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sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

"O QUINZE": testemunho da seca, da exploração social e da ultrapassagem dos limites ficcionais de uma mulher - PARTE I

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais – RJ)


Com a seca que o Sudeste vem enfrentado, neste ano de 2015 – o país tem ignorado o sofrimento do Nordeste todos esses anos –, me veio à lembrança o romance O Quinze (publicado em 1930), de Rachel de Queiroz (1910 - Ceará - 2003 - Rio de Janeiro), a primeira mulher a ser eleita para a Academia Brasileira de Letras, em 1977. O tema subjacente, através da ficção, é a terrível seca de 1915 que fez com que milhares de nordestinos, abandonados à própria sorte por aqueles que os exploravam durante o resto do tempo, tivessem de abandonar suas casas – a maioria trabalhava como colono em terras de pequenos proprietários ou latifundiários – e fugir para a capital, onde havia alguma ajuda do governo. Praticamente isolados em guetos (remeto para o link, onde há notícia mais detalhada sobre isso.), muitos continuavam a passar a fome e a morte, as quais enfrentaram na fuga, sob o sol abrasante. A bagaceira, de José Américo de Almeida (publicado em 1928) trata do mesmo tema, bem como, mais tarde, Vidas secas (1938), de Graciliano Ramos.

O romance da escritora, escrito aos 19 anos, foi recebido com aplausos, mas uma sociedade ainda muito mais machista do que hoje, gostou do texto e, por isso, duvidou da autoria de mulher. A autora fugia dos temas intimistas que as escritoras de então perseguiam. O próprio Graciliano Ramos confessa que, quando leu, imaginou que fosse “pseudônimo de sujeito barbado.”

A explicação literal e sem rodeios estaria nas palavras de outro analista, Augusto Frederico Schmidt, que elogiando o romance diz:


Nada há no livro de D. Rachel de Queiroz que lembre, nem de longe, o pernosticismo, a futilidade, a falsidade da nossa literatura feminina. É o livro de uma criatura simples, grave e forte, para quem a vida existe.


Numa penada só, elogia a escritora, mas ofende todo um segmento enorme da sociedade, o das mulheres e de suas representantes escritoras. Observe-se que, seu critério e definição de “vida” passa, exclusivamente, pela maneira masculina de ver o mundo, o mais não “existe”. Como bom representante da sociedade patriarcal que é, para Schmidt, é o universo feminino que não existe.
Adiante, é possível se surpreender, sem possibilidade de dupla interpretação de seu pensamento, que conceito tem sobre uma mulher, pois vai bastante além de refletir sobre escritoras:



Vê-se bem que a Autora ficou dentro da sua experiência – contentou-se com o que podia fazer –, não foi além das suas possibilidades psicológicas e por isso foi feliz.



É revoltante o encontro de quem lê com as expressões “ficou dentro”, “contentou-se”, “podia”, “não foi além”: o elogio à escritora se deve, justamente, por ela não ter pretendido ultrapassar os limites que a sociedade rigidamente estabelecia para as mulheres e que ele aplaude com veemência. E esse homem é um formador de opinião, cuja publicação saiu em “As novidades literárias, artísticas e científicas”, publicação da época. A avaliação dele a respeito das mulheres é tão depreciativa que, sem muito esforço, pode-se pressentir que ele exorta escritoras – lembremo-nos do que ele achava sobre a literatura feminina de uma maneira geral – a não irem além de “sua experiência “ – de mulher? – e de “suas possibilidades psicológicas” – as mulheres seriam limitadas nesse quesito!

Por outro lado, embora, segundo ele, a autora se prendesse a seus limites psicológicos – ela deve ter percebido que “não passava de uma mulher”, segundo a letra da canção de Martinho da Vila (recomendo a leitura da letra e crítica sobre ela no link.) –, seu tema não é o mesmo da literatura intimista e subjetiva das escritoras de então, fase fundamental e compreensível no começo da assunção das mulheres da reflexão sobre si mesmas. Segundo ele, ela pega um tema masculino – a reflexão sobre a vida social, ou seja, fora dos limites femininos do domus (da casa) –, daí o estranhamento de Graciliano, que “existe” na “vida”, mas o trata sem a arrogância que, de acordo com Schmidt, uma mulher não deve ter. Que diria ele hoje sobre um romance como O matador, de Patrícia Melo?

Na próxima postagem, iremos refletir sobre certos aspectos do texto da escritora.



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