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sábado, 27 de fevereiro de 2010

Mulher, ser, pessoa - Comentando... 9

“Com alguns homens foi feliz, com outros foi mulher”: confesso que esse verso de “Tigresa”, de Caetano Veloso”, sempre me deixou embatucada, mesmo com a tentativa final de apaziguamento. Por que, na relação com os homens, “ser feliz” não está no mesmo momento de “ser mulher”? Ou melhor, por que esse ser enunciador, pretensamente feminino, é preciso salientar, considerou os momentos de infelicidade com os homens um “ser mulher”?
A primeira observação a ser feita é de que, seja lá em que grau se encare isso, o discurso de mulher do verso acima é apenas uma construção poética. Está lá a “Ai, que saudades da Amélia” – "por achar bonito não ter o que comer", morreu de fome, coitada! –, de Ataulpho Alves e Mário Lago, que não me deixa mentir. Já ali se imaginava que os dois aspectos acima estavam mesmo em campos opostos. E é onde fica clara a posição masculina sobre o fato: “Aquilo, sim, é que era mulher.”
Desejo marcar, então, alguns conceitos importantes e usar para isso uma frase que eu ouvia há algum tempo e, felizmente, não ouço mais: ”Eu não sou feminista, sou feminina”. Isso, dito por uma mulher, claro, é triste.
Vamos lá: feminismo é um movimento de caráter político, que tem como intenção a subversão do estado de opressão e desigualdade em que ainda se encontra a mulher. Mas já é também uma teoria filosófica, a qual reflete sobre gênero, sexo e todos os aspectos históricos, culturais e sociais, antropológicos, enfim, e é empreendida por estudiosas de alta competência e gabarito e que tem sido encampada por especialistas das outras ciências humanas, mulheres e homens.
Se uma de nós nega essa luta e essas reflexões filosóficas, imbuídas de seriedade e relevância, isso é preocupante. Já foi o tempo em que o feminismo era encarado com deboche. Hoje, essa atitude tola é, no mínimo, sinal de falta de conhecimento.
Mas devo refletir, ainda, sobre o “sou feminina.” Ora, como se sabe muito bem atualmente, tudo que se atribui ao “feminino” e ao “masculino” é apenas uma construção de gênero, contínua e atroz, que se aplica a um ser de um determinado sexo, desde que nasce. A gente escutou, desde a mais tenra idade, que meninas são assim e meninos, assado. Ora, se meninas e meninos são de um modo e não de outro, se isso fizesse parte de sua natureza, de sua essência, a insistência seria desnecessária. Era só deixar a vida ir se encarregando de fazer com que esses atributos aflorassem: ninguém precisa “revelar” às plantas como elas são.
Então, se uma mulher diz que é “feminina” – tem de se mostrar bonita, se vestir de uma determinada forma, manter-se jovem o máximo de tempo possível etc.–, ela está aceitando, sem refletir ou discutir, a submissão aos ditames da sociedade patriarcal (devo salientar que aí estão agregados, no ocidente, principalmente, outros aspectos como a preponderância dos brancos e o capitalismo), pois as regras estabelecidas para o que é feminino são fixamente estabelecidas – e controladas! – pelo ponto de vista dessa sociedade. Atualmente “ser feminina” é usar botox, alterar os seios, fazer lipoaspiração, usar saltos altíssimos e incômodos, consumir muito dinheiro no shopping, tentar ser modelo ou casar com um jogador de futebol ou pagodeiro. E aí voltamos para o “Com alguns homens foi feliz, com outros foi mulher.” e à saudade da Amélia.
Desejo sublinhar, para usar na próxima postagem, essa conclusão: as mulheres estão submetidas a um discurso masculino, que vai desde as idéias mais corriqueiras – propagandas de produtos para limpeza só utilizam a presença de mulheres e a de cerveja, homens bebendo e mulheres com pouca roupa – até à própria linguagem – se alguém quiser procurar a palavra “feminina”, no dicionário, só vai encontrá-la no masculino, bem como qualquer outro adjetivo.
Para comprovar o que digo, desejo analisar a máxima: “Ninguém entende as mulheres.” O dicionário define “ninguém” como “nenhuma pessoa”. Como as mulheres entendem muito bem a si mesmas – às que disserem o contrário aconselho procurar uma boa psicanalista –, já se vê que “mulheres” não são “pessoas”, claro (Não foi à toa que a Igreja Católica levou tanto tempo discutindo se as mulheres tinham alma)! Então, a frase citada acima, que deveria ser apenas “Os homens não entendem as mulheres”, comprova que há ali um discurso masculino e que o homem é o ser universal, “pessoa”, em seu sentido filosófico e jurídico, até – vá ao dicionário, por favor, e consulte as três primeiras definições de “homem” – e o padrão estabelecido são suas opiniões e conceitos. Para uma mulher, mesmo lúcida e, portanto, feminista, parece quase impossível escapar dessa armadilha.
Peço que os comentários acima sejam lembrados e utilizados na leitura de minha próxima postagem do dia 08-03. Mas vou fazer uma brincadeira: aproveitando-me dos conceitos de gênero, que ouvi dessa sociedade, desde criança, uso-os em um poema.

