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quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

Parte II - Os fenômenos fundamentais da Criação Literária

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais - Rio de Janeiro)


Hoje vou fazer a segunda postagem sobre a teoria de Käte Hamburger, a estudiosa alemã sobre a qual se falou anteriormente. Serão colocados aqui alguns pontos fundamentais anteriores, embora resumidos, para que a/o visitante consiga acompanhar o que vem pela frente.

1. Ela segue o caminho da “lógica” da criação literária, em detrimento da busca estética. Esse encontro da “lógica” se dá, essencialmente, por aspectos linguísticos.
2. Na busca dessa lógica, focalizará a tensão conceitual entre “criação literária” (apenas como literatura narrativa e dramática) e “realidade” (“realidade” em seu sentido de confronto ou relação com a ficção).
3. Ela segue, ainda, o pensamento aristotélico da mimesis (como sinônimo de poiesis) como ficção em que a personagem surge no texto através de suas próprias ações e de sua voz.
4. Propõe que se estude e estabeleça a linguagem da criação literária justamente pela diferença com a linguagem da realidade.
5. Para isso, vai pelo caminho inverso: examina os critérios da linguagem não poética, ou seja, da linguagem comprometida com a realidade, o sistema enunciador da linguagem, do enunciado de realidade.

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Faremos, então, a partir daqui um estudo do enunciado de realidade - “ toda enunciação é uma expressão da realidade”, disse a escritora –, usando para isso textos publicados aqui no Brasil, para maior entendimento da pessoa leitora brasileira e porque, em síntese, é a nossa cultura que nos interessa, afinal. Para tal, no entanto, é necessário que se entre antes em contato com certos conceitos estabelecidos pela estudiosa.

Enunciado

O enunciado, que sempre é um enunciado de realidade, é a enunciação de um sujeito-de-enunciação sobre um objeto-de-enunciação (o conteúdo). O caráter e a função do enunciado são reconhecidos pelo enfoque no sujeito-de-enunciação.

Enunciação

Apresenta-se como a estrutura sujeito/objeto da língua. No enunciado “eu enuncio algo” (enunciação em si): o enunciado é a enunciação de um sujeito (eu) sobre o objeto (algo). A fórmula de enunciação, segundo a filósofa alemã, não é válida para a criação do gênero narrativo, o que é um dado extremamente relevante como diferencial para se conhecer o genêro narrativo. Mas ela é válida em todo o domínio restante da linguagem. A estudiosa também reconhece a validez da fórmula da enunciação para a criação lírica. Como afirma que toda enunciação é uma expressão da realidade e fundamento para determinar a diferença “realidade” X “criação literária”, já podemos inferir que Käte, então, aparta o gênero lírico da criação literária e o aproxima da realidade.

Guardemos esses dois dados:
1. A presença da fórmula de enunciação (expressão da realidade) indica que não há ali gênero narrativo.
2. Há validez da fórmula da enunciação (expressão da realidade) para a criação lírica também. O gênero lírico estaria próximo da realidade e longe da criação literária.


Objeto-de-enunciação

O objeto é o conteúdo da enunciação em qualquer modalidade proposicional (enunciativa/declarativa; exclamativa; interrogativa etc).


Sujeito-de-enunciação:

Não confundi-lo com o eu-emissor da comunicação que se opõe a um “tu-receptor”, fora do texto (eu-emissor/tu-receptor). O sujeito-de-enunciação sempre enuncia exclusivamente em relação a seu objeto-de-enunciação (sujeito/objeto). O sujeito-de-enunciação é o elemento estrutural da estrutura da linguagem. A análise do sujeito-de-enunciação converte o enorme campo temático-material dos enunciados em um sistema de três categorias:
a. sujeito histórico – definido, individual. ex.: presente em uma carta.
b. sujeito teórico: geral, interindividual. ex.: responsávelpor uma sentença matemática, texto científico ou lógico; texto teórico, enfim.
c.sujeito pragmático: quer algo referente ao objeto-de-enunciação. ex.: pergunta, ordem, pedido.
Examinemos o texto abaixo, retirado de Michelangelo, da Coleção “Mestres da pintura”, da Abril Cultural, 1 ed, 1977, página 6, e que é identificado, no final do livro como de José Arrabal Fernandes Filho, responsável também pela pesquisa.

