico doada a si mesmo. 
Para fechar a argumentação, novo e belíssimo texto do mesmo Mário Quintana.

Mário Quintana

Se eu fosse um padre, eu, nos meus sermões,
não falaria em Deus nem no Pecado
– muito menos no Anjo Rebelado
e os encantos das suas seduções,

não citaria santos e profetas:
nada das suas celestiais promessas
ou das suas terríveis maldições...
Se eu fosse um padre eu citaria os poetas,

Rezaria seus versos, os mais belos,
desses que desde a infância me embalaram
e quem me dera que alguns fosse meus!

Porque a poesia purifica a alma
… e um belo poema – ainda que Deus se aparte –
um belo poema sempre leva a Deus!
(Na mesma obra de Mário Quintana, p. 44)


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