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domingo, 31 de maio de 2015

O inédito no recorrente, um dos traços da trama criativa de Marina Colasanti - parte I

Eliane F.C.Lima
 
Hoje pretendo comentar um aspecto que considero bastante relevante: de onde quem escreve pode partir para criar um texto literário. Conforme comentário meu em outra postagem, já tínhamos percebido que o ponto de partida de Machado de Assis, em Dom Casmurro, era o Otelo, de Shakespeare, inclusive, a citação ao texto anterior sendo frequente no próprio romance.
Esse olhar sobre algo pré-existente à obra, ao qual me referirei agora, é apenas uma possibilidade para a/o artista da palavra, claro. Não se deve tomar como norma e se passar a procurar sempre uma pré-existência como gênese de um texto literário. Tal procedimento, entretanto, pode ser identificado, com frequência, no livro Contos de amor rasgados – Rio de Janeiro, editora Rocco, 1986 –, de Marina Colasanti, e deve ser entendido, apenas, como uma característica de tal obra, sem generalizações sobre a autora nem sobre a literatura como um todo. Deve ser percebido, além disso, que esse “recorrente”, ou seja, o material que é chamado aqui de “pré-existente” e do qual parte a escritora para criar o seu “inédito”, tem naturezas as mais diversas, as quais serão analisadas em momentos diferentes.
Nesta parte I, iremos fazer uma leitura de dois contos, onde se podem identificar, como ponto de partida, duas expressões que são corriqueiras, fazem parte do senso comum e não trazem em si nada de extraordinário. Extraordinário, porém, serão os textos que Marina constrói e o efeito que obtém.


Melhor um mágico na mão do que dois voando

Discretamente maquilado, sorri o pálido rosto do mágico debaixo dos refletores, enquanto no alto a mão volteia, se espalma, e em gesto de quase dança mergulha seca na cartola.
Mas algo parece retê-la lá dentro. Esforça-se o mágico, puxa, joga para trás o peso do corpo. Tenta sorrir para o público. E já o antebraço afunda na cartola, some o cotovelo. Ainda luta cravando a outra mão no tampo da mesinha. Depois os pés. Inútil. O ombro é tragado no vórtice das abas, nem se salvam o pescoço esticado, a cabeça. Diante da platéia expectante que acredita tratar-se de um novo truque, todo o corpo desaparece pouco a pouco, num último adejar das caudas do fraque.
No fundo de cetim preto, triunfa o coelho. Pela primeira vez, conseguiu botar um mágico na cartola.

(COLASANTI, Marina, p. 149)

O título do conto já nos remete à anterioridade do ditado “Mais vale um pássaro na mão do que dois voando”.  Mas o texto em si parte de antigo e conhecidíssimo truque dos mágicos de tirarem coelhos de suas cartolas. Nada de excepcional. O final, no entanto, inverte a lógica da ação. Como se perceberá, essa é uma das técnicas dos contos da obra. É o uso novo sobre o velho, digamos assim, que surpreende quem lê: a subversão torna-se o literário. Podemos ir além e surpreender uma vingança (gostará um coelho de ficar preso em uma cartola e ser retirado pelas orelhas?) do “explorado”, chamemos desse modo. Vê-se que aquele “melhor” do título, mais do que uma escolha do narrador, já é um atributo subjetivo do “vingador” antecipando o que virá no conto. O final de um outro conto – “Com a chegada da primavera”, p. 79 – é também bastante enfático e esclarecedor nesse aspecto:

Aproximou-se o homem com seu canivete e, escolhendo as mais bonitas, degolou-lhes o caule, empunhando o buquê que levaria para enfeitar alguma casa. Não teve tempo de fazê-lo. Antes que deixasse o jardim, as flores o
arrancaram, daninho.

Como se vê, o ditado “Um dia é da caça, outro do caçador” – ditados são exemplos concretos da sabedoria coletiva anterior a qualquer texto – pode ter uma realização literária.

O segundo conto também parte de uma ação corriqueira e que acompanha o ser humano, desde o primitivo: pescar peixes. Mas a escritora consegue criar um texto atual, que, mais do que ficcional, tem um forte apelo poético.

No mar sem hipocampos

Assim que anoiteceu, saiu para pescar. Peixes não, estrelas.
Afastou-se da casa, atravessou um campo até o seu limite.
Na linha do horizonte, sentado à beira do céu, abriu a caixa das frases poéticas que havia trazido como iscas. Escolheu a mais sonora, prendeu-a firmemente na rebarba luzidia.
Depois, pondo-se de cabeça para baixo, lançou a linha no imenso azul, deixando desenrolar todo o molinete.
E paciente, enquanto a Lua avançava sem mover ondas, começou a longa espera de que uma estrela viesse morder o seu anzol.
(COLASANTI, Marina, p.159)


De início, podemos observar o título novamente. O termo “hipocampo” substitui a palavra “peixes”, que seria o esperado. Então, a quebra do “que seria o esperado” já começa a instaurar o nonsense, que é a grande marca dos textos abordados e domina o acima do mesmo modo. E não é só o significado do hipocampo natural – cavalo-marinho – que devemos procurar: hipocampo é também uma personagem fantástica mitológica, metade cavalo, metade peixe, o que nos remete ao gênero “maravilhoso” da literatura. O espaço on-line E-Dicionário de termos literários (link), de Carlos
Ceia, em texto de Isabel Mascarenhas, nos dá uma descrição.

MARAVILHOSO

Género da literatura do (sobre)natural teorizado por Tzvetan Todorov em Introduction à la littérature fantastique (1970). Segundo este autor, o maravilhoso é o género onde se incluem as obras nas quais não é possível qualquer explicação racional para os fenómenos (sobre)naturais. O herói e o leitor implícito de uma narrativa maravilhosa aceitam sem surpresa novas leis da natureza. A definição do género maravilhoso é determinada na relação que Todorov estabelece com os géneros que lhe são próximos, isto é, o género fantástico em que o herói e o leitor mantém a hesitação entre uma explicação natural e (sobre)natural dos fenómenos ao longo da narrativa e o género estranho onde é fornecida uma explicação racional dos fenómenos insólitos, mantendo-se desse modo intactas as leis da natureza. Seguindo o critério dicotómico racionalidade/irracionalidade, os três géneros distribuem-se esquematicamente em género estranho/fantástico/maravilhoso.

Vemos, logo, que esse “mar sem hipocampos” é o céu e mesmo não sendo marcado por tais seres naturais e/ou mitológicos, através da ação da personagem que pesca, mantém seu aspecto de maravilhoso: as expressões “pescar”,  “iscas”,  “linha”,  “molinete”, “ondas”,  “morder o seu anzol” são alteradas em sua “normalidade” por outras, que, relacionadas a elas, pertencem a outro campo semântico 
“estrelas”, “sentado à beira do céu” e, acompanhadas de outras expressões “frases poéticas”, “a mais sonora”, “de cabeça para baixo”, “a Lua avançava sem mover ondas” –, inauguram outra isotopia.*
A poeticidade do texto, então, está no fato de que, para pescar estrelas, é necessário frases poéticas como iscas. Não menos, a humanidade da pessoa leitora. 


* Para outro nível de interpretação e leitura.

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