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1 . A nova literatura brasileira: personagem masculina, escritura de mulher

Eliane F.C. Lima

O presente artigo (1) é uma leitura atenta da coletânea 25 mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira, organização de Luiz Ruffato, especificamente, no que ela pode representar de um olhar artístico de mulher como delineador de um perfil masculino. O  tema desta análise foi sugerido, indiretamente, pelo comentário de Regina Dalcastagnè,1 sobre as escritoras, aposto nas contracapas da referida coletânea, quanto ao fato de que “ainda se possa distinguir um tom mais confessional, que a convenção nos ensinou a considerar 'feminino'” e “o predomínio de protagonistas mulheres, como se falar dos homens não lhes coubesse.”
        Sobre o tom confessional da escritura da mulher autora, a própria estudiosa ressalva, lucidamente, que foi a convenção a atribuir a ela tal característica, e é possível, primeiro, se contrapor a argumentação de que há um número enorme de textos de autoria de homens, marcadamente confessionais e que, em segundo, cabe a pergunta sobre o que é um texto com tom confessional. Narrado em primeira pessoa e falando de si e de suas dúvidas e questões? Se o critério for esse, cai-se na armadilha de se considerar Dom Casmurro um texto de caráter confessional: Bentinho, um homem torturado pela dúvida e pelo ciúme, já maduro, empreende uma narrativa autobiográfica, tentando justificar suas ações em relação à mulher amada e ao filho, enumerando juízos subjetivos sobre o comportamento daquela.
         Do mesmo modo do que acontece no romance citado de Machado, em alguns contos narrados da coletânea em estudo a narrativa é assumida,  ficcionalmente, por uma voz  feminina em primeira pessoa. E é um erro bastante primário se confundir narrador – é um ente personagem e, portanto, ficcional – e autora.
      Este  estudo visa a fazer uma varredura em como as mulheres textuais, protagonistas ou não – na verdade isso não é fundamental – enfocam os homens em suas narrativas.
    Inicia-se citando que onze contos desta coletânea são enunciados em primeira pessoa, com um narrador feminino e outros seis têm, ainda, a mulher como centro de seu interesse direto. Mas também se verifica que, em quase todos os textos, de forma clara ou tangencial, esses homens narrativos são “falados” por suas criadoras, sem deixarem, entretanto, de fixarem as próprias mulheres como objetos de seu interesse. Tendo sido negada às mulheres, escritoras ou não, o direito a voz, durante tanto tempo, pode-se considerar sadio e natural essa orgia da mulher, finalmente, falar de si por sua boca mesma.
Deve-se salientar, todavia, que não há nenhuma presunção de que esse perfil seja uma verdade antropológica para as escritoras aqui analisadas e que se mantém sempre o entendimento de que ficção é uma licença para voos imaginativos, sem compromisso estrito com a crença ou a verdade pessoal do escritor. Escrever é empreender uma viagem dentro de uma nave chamada fantasia.
A análise se inicia com uma visão mais superficial e abrangente dessa personagem masculina em seus aspectos comuns, mas parte, aos poucos, para um aprofundamento desse perfil e do relacionamento feminino-masculino que surge desse exame: há contos em que a presença do homem é encoberta parcial ou inteiramente ou em que o homossexualismo feminino ou masculino inviabilizam a contraparte sexual; há contos em que a voz masculina assume a narrativa e se autodefine ou aqueles em que o embate dos gêneros apresenta-se sob uma alomórfica relação mãe-filho.
Em tramas dramáticas ou francamente humorísticas, o homem, de uma forma mais geral, é caracterizado negativamente: indeciso e sensível a ponto de chorar, como nos contos “Psycho” e “Uma alegria”; infantil – nomeadamente “um moleque um menino”, no citado anteriormente, –; meio maníaco e superficial, como em “Flor roxa”; capaz do estupro e da tortura, como em “Mundos paralelos”; alcoólatra, como se vê em “D.T.”; inseguro, mal-humorado e solitário, como se apresenta em “Nós, os excêntricos idiotas”; “tristonho”, “enfadonho”, “entediado”, “bobão”, como o príncipe que se vê em “Silver Tape”, ou simplesmente incluído no rol dos “homens idiotas”, enunciados em “Bondade”, até a extrema caracterização das personagens de “O sétimo mês”: o “hipocondríaco”, “macho predador”, “homem hipersentitivo” (sic), “dado a rompantes histéricos tão femininos”, no caso de Fred, ou com “surto psicótico”, caso de Otto, que “Parecia mais uma mulher tendo surto de parto, só que era um homem...”. E é de tal conto o trecho hiperbólico destacado a seguir, o qual, se por um viés gozador, radicaliza uma visão feminina, mesmo levada em consideração a intenção satírica, pode ser significativo do discurso geral com que esse homem é surpreendido nos textos: “...se viraria contra ela como um bicho-papão de pesadelo infantil, uma hidra de sete cabeças, um crocodilo esfomeado. E o réptil abriria a sua tremenda bocarra esverdeada, cheia de algas e dentes pontiagudos, à cata de carne jovem e de sangue, e a comeria viva.”(p.102).