Nos seus 89 anos de vivência no mundo das artes e no universo social europeu, Michelangelo ascendeu a uma estatura jamais alcançada anteriormente por qualquer outro artista. Viveu um tempo de gênios e de obras grandiosas, numa época de grandes transformações nas mentalidades, na economia e na política.

Objeto-de-enunciação: biografia do escultor Michelangelo Buonarroti.

Sujeito-de-enunciação: um biógrafo (sabe-se depois), que pesquisa e escreve o texto, por encomenda da Coleção “Mestres da pintura”. É um sujeito-de-enunciação geral, interindividual. Está de tal modo indefinido, que seu nome nem aparece encabeçando o texto e só ao final da publicação, por uma questão legal, provavelmente, é citado. Tal sujeito-de-enunciação teórico, entretanto, apesar dessa busca pela objetividade textual, por seu apagamento, também é um sujeito real.

Começamos a reconhecer que esse é um enunciado de realidade. Mas, conforme nos ensina a teórica, não é a realidade do objeto o que dá a esse enunciado seu caráter de realidade, senão a do sujeito-de-enunciação, sujeito identificado como real.
Nesse caso, como é um enunciado e de realidade, com um sujeito-de-enunciação real, já podemos afirmar, com Käte Hamburguer, que não é um texto de criação literária.

Para enfatizar e esclarecer isso melhor, fazendo um paralelo com o que diz a estudiosa, devemos nos reportar ao filme documentário “Cinco vezes Chico – o velho e sua gente”, recentemente lançado, em que vários pescadores, seguindo o ritual da “mentira”, fazem relatos flagrantemente imaginativos e grandiosos, para delícia dos espectadores. Pois bem, esses relatos, ao contrário do texto lido acima, embora tenha objetos-de-enunciação invencionados, termo da própria escritora, são enunciados de realidade, porque seus sujeitos-de-enunciação são reais, eles são o fator decisivo. Como a escritora afirma na página 30:

A enunciação sempre é real, porque o sujeito-de-enunciação é real, porque, com outras palavras, uma enunciação somente pode ser constituída por um sujeito-de-enunciação real, autêntico.

É somente com o esclarecimento da noção de realidade concernente ao sujeito-de-enunciação que se pode iluminar a estrutura do enunciado de realidade (…).

Então, invencionado ou real, não é o objeto o marcador do enunciado, mas o sujeito-de-enunciação.

No prefácio de Manuel Bandeira a Cartas a Manuel Bandeira, de Mário de Andrade, provavelmente livro póstumo, da Ediouro, Coleção Prestígio (sem indicação de data ou edição), diz o poeta:

Tive com Mário de Andrade uma correspondência epistolar que se iniciou em 1922 e se prolongou sem interrupção até a sua morte. Mário escreveu milhares de cartas. Nunca deixou carta sem resposta. Creio, no entanto, que as de nossa correspondência têm importância especial, porque comigo ele se abria em toda a confiança, de sorte que estas cartas valem por um retrato de corpo inteiro, absolutamente fiel. (p. 13)


Aqui também temos um enunciado de realidade, cujo objeto-de-enunciação são as cartas do escritor modernista Mário de Andrade e um pouco de sua personalidade. Mas, continuemos a entender que, o que faz esse compromisso com a realidade, é a enunciação de um sujeito real, aqui classificável como sujeito histórico, porque definido, individual. Notemos a presença dos verbos e pronomes de primeira pessoa, ali, personalíssimos. Como diz Käte Hamburger, na página 34: “o que foi enunciado é o campo da experiência ou de vivência do sujeito-de-enunciação.”

A próxima postagem irá analisar, finalmente, textos narrativos, ficcionais. Confrontando-os com os argumentos caracterizadores do enunciado (de realidade), ressaltar e definir a “lógica” da criação literária.


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