Que oito de março, que nada!
Eliane F.C.Lima (registrado no EDA – RJ)

Para ser homem de verdade,
sem abrir mão da vaidade,
há que ter fé e firmeza.

Para ser homem, nesta vida,
ignorar a ferida,
esquecer sempre a tristeza.

Para ser homem, homem mesmo,
seguir reto, nunca a esmo,
sentir-se fraco, jamais!

Para ser homem de fato,
ser agressivo ou ter tato,
mas construir sempre a paz.

Para ser homem verdadeiro,
ter um caminho primeiro
e ir mesmo aonde não der.

Esse homem, guia, facho,
peço desculpas, caro macho,
esse homem... é uma mulher!
(23/02/97)




sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

A lírica surpreendente de um sujeito - Literatura de ontem 11

Hilda Hilst nasceu no interior de São Paulo, em 1930, e faleceu em Campinas (SP), em 4 de fevereiro de 2004 e, por isso, neste fevereiro, faço a postagem em agradecimento a seu talento. Seu pai e poeta Apolônio A. Prado Hilst, quando a filha nasceu – mulher –, exclamou que era um azar. Hilda dizia que começou a escrever para crescer a seus olhos, o que foi em vão: aos 35 anos, já separado da mulher, ele é internado por esquizofrenia e não leu a filha.
A vida da poeta é cheia de fatos especiais, tanto no campo pessoal, como no profissional. Estudou tanto física, principalmente a quântica, quanto filosofia e matemática, embora seu interesse maior pareça ser, realmente, a metafísica. Muitos analistas seus veem a configuração especial de Deus, em seus escritos, de acordo com a crença do gnosticismo, corrente filosófico-religiosa dos primeiros cristãos.
Tendo entrado em contato com os estudos do alemão Friedrich Juergenson, em seu livro Telefone para o além (remeto ao site Comunidade espírita, onde se faz uma descrição interessante desse trabalho, clicando aqui), em que se pretendia o contato com pessoas já falecidas, Hilda, durante muito tempo, em seu sítio “Casa do Sol”, periferia de Campinas, onde viveu de 1966 a 2004, fez, também, gravações de inúmeras vozes.
Como poeta, escandalizou os críticos com sua “trilogia obscena”, escritos que são considerados eróticos por alguns – muitas teses foram escritas sobre elas na academia, posteriormente – e pornográficos por outros: O Caderno Rosa de Lori Lamby, Contos d´escárnio – textos grotescos e Cartas de um Sedutor. Neles aparecem temas tão caros à sociedade de hoje – pedofilia, por exemplo – e que expõem a diversidade humana.
A última surpresa que Hilda Hilst fez a seu público – essa definitiva – foi que, depois de ter recebido do compositor Zeca Baleiro, seu disco Por Onde Andará Stephen Fry?, enviou para ele, em disquete, toda a sua obra poética e o autorizou a musicá-la. O músico se encantou com a obra Júbilo Memória Noviciado da Paixão, em seu capítulo "Ode Descontínua e Remota para Flauta e Oboé - De Ariana para Dionísio", história do amor impossível de Adriana e Dionísio, tendo produzido com ele um CD, que tem o mesmo nome, por sua gravadora “Saravá discos”, e iniciado em 2003. Como a voz enunciadora do texto é feminina, ele resolveu convidar diversas cantoras famosas para interpretar as várias “canções”, como são denominadas as poesias. Enquanto esteve viva – morreu em fevereiro de 2004 –, a poeta participou do projeto. Infelizmente, não chegou a vê-lo a termo, só dado ao público em 2005.
Abaixo, transcrevo um poema do livro Alcoólicas (1990), para que se tenha um encontro com a sua obra, encontro do qual não se sai a mesma. O texto de Hilda deixa uma cicatriz, uma tatuagem inapagável, em cada leitor, pela força e ineditismo, além da beleza, de suas imagens: a vida é crua, é faminta, mas também é líquida, o que enseja a possibilidade de que essa crueza e fome engolfe o eu poético