Descer a algumas considerações mais detalhadas, no entanto, é possível em vários contos.
Pode-se começar pelo estudo de dois textos que, apesar de não contrariarem o perfil genérico do homem esboçado em toda a coletânea,  são aqui referidos de forma particular por anexarem uma presença feminina com uma função especial no relacionamento de gênero.
Se no conto “Um oco e um Vazio”, de Cíntia Moscovich, a narrativa, aparentemente, delimitava, através da protagonista, a figura feminina como dependente, submissa, em última análise, inferior, na economia significativa do texto, resgatada por uma aprendizagem que se visualiza como sexual, mas que amplia suas fronteiras, a posição se clarifica e, ao final, se inverte conforme se depreende por “Cobriu-o com o lençol, protegendo-o”, posição que se resume, de forma conclusiva, naquele “piedosa” final (p.273).
Em “Uma alegria”, de Cláudia Lage, a protagonista, mesmo em uma idade que a afasta, extremamente, no tempo, da personagem do conto anteriormente aludido, movimenta-se, narrativamente, dentro da mesma posição hierárquica de gênero, o que põe em relevo a absorção, no universo representativo da literatura, do já tão discutido papel da mulher na sociedade. Mas aqui a aprendizagem sexual se extrema, porque além de ser empreendida de forma solitária pela própria mulher, revela um homem inseguro, atônito, infantil, que desequilibrado e destituído de seu pedestal apolíneo, é conduzido, já agora, pela experiência feminina, embora de forma não intencional, para uma posição de equidade que, ao contrário do que se poderia supor, os faz atingir, juntos, finalmente, a felicidade.
Caminhando na sondagem da figura do homem, pode-se localizar alguns contos em que tal presença é praticamente eclipsada, como o texto de Nilza Rezende, “Por acaso”: essa figura aparece pulverizada na idéia genérica do “amor”, do “casamento”, no aproveitamento da trilogia bíblica, resgatada para “pai, mãe e filho” ou, aprisionada em um interlocutor mudo, sem opinião ou reação, possivelmente, apenas um elemento do fluxo de pensamento que domina o conto, vê-se, praticamente,  desmaterializada.
No conto “Mãe, o cacete”, de Ivana Arruda Leite, a importância do masculino, pelo menos em seu papel parental,  se estabelece na pergunta derradeira –  “ – E pai...o que é um pai pra você?” –, cuja resposta reveladora imaginada pelo leitor deve preencher um não-discurso, que, como vazio narrativo, magistralmente, termina por se configurar, então, em um recurso enunciativo ficcional judicativo, o que, por sua vez, suaviza e libera a figura materna de todas as suas  qualidades negativas enumeradas...mas presentes, afinal.
No conto “Desalento”, de Tatiana Salem Levy, identifica-se uma figura de pai, absolutamente sem qualificações, par de um relacionamento desfeito, cujo único indício é aquele “mulher do pai” (p.216), a respeito de uma fotografia, sem registro de emoção ou sentimento da protagonista, impossibilitados, em última análise, pela presença colossal da dor maior da perda do filho, a qual, como uma avalanche, preenche todos os espaços.
O extremar desse afunilamento do masculino se traduz no sétimo conto, cujo sugestivo título “Gertrudes e seu homem”, de Augusta Faro, profetizaria a quebra de uma tendência geral do coletivo dos contos, induzindo o leitor a conjeturas de um homem perfeito em um amor perfeito, sedução e mistério mantidos na trama textual e ampliados até suas personagens. Urdida pela personagem principal, dominando o imaginário ficcional como símbolo de homem ideal, desejado por todas as mulheres e odiado pelos homens, tal personagem masculina revela-se, ao final, uma impossibilidade, um logro, um desejo irrealizável, como já se vinha pressentindo pelas “amarguras” da protagonista, enfaticamente reiteradas e seu “olhar cor de chuva, de tormento, de desvario e de profunda solidão”, metáfora de enorme beleza plástica e poética. No entendimento desta análise, deve ser entendida como a alegoria desse masculino, um juízo de valor simbolizado na ação das mulheres que, ao despedaçarem o boneco/amante, despedaçam a fraude e  o sonho, juízo de valor que perpassa muitos outros dos vinte quatro contos.
São poucos os textos em que a fixação dos caracteres da personagem masculina é feita sob uma ótica relaxada e benevolente. Dessas, podem ser destacadas as da família de Emília em “O sétimo mês” – “Seu pai e irmãos eram homens de voz mansa, calmíssimos, carinhosos, homens que nunca, nunca gritavam, de ótima índole.”(p.97) –  e o autorresgatado Fred. Se ao final do conto, este se transforma no “transbordante de carinho”, “Mais macho do que nunca, bicho-homem, parceiro” (p.113), no princípio é caracterizado como “dado a achaques meramente imaginários”, “homem-criança que mamou no seio mau”, “sátiro letrado”, descrito sempre em uma linguagem deliciosamente exagerada, prenhe de graça, recurso, aliás, que encaminha todo o texto e mantém o leitor como refém de um tom espirituoso, que submete até o ar de tragédia, estrategicamente tocado em alguns momentos para lhe servir de reforço, mas num humor que jamais resvala para o puramente cômico, ao contrário, realiza-se dentro de uma linguagem bastante cuidada, cheia de recursos artísticos e, compondo um todo poético, cujo plano inicial, cuidadosamente desenvolvido, revela e utiliza, com maestria, uma cultura humanística eficientemente aproveitada no texto.
É importante ser citado o Ângelo, de sugestivo nome, em “A um passo”, da escritora Rosa Amanda Strauss. Inserindo-se na atmosfera de quase irrealidade em que se movimenta a personagem central, que tem como cenário, paradoxalmente, uma realidade bastante concreta visual e socialmente falando, a personagem masculina compõe com aquela a intangibilidade de uma origem e de um futuro, pleno de ambiguidade – ladrão e doce parceiro, latino e europeu, macho e filho, homem e mulher.
Também deve ser apreciado o conto “O morro da chuva e da bruma”, o qual, imbuído de um clima de “paz e amor” dos anos setenta, motivo principal da intriga, traz duas personagens masculinas. O primeiro, um pai de empréstimo, que vai além de suas funções paternas, dilatando-as em mãe e guru: “Era velho, monocromático, de olhos acastanhados como toda a sua pele, cabelos escuros onde serpenteavam fios brancos e honrados, de voz mansa e fala sábia.” (p.331-332) e que ensinou à protagonista “a calma de viver um dia de cada vez”. E é, ainda, o depoimento da narradora que restaura a positividade da presença viril subvertida nas narrativas estudadas: “O Destino foi sábio ao dar-me um pai e não uma mãe.” (p.333). Completando o tom de apaziguamento com a figura masculina do conto, o qual, talvez, por isso, encerre a seleção, surge o Poeta, por quem a personagem nuclear se apaixona,  figura de artista, com seu riso manso e seu “rosto de Jesus”, elevado, então, o homem a uma posição um pouco acima dos mortais, em uma zona meio mística.
Há, ainda, um outro aproveitamento da personagem masculina nesta seleção de contos, introduzida de uma forma oblíqua, por um viés de discussão bastante atual, presa a criação literária a seu tempo, tendência pós-moderna: o homossexualismo.
A observação do elemento masculino no conto “No céu, com diamantes” – Luci Collin – leva à percepção de uma indeterminação ou anulação de limites preestabelecidos, recurso utilizado de todas as formas possíveis, inclusive na própria estrutura do texto ou na definição do gênero literário. Essa indecisão, proposital embora, se faz notar, indiretamente, na qualificação do vocábulo “personagem” na pseudo-nota 3 (pé-de-página – p.70): o “dois ou mais gêneros”, inviável gramaticalmente em português, quebra, desse modo, o encaminhamento lógico pelo qual a leitura estava sendo conduzida, desviando-o para a única noção significativa possível, a sociocultural. Nos diversos segmentos justapostos que compõem o texto da escritora, é a admissão desses “dois ou mais” que vai se realizando, desde o “talvez eu seja apenas um rapaz” (p.72) e a citação do travesti famoso Luizelena Trintade até o “eu” do segmento denominado “Tudo mentira”, que cobiça a “mulher do próximo e do antecedente”, mas também “o marido da minha melhor amiga” ou “a amiga do meu melhor marido”, transitando, sem cerimônia, entre as várias alternativas de gêneros.
Despreocupadamente, como em “Bondade”, de Simone Campos – “Aqui e ali, soltava pistas da minha admiração pelas meninas.” (p.32) – ou envolta no culpado sentimento místico de “Madrugada”, de Heloísa Seixas, que traz do conto de horror a expectativa, envolvendo o conto de outra categoria na mesma atmosfera de medo, a assunção, pela personagem feminina, de uma preferência amorosa pelo mesmo sexo descarta o relacionamento com o oposto.
São as próprias palavras da protagonista do segundo conto que servem como testemunho da superficialidade dessa relação anterior: “Tinha tido homens, muitos, na minha vida errante, solitária. Mas sempre passei por eles como um navio em águas profundas, flutuando ao largo, incólume diante dos rochedos espalhados ao longo da costa. Nunca um deles me rasgou o cascou, me fez soçobrar.” (p.290)