I

Hilda Hilst

É crua a vida. Alça de tripa e metal.
Nela despenco: pedra mórula ferida.
É crua e dura a vida. Como um naco de víbora.
Como-a no livor da língua
Tinta, lavo-te os antebraços, Vida, lavo-me
No estreito-pouco
Do meu corpo, lavo as vigas dos ossos, minha vida
Tua unha plúmbea, meu casaco rosso.
E perambulamos de coturno pela rua
Rubras, góticas, altas de corpo e copos.
A vida é crua. Faminta como o bico dos corvos.
E pode ser tão generosa e mítica: arroio, lágrima
Olho d’água, bebida. A vida é líquida.

(Alcoólicas - SP: Maison de vins, 1990.)

A seguir, posto alguns trechos das canções musicadas por Zeca Baleiro do livro acima mencionado, nas vozes de três intérpretes excepcionais, reproduzidas de seu disco pelo YOUTUBE. Observe-se que, com os arranjos e instrumentos escolhidos, enlaçam-se a atualidade e o medievalismo. Para ouvi-las, clique em cada vídeo abaixo e leia o poema.

Canção II

Poema de Hilda Hilst /Música de Zeca Baleiro

Porque tu sabes que é de poesia
Minha vida secreta. Tu sabes, Dionísio,
Que a teu lado te amando,
Antes de ser mulher sou inteira poeta.
E que o teu corpo existe porque o meu
Sempre existiu cantando. Meu corpo, Dionísio,
É que move o grande corpo teu.
Ainda que tu me vejas extrema e suplicante,
Quando amanhece e me dizes adeus.

Cantada por Verônica Sabino no vídeo abaixo (no Youtube aqui).





Canção III

Poema de Hilda Hilst /Música de Zeca Baleiro

A minha Casa é guardiã do meu corpo
E protetora de todas minhas ardências.
E transmuta em palavra
Paixão e veemência
E minha boca se faz fonte de prata

Ainda que eu grite à Casa que só existo
Para sorver a água da tua boca.
A minha Casa, Dionísio, te lamenta
E manda que eu te pergunte assim de frente:
À uma mulher que canta ensolarada
E que é sonora, múltipla, argonauta
Por que recusas amor e permanência?

Cantada por Maria Bethânia no vídeo abaixo (no Youtube aqui)




Canção V

Poema de Hilda Hilst /Música de Zeca Baleiro

Quando Beatriz e Caiana te perguntarem, Dionísio
Se me amas, podes dizer que não. Pouco me importa
ser nada à tua volta, sombra, coisa esgarçada
No entendimento de tua mãe e irmã. A mim me importa, Dionísio, o que dizes deitado, ao meu ouvido
E o que tu dizes nem pode ser cantado
Porque é palavra de luta e despudor.
E no meu verso se faria injúria
E no meu quarto se faz verbo de amor

Cantada por Ângela Ro Rô no vídeo abaixo (no Youtube aqui
)




Para se ter a relação das obras de Hilda Hilst remeto ao site da Wikipédia (aqui).


sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

A culpa da vítima em ser vítima - Comentando... 8

Hoje vou refletir sobre as palavras de alguém que, há pouco tempo colocou uma postagem para o “Comentando... 1”. Antes de mais nada, sugiro aos leitores a visita a essa postagem (basta descer até o início) para que o entendimento fique completo. De qualquer forma, lá eu falava de uma mensagem de e-mail que eu havia recebido e onde se dizia que a expressão “mulheres burras” era um pleonasmo, ou seja, como chover no molhado. Fiz as considerações que devia sobre a piada ofensiva.
O visitante acima mencionado não teve certeza que “toda mulher” não era burra – eu, que não sou burra, percebi – e fez uma observação que eu pretendo responder aqui. Não por ter ficado zangada com ele, mas porque o conteúdo dela é consenso, ainda, entre muitas pessoas. Ele sugeriu que o fato de serem machistas e preconceituosos se devia à própria mãe dos humoristas. Ora isso me lembra muito o tempo em que as mulheres vítimas de estupro sempre eram consideradas as culpadas do fato, pois delegados, investigadores, advogados e juízes encontravam nelas, sempre, algo de sedução e que justificava a atitude do macho. Eram as mulheres, em suma, que convidavam ao estupro.
Ou as versões modernizadas da história que apontam chefes de tribos africanas, do tempo da escravidão, como mediadores do processo escravocrata. Reescrevendo a história e introduzindo outros cúmplices, verídicos ou não, os brancos tentam se livrar da culpa que têm.
Também me lembro da infinidade de vezes em que ouvi pessoas dizendo que há negros mais racistas do que brancos, que são críticos e preconceituosos com seus pares. A tolice dessa observação está em não se enxergar que a sociedade branca impinge um modelo ético e estético a todos, a brancos e a negros, os quais, como seres humanos sociais, podem sucumbir à opressão. Há uma imagem que me parece perfeita para isso: os pássaros que, presos desde sempre, quando têm a porta da gaiola aberta, voam em volta, mas não fogem dali.
Como se vê, o poder, além de oprimir, sempre torna o oprimido responsável pela tirania.
Então temos duas inferências sobre essas “pobres mães” que, além de serem “burras”, porque são mulheres, ainda são culpadas de serem assim vistas.
Primeiro: elas estão no mesmo caso dos negros acima: a uma criança do sexo feminino, que tivesse ouvido, desde a mais tenra infância, que os homens são os melhores, são mais inteligentes, que a eles devem ser reservadas todas as oportunidades, fica difícil entender que isso não faz parte da "essência" dos homens, mas é apenas um fato cultural, social e de perpetuação do poder. E mais difícil ainda subverter a ordem das coisas. E se, durante muito tempo, reproduziram isso, fizeram como os pássaros presos às gaiolas por laços invisíveis.
Mas, como foi dado aos negros também perceberem – hoje eles não aceitam mais o preconceito, foram capazes de exigir mudanças na lei e chegam até a contestar o papel de redentora da princesa Isabel, exigindo mudanças no modo de interpretar a história –, as mulheres acabaram transformando a sociedade, sim. Muitos teóricos do pós-modernismo apontam o movimento feminista como o primeiro e grande passo transformador do mundo pós-moderno. Piadas sobre a mulher não são só ofensivas e deveriam ser contra a lei, são anacrônicas, sinal de miopia daqueles que, já morrendo afogados em suas crenças estreitas e ultrapassadas, ainda teimam em repetir as mesmas tolices de sempre.
Mas o mais grave me parece o fato de um homem declarar com todas as letras que as mulheres ainda são as únicas responsáveis pela educação das crianças. Ora, se houve um tempo em que isso era real, o que é o testemunho do quanto as mulheres eram impedidas de uma vida externa e estavam acorrentadas à casa, verdadeira prisão domiciliar, hoje em dia isso não ocorre mais. A educação dos filhos é responsabilidade do casal, todas as decisões sobre eles, além do amor, são compartilhadas pela mulher e pelo homem, que têm uma vida pública e trabalham. Portanto o argumento continua sendo anacrônico e “sinal de miopia” etc (releia-se o final do parágrafo acima).
Lembro que ouvi essas mesmas palavras de um colega professor – veja a gravidade nesse caso! Perguntei a ele se era aquilo mesmo que queria dizer, que era um pai omisso no que dizia respeito à educação dos próprios filhos. Que a lei e as regras sociais não permitiam mais esse tipo de coisas.
Espero que as considerações feitas aqui ajudem aos preconceituosos a refletirem sobre si. E que abandonem os velhos chavões antiquados e busquem argumentos mais adequados aos novos tempos.