Dois outros contos do livro ora abordado utilizam, igualmente, a temática homossexual em seus enredos, já agora no que diz respeito aos homens. Um, de forma colateral, ao caracterizar, descontraidamente e com certa leveza humorística, o professor de inglês Glauco, personagem secundária, em “Um elefante” – Állex Leilla – e o outro, colocando o foco em um dramático enredo de amor, em “Considerações sobre o tempo” – Adriana Lunardi. O tratamento dado ao homossexualismo masculino, nos dois textos, mantém sempre uma posição bastante neutra, sem emissão de julgamentos e, no segundo texto, aproveita o tema para compor uma comovente história de amor, que, se termina com um final não feliz, se deve, estritamente, a um descompasso de relacionamento, que se insere em qualquer convivência humana. Mas, ao optar pela temática referida, o segundo conto varre, inteiramente, a relação amorosa com o feminino da construção narrativa.
Outro aspecto bastante relevante é o da enunciação feita em primeira pessoa, com um narrador assumidamente masculino. A estratégia, como um discurso que autocaracterizaria esse sujeito, transmite a validade da verossimilhança e camufla, na verdade, uma autoria de mulher e um posicionamento crítico desta em relação ao sexo oposto.
Se em “Um elefante”, de Állex Leilla, o narrador, inseguro, solitário, se movimenta “dentro de um mar imaginário (p.201), traduzida a avaliação da mulher amada sobre ele no trecho “Plástico tão barato, teu olhar me empurrando pro fundo do esgoto” (p.201), em “Glória”, de Guiomar de Grammont, um escritor, que confessa que “Não conseguia deixar de ser garoto” (p. 149) e classifica a si mesmo como “azarão” e  “filho da puta” (p.145), sob um discurso posto em dúvida por toda a narrativa, apresenta-se como crédulo, manipulável e, profissionalmente, uma fraude.
Em “Minha flor”, o discurso em primeira pessoa, enfaticamente grosseiro, machista, acaba se constituindo em um discurso polifônico, dialogal, em que a palavra feminina chega ao leitor através de um filtro masculino. Através do discurso direto,  essa voz caracteriza o masculino, o feminino e a própria enunciação.
O conto “Pão físico” se configura em dois textos anteriormente postos, para culminar, de modo significativo, em um terceiro, sob a forma de uma carta de um sujeito masculino, de profunda emotividade, pelas relações estabelecidas com uma irmã, onde se percebe uma submissa idolatria, de amor incestuoso, de mágoa e rancor, que acentua um sentimento agudo de desvalorização de si mesmo: “...no fundo soube-me pequeno como sou, com a arrogância dos homens pequenos.” (p.64).
Em grandes linhas, estes são os dados sobre personagens que, pontilhados aqui e ali, compõem um  retrato descontínuo do masculino.
Mas há, além desses, um fato que pode ser observado e vale ser comentado: a oblíqua vinculação maternal, embora variante em muitos aspectos, que se estabelece em alguns contos com uma personagem masculina adulta.
Em “Considerações sobre o tempo”, sobre uma presença narrativa que “era fundamentalmente um menino que gostava de desenhar.” e que  “Preservara, não sei a que custo, a fome da criança diante de folhas de papel e lápis de cor.” (p.232), a ligação com a mãe é estabelecida, significativamente, como a origem, não só da vida biológica do filho, mas também, de forma relevante para o enredo, como metáfora de um cordão umbilical que se realiza em arte: “Um novelo de lã, tirado do cesto da mãe, eis o mistério de sua arte. O formato, o colorido e o enredo de fios sendo tecidos até virar outra coisa nas agulhas que a mãe regia eram o substrato lírico de Guilherme, sua infância perdida, seu rosebud.” (p.232)
Em “Um elefante”, a figura da mãe, citada duas vezes, acaba sendo quase como uma marca, como se vê em ”As violetas, as calancóis, todas as flores que enfeitam meu pequeno espaço são coisas que minha mãe deixou em mim e nunca saem.” (P.182). É necessário se observar que, em ambos os textos, não há uma efetivação de relacionamento amoroso posterior, que interfira nesse contato primeiro com a mulher: o apenas projeto de ligação afetiva no segundo – “...um elefante que ama estrelas improváveis, ilúcidas, intangíveis”(p.187) – e completa anulação no primeiro.