sábado, 6 de fevereiro de 2010

A concretude poética de Cabral - Literatura de ontem 10/Palavras sobre palavras 11

João Cabral de Melo Neto (Recife - PE, 1920- 1999 – Rio de Janeiro). Primo de Manuel Bandeira e de Gilberto Freyre, ambos pernambucanos, sua infância transcorreu em engenhos de açúcar, vivência que se reflete em sua obra, como fica flagrante no poema “O mar e o canavial”, só para exemplificar. Vindo para o Rio de Janeiro, em 1940, nessa cidade, conhece todo um grupo de intelectuais da época, ligados à literatura, como Murilo Mendes, Carlos Drummond de Andrade, Jorge de Lima.
Após concurso, começa a trabalhar em 1946 como diplomata. Exerce sua função em vários países, mas esteve a maior parte de sua carreira na Espanha, o que se percebe em poemas “Na Baixa Andaluzia”.
Mas o poeta nunca deixa de ser um brasileiro nordestino, como comprova Morte e vida severina, uma peça de teatro – um auto de Natal – encomendada por Maria Clara Machado, em época em que João Cabral tinha sido afastado do serviço diplomático pela ditadura militar acusado de militante comunista, provavelmente pelo conteúdo de seus textos, e que acaba não sendo aceita por ela. Embora tenha sido encenada antes, a peça, em 1966, tornou-se um retumbante sucesso, quando o grupo teatral da Universidade Católica de São Paulo (TUCA) encena-a, musicada pelo compositor iniciante Chico Buarque de Holanda, mesmo sem a autorização do próprio João Cabral. Apresentada depois, no Festival de Nancy, França, o sucesso da apresentação torna o autor, que estava lá e gosta das músicas anexadas, conhecido internacionalmente.
Para o jovem Chico, informado de que Cabral não gostava de música, a composição seria uma ousadia e o encheu de dúvidas. Na verdade, segundo as palavras do próprio Cabral, ele possuía uma incapacidade de fixar sua atenção no tempo – exigência para se fruir música –, só conseguindo fixá-la no espaço, o que acontece com a pintura, a escultura, dentre outras. Seus poemas, em minha visão, apresentam essa exigância plástica, portanto. Lidam com o apreensível e concreto.
Em 1968, João Cabral é eleito para a Academia Brasileira de Letras.
Tendo sofrido de dores de cabeça por toda a vida, sua outra doença é degenerativa e o leva à cegueira, prendendo-o a uma depressão que o leva, finalmente, à morte.
Obras: Pedra do Sono (1942); Os Três Mal-Amados (1943); O Engenheiro (1945); Psicologia da Composição com a Fábula de Anfion e Antiode (1947); O Cão sem Plumas (1950); O Rio ou Relação da Viagem que Faz o Capibaribe de Sua Nascente à Cidade do Recife (1954); Dois Parlamentos (1960); Quaderna (1960); A Educação pela Pedra (1966); Morte e Vida Severina (1966); Museu de Tudo (1975); A Escola das Facas (1980); Auto do Frade (1984); Agrestes (1985); Crime na Calle Relator (1987); Primeiros Poemas (1990); Sevilha Andando (1990). Alguns dos principais prêmios recebidos: Neustadt International Prize for Literature (1992); Prêmio Jabuti, instituído pela Câmara Brasileira do Livro (1993) Prêmio Rainha Sofia de Poesia Ibero-Americana (1994); Prêmio Camões (1990).

Começo minha análise recomendando o documentário “O artista inconfessável”, da Editora Alfaguara. Nos dois vídeos postados no YOUTUBE (clique aqui e aqui). Chamo a atenção para o enxugamento do estilo, chegando às raias da secura, que é a característica de um outro escritor nordestino, Graciliano Ramos. Será que a rudeza de grande parte do ambiente dessa região afetam o homem e sua poesia? A criação poética de João Cabral se dá através de uma necessidade grande de contenção, da negação da emotividade derramada. Seu texto se vale, principalmente, do aspecto intelectual na construção do texto. Há uma preocupação grande com a forma, o que leva o poeta Ferreira Gullar a ousar chamá-lo de “gongórico”, uma das facetas do Barroco, que se caracteriza por uma preocupação exagerada com a forma.
Eu, que trabalhei com João Cabral de Melo Neto, com A educação pela pedra, em 1979, e que o conhecia superficialmente, desde então, me apaixonei por seus poemas. Hoje, ao voltar a ele para analisá-lo, fiquei surpresa ao rever-me nele, em muitos aspectos, inclusive nesse mesmo meu amor pela dureza da pedra, que foi uma característica desse livro e o é de uma forma geral em sua obra, determinado seu estilo. No entanto, se em textos meus surge uma pedra metafísica – remeto a meu poema “Filosofia pétrea”, no blogue Poema vivo (aqui) e ao conto “Lição” (vejam o binômio “pedra/lição” em meu texto, que nem me lembrava mais) no blogue Conto-gotas (aqui) –, a pedra cabralina é bastante concreta, não só nos aspectos formais de seus poemas, como em sua aspereza natural, trazida mimeticamente para a linguagem. Não é à toa que o título de uma de suas obras é A educação pela pedra, ou seja, de aprendizagem dessa rudeza. Nesse aspecto, volto a Graciliano e a seu livro Vidas Secas, onde alguns analistas enxergam essa mesma secura imitativa da natureza, a presença, no nível da enunciação e da linguagem, da seca, da paisagem árida.
Posto três poemas do livro citado acima, tão característicos do estilo do poeta.
Devo confessar que foi para mim uma enorme difuculdade selecionar o que postaria. Optei por um recorte em seu universo temático.

A educação pela pedra

J. C. M. Neto

Uma educação pela pedra: por lições;
para aprender da pedra, frequentá-la;
captar sua voz inenfática, impessoal
(pela dicção ela começa as aulas).
A lição de moral, sua resistência fria
ao que flui e a fluir, a ser maleada;
a de poética, sua carnadura concreta;
a de economia, seu adensar-se compacta:
lições da pedra (de fora para dentro,
cartilha muda), para quem soletrá-la.

*
Outra educação pela pedra: no Sertão
(de dentro para fora, e pré-didática).
No Sertão a pedra não sabe lecionar,
e se lecionasse, não ensinaria nada;
lá não se aprende a pedra: lá a pedra,
uma pedra de nascença, entranha a alma.

(Poesias completas: 1940-1965. 2ª Ed. Rio de Janeiro, J.Olympio, 1975. Informação para os três poemas.)

Desse texto, tiramos algumas conclusões das convicções poéticas de Cabral: aprende-se com a pedra, que é impessoal, discreta (inenfática) e não aceita se tornar dócil, flexível, não se permite fluir e renega, ainda, qualquer coisa fácil, fluente. Ele não deseja poemas, que sejam abordados com facilidade, mas de leitura trabalhosa, difícil. Veja que a lição poética da pedra é “sua carnadura concreta”: o poema acima, como os que se seguem, tem uma construção muito visual, o que acontecerá com os próximos. São dezesseis versos, divididos em duas estrofes, que, uma sobre a outra, parecem dois blocos de concreto.
Na segunda estrofe, a surpresa: essa pedra – e todos os seus atributos acima descritos – é alma, a alma do homem nordestino. Serão assim os escritores e seus escritos, João e Graciliano?