Se nos dois textos citados anteriormente a figura genitora é explicitamente trazida para a tessitura narrativa, “Pão físico” pode ser estudado como o primeiro dentro de um grupo de contos em que essa figura é dissimulada e disseminada em personagens femininas de naturezas relacionais outras no que se refere à personagem masculina. O protagonista, em carta à irmã, confessa “... tentar sem nenhum heroísmo seguir o seu lema” (p.56), o que pode ser equiparado a aquelas “coisas que minha mãe deixou em mim e nunca saem”, mencionado no parágrafo anterior, abrindo um leque maior de significados para a ligação fraterna no conto e precisando-lhe o valor, além dos já identificados anteriormente neste trabalho, cuja origem é, incipientemente, pressagiada nos trechos “condição de órfãos” ou na “falta do carinho da mãe que não conhecêramos...”(p.60). E tal desvirtuado sentimento começa, realmente, a se definir em  “Sua figura me inspirava, falava de você num tom mítico, você era plena, sol do meio-dia e lua cheia.” (p.61). Contudo é o trecho “Criatura mítica, você, espécie de Deméter, majestosa...”(p.62) que, finalmente, interpreta um dos aspectos da verdadeira disposição afetiva de Eleno por Carminha.
A recorrência do ângulo mítico-materno da mulher, no texto anterior traduzido no mito grego, está sempre presente no imaginário humano, porque agora surge modernizado e metamorfoseado em entidade afro-brasileira, em “A um passo” e vai sendo lançado, discursivamente, aos poucos: “Mas que sabia que uma mulher iria salvá-lo.” (p.307). “Sempre que alguém tenta me matar, aparece uma mulher e me salva, diz ele. Então, vejo a guia de Iemanjá no pescoço dele e digo que vamos ver o mar.” (p.307). Contudo a protagonista, mesmo confusa em seu trajeto de desmemoriada, compreende o processo, junto com o leitor, e verbaliza: “Não sou sua mãe” (p.307). Como nos demais contos ora avaliados, esse sentimento é envolvido em emoções erótico-amorosas.
A personagem Lúcia de “O sétimo mês” é uma das responsáveis mais fortes pelo emaranhar de sentimentos, social e culturalmente considerados de espécies diferentes, que se ilude completamente ao se apaixonar por um homem que ela acredita “tão forte e tão frágil, tão sem defesas.”(p.115), transformando-o, assim, em um menino de sua mãe: “Como queria estreitar contra seus seios maternais aquela cabeça de homem...” (p.115-116).
O conto “Mãe, o cacete”, de Ivana Arruda Leite, explicitamente, problematiza e subverte o senso comum sobre a questão materna – “Mãe é sinônimo de atraso, degradação. Mãe deforma a cabeça da gente.”(p.205) –, no que diz respeito à protagonista. Mas é no comentário capcioso rejeitado pela personagem central –  “Praticamente uma mãe” – para o enumerar das características daquele binômio mulher-homem construído no texto – “- Sou a mulher que dorme com ele, que faz a comida dele, que cuida da roupa dele, da casa dele.”(p.208) –, que a sacralização materna é ironicamente desconstruída.
Para fechar este último aspecto do relacionamento de que tratam os parágrafos anteriores, deve-se examinar no conto “D.T.”, o vínculo que prende a infeliz menina Francilene a seu pai, vínculo que ultrapassa o amor filial, principalmente se comparado às outras duas filhas que, mais velhas, porém amedrontadas, abandonam a casa. Contrariando toda a lógica de uma menina de sete anos que deveria ter ido com as irmãs, esse vínculo a mantém em casa, assumindo as tarefas da mãe, a qual, como companheira, não tolera o sofrimento. Suportando a fome, a solidão, lavando sua roupa, fazendo sua comida, protegendo o pai, velando por ele, ou seja, invertendo as posições, a pequena personagem apresenta cuidados de mãe, diante de um pai cujo discurso ignora sua dedicação e presença inteiramente, em uma indiferença de filho ingrato. Mais do que os outros, o conto oferece ao leitor uma interpretação artística do comportamento viril diante da pobreza e do desamparo, mas, sobretudo, de uma personagem feminina que realiza, plenamente, no presente, aquilo que deveria ser apenas uma promessa do futuro.
Sem juízo de valor quanto à qualidade dos textos, este exame da seleção de contos, se prendeu à verificação da construção de uma personagem masculina sob a ótica ficcional feminina.
Oscilando, em todas as possibilidades gradativas, entre o tom dramático e o francamente cômico: assumindo inteiramente a ação do homem na ficção – o amante desejável, o companheiro amigo, o machão castrador, o estuprador ou o assassino –  ou apagando-o do embate narrativo, sob as mais variadas estratégias – ausência ou homossexualismo – ou, ainda, revelando  uma conexão afetiva que traz embutida a metamorfose do sentimento materno-filial, os contos que o silenciam, falam, ainda, do homem, mesmo quando o tom discursivo é supostamente confessional e investigativo da condição da mulher.