Catar feijão

A Alexandre O’Neill

J. C. M. Neto

Catar feijão se limita com escrever:
joga-se os grãos na água do alguidar
e as palavras na da folha de papel;
e depois, joga-se fora o que boiar.
Certo, toda palavra boiará no papel,
água congelada, por chumbo seu verbo:
pois para catar esse feijão, soprar nele,
e jogar fora o leve e oco, palha e eco.

2.
Ora, nesse catar feijão entra um risco:
o de que entre os grãos pesados entre
um grão qualquer, pedra ou indigesto,
um grão imastigável, de quebrar dente.
Certo não, quanto ao catar palavras:
a pedra dá à frase seu grão mais vivo:
obstrui a leitura fluviante, flutual,
açula a atenção, isca-a com o risco.


Aqui a metáfora da pedra continua sua ousadia: “catar feijão se limita com escrever”. Para falar a verdade, mais do que uma figura de estilo, as metáforas do poeta vão além do nível da linguagem, sendo uma mensagem conceitual. E na segunda estrofe – novamente dezesseis versos em duas estrofes, dois blocos de concreto –, a revelação explícita: se ao catar feijão as pedras devem ser retiradas para não quebrar um dente, no ato poético, elas são imprescindíveis. Sua presença evitará a leitura fácil, fluente, já mencionada acima. Sua presença força o risco e faz a atenção ficar mais forte. Isso é “seu grão mais vivo.”
Mas o que significa, afinal, essa “pedra” no texto do poeta? Bem, quem leu o poema teve de ficar muito atento para o significado do que era dito. Não são poemas, realmente, cuja leitura aconteça com desenvoltura, nem no aspecto da dicção, nem no da mensagem pouco clara.
A própria escolha do vocabulário já é especial: algumas palavras não são de articulação poética (olhem lá “a dicção” das pedras) – “frequentá-la”, “soletrá-la”, “inenfática”, “pré-didática”, “imastigável” –, sua acentuação, sua sonoridade pouco musical: de repente surge uma dessas palavras como uma pedra no meio do feijão, que paralisa o mastigar – aproveitando-se, aqui, a metáfora do texto –, ou seja, interrompe a fluência da leitura, o que é o desejo do autor.
Isso também se dá com a quebra da sintaxe, o uso da frase não linear, através da subtração de termos (a lição de economia da pedra, “seu adensar-se compacta...”): “Uma educação pela pedra: por lições...” (Uma educação pela pedra deve ser feita por lições.) (1.º poema, 1.ª estrofe); “Certo não (Não é certo...), quanto ao catar palavras...”(2.º poema, 2.ª estrofe).

O urubu mobilizado

J.C.M. Neto

Durante as secas do Sertão, o urubu,
de urubu livre, passa a funcionário.
O urubu não retira, pois prevendo cedo
que lhe mobilizarão a técnica e o tato,
cala os serviços prestados e diplomas,
que o enquadrariam num melhor salário,
e vai acolitar os empreiteiros da seca,
veterano, mas ainda com zelos de novato:
aviando com eutanásia o morto incerto,
ele, que no civil quer o morto claro.

2.

Embora mobilizado, nesse urubu em ação
reponta logo o perfeito profissional.
No ar compenetrado, curvo e conselheiro,
no todo de guarda-chuva, na unção clerical,
com que age, embora em posto subalterno:
ele, um convicto profissional liberal.