(1) Este artigo, sem alguns acréscimos atuais, foi publicado no Caderno Espaço Feminino, do NEGUEM – Núcleo de Estudos de Gênero e Pesquisa sobre a Mulher – do Centro de Documentação e Pesquisa em História da Universidade Federal de Uberlândia.
Resumo


Esta análise crítica da antologia organizada por Luiz Ruffato 25 mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira examina a construção de uma personagem masculina sob um olhar artístico de mulher, explicitamente presente ou de forma encoberta, de seu perfil e dos vários níveis de relacionamentos estabelecidos entre ela e as personagens femininas.


Palavras-chave
Escritora – masculino – perfil – relacionamentos

Word-key
Feminine writer – masculine – profile – relationships


Referências Bibliográficas

1.ISER, Wolfgang. Os atos de fingir ou O que é fictício no texto ficcional. In LIMA, Luiz Costa (Sel., introd. e rev.técnica.), Teoria da literatura em suas fontes. 2 ed. (revista e ampliada). Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983. 2 v. p. 384-416.


2.MEDEIROS, João Bosco. Redação científica: a prática de fichamentos, resumos, resenhas. São Paulo: Atlas, 1991.


3.RUFFATO, Luiz.(organizador). 25 mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira. Rio de janeiro: Record,  2004.


4.SILVA, Rebeca Peixoto da et al. Redação técnica. Porto Alegre: Formação, 1974.