Esse poema segue a mesma construção formal dos anteriores e apresenta os mesmos processos que foram citados acima.
Mas surge aqui mais fortemente a mensagem social, no nível do conteúdo do texto. Se a alusão ao sertão, no primeiro texto, e a análise do homem influenciado pela pobreza do meio ambiente, que inocula nele a dureza da pedra, já apontava sutilmente para tal temática, no último, o urubu é a grande metonímia do universo da morte, acontecimento marcante das secas do sertão. A caracterização de funcionário ao urubu, na sua missão de ser um dos braços da morte, marca-o como necessário, previsto e sublinha a crítica aos “empreiteiros da seca”, os verdadeiros objetos do julgamento. Ao contrário das demais aves, que se retiram, o urubu fica para se valer dessa morte.
No aspecto da linguagem, surgem, com intenção clara, algumas rimas, fenômeno que nos textos anteriores eram quase acidentais.
Também pode ser identificada a aliteração, que é a repetição de fonemas consonantais, o que dá um efeito sonoro.
E é impossível não se prestar atenção no uso continuado de fonemas fricativos – passagem do ar na boca através de uma estreita fenda –, nos versos transcritos abaixo (1.a estrofe) e que acabam criando uma suave musicalidade:
“...veterano, mas ainda com zelos de novato:/aviando com eutanásia o morto incerto...” (o destaque é meu).
Esses dados tornam o texto cabralino menos duro do que ele pretendia. A própria presença da metáfora, recurso estilístico marcador de pessoalidade, como já se havia afirmado em outras postagens anteriores – impossível não se ressaltar o “no todo de guarda-chuva” para “urubu” – anula um pouco “a voz inenfática, impessoal” da pedra, assumida pelo poeta.
Nesses três poemas, pode-se perceber o modus faciendi do poeta nesse livro citado: na primeira estrofe são apresentadas características gerais que, ao serem particularizadas, são negadas, clara ou parcialmente, na segunda. Isso se dá em relação ao sertão ou à literatura, o que enfatiza para o destinatário a especificidade desses dois objetos de Cabral. Olhe aí, novamente, assumido para si o recato expressivo da pedra, seu inenfatismo: o texto realça o sertão e a escrita literária por um viés subliminar. No documentário citado – é imperdível! –, alguns depoimentos chamam atenção para o fato de que, se o enunciador é contido nas emoções, ele consegue o efeito de produzir no leitor a comoção radical que leva às lágrimas. Abaixo, exemplifico o fato.
1.º poema: “Uma educação pela pedra: por lições” (1.ª estrofe, 1.º verso) – “Outra educação pela pedra: no Sertão” (2.ª estrofe,1.º verso)
“A lição de moral, sua resistência fria” (1.ª estrofe, 5.º verso) –
“No Sertão a pedra não sabe lecionar,” ( 2.ª estrofe, 3.º verso)
2.º poema: “Catar feijão se limita com escrever:” (1.ª estrofe, 1.º verso) – “Ora, nesse catar feijão entra um risco:”(2.ª estrofe, 2.º verso);
“Certo, toda palavra boiará no papel,” (1.ª estrofe, 5.º verso) – “Certo não, quanto ao catar palavras:” (2.ª estrofe, 5.º verso).
3.º poema: “O urubu não [se] retira, pois prevendo cedo/que lhe mobilizarão a técnica e o tato,” (1.ª estrofe, 3.º e 4.º versos) – “Embora mobilizado, nesse urubu em ação...” (2.ª estrofe, 1.º verso; implícita, no uso do “embora”, a negação da estrofe anterior.)
Remeto a minhas postagens de hoje (06-02-2010), em Conto-gotas e Poema vivo, dois textos feitos há meses atrás, antes da composição desta análise. Pela relação com o dito aqui, pergunto: será metempsicose ou apenas afinidade poética? Solicito ao visitante conferir e me dar a resposta.

Ao final, brindo a todos com trecho de Morte e vida severina, introdução abaixo, na voz de Chico Buarque, autor da música gravada como “Funeral de um lavrador.” Agradeço mais uma vez ao YOUTUBE (clique aqui). Aproveite.

“Assiste ao enterro de um trabalhador de eito e ouve o que dizem do morto os amigos que o levaram ao cemitério.” (João C. M.Neto)