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domingo, 19 de junho de 2011

Hosana

Eliane F.C.Lima

Ontem fez um ano da morte do escritor português José Saramago. E, como todo o mundo já percebeu, estamos há um ano mais pobres
. De cultura. De amor ao próximo. De verdade.
Logo após a sua morte, compus o poema abaixo, onde eu imaginava a chegada de Saramago ao céu, ele que era ateu. Não é um poema religioso ou de negação das ideias do escritor. Ao contrário. Vali-me do tema para reafirmar o pensamento do homem.

Hosana

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais - RJ)

Sentado estava Deus, e absorto
– que Deus também tem dúvida e anseio.
E chega-lhe, de manso, em pleno horto,
um magro homem e senta ali no meio.

De imediato o deus o reconhece,
é Saramago, dele não se esquece.
O homem, mesmo vendo, não acredita
e se exaltar, à toa, ainda evita.

Mas o outro – a espera não foi vã –,
mesmo Deus, o coração aos pulos,
sorri de si, e mais dos homens fulos
que, no lodo, cospem ira anã.

Mostra as guirlandas postas pelos cestos,
a festa preparada ao José,
declama, decorados, os seus textos,
demonstra com clareza sua fé.

Diz-lhe que agradece a cada dia
a negação daquele deus cruento,
do que foi só malévolo invento,
daquilo que – por Deus! – não existia.

Negando as hipócritas mentiras,
o uso da falácia e do poder,
falsa verdade que sempre o traíra,
Saramago o estava a defender.

Manso poeta, o abraço às costas,
vê ao redor de si um outro homem,
e, sem se importar por quem o tomem,
envolve-lhe, cálido, as mãos postas.

domingo, 5 de junho de 2011

A rainha do mundo - privado X público: reflexos na literatura

Eliane F.C.Lima

No último dia das mães, fiz uma postagem – “Nós, mulheres, somos tudo. Até mães.” –, onde levantei o conceito de público X privado, chamando a atenção de que toda a sacralidade conferida à mãe se devia ao fato de ser mulher, visto que essa situação especial acima da condição humana estava intimamente ligada a uma espécie de prêmio pelo fato dela estar apartada do mundanismo e suas circunstâncias, ou seja, limitada à casa, “protegida” das tentações e dos pecados. Na canção da MPB “Mamãe”, David Nasser e Herivelto Martins já davam a pista: “Ela é a dona de tudo/ Ela é a rainha do lar”. Esse “tudo” era muito pouco, um universo circunscrito ao privado, ao “lar”, ao qual cabia à mulher, como mãe, ser rainha.
No poema “Infância”, do qual transcrevo algumas estrofes abaixo, Drummond volta à figura materna presa à domus e com ela confundida.

Infância

Carlos Drummond de Andrade

Meu pai montava a cavalo, ia para o campo.
Minha mãe ficava sentada cosendo.
Meu irmão pequeno dormia.
Eu sozinho menino entre mangueiras
lia a história de Robinson Crusoé,
comprida história que não acaba mais.
(…)

Minha mãe ficava sentada cosendo
olhando para mim:
- Psiu... Não acorde o menino.
Para o berço onde pousou um mosquito.
E dava um suspiro... que fundo!


Lá longe meu pai campeava
no mato sem fim da fazenda.

E eu não sabia que minha história
era mais bonita que a de Robinson Crusoé.

É interessante atentar para o fato de que à figura do pai/homem corresponde o “público”, o exterior, a busca pelo capital – ver os versos em itálico –, e à mãe/mulher, a vida “privada”, o interior, a proteção da família – versos em negrito.
Observe-se que a descrição do momento familiar é feita pela visão particular do filho adulto que, olhando para a infância, reintroduz aquela visão de pequeno ainda, para quem a “ordem das coisas” estava perfeita, como se depreende da última estrofe. É dele o olhar que relembra e avalia seu passado. Pela primeira estrofe, pode-se observar, que tinha um temperamento introvertido.
Mas parece que algum sentimento inconveniente ao idealismo da cena, sentimento que ia na alma da mãe – é flagrante a reiteração da inércia materna em “ficava sentada” –, não foge totalmente à percepção da criança: “E dava um suspiro... que fundo!”. Qual o alcance e significado exatos do enunciar daquele suspiro que não parece traduzir satisfação? Introduzida no meio do poema, tal alusão instaura um desequilíbrio na pretensa felicidade doméstica, provocando uma sensação de estranhamento ao leitor.
A estrofe seguinte, novamente, enuncia o afastamento do pai daquela “paz” íntima, reiterando a oposição papel da mulher X papel do homem. O leitor percebe, com sutileza, que “papel”, nesse caso, envolve não só deveres, mas, principalmente, direitos... e, talvez, felicidade. E se pergunta por que suspira tão profundamente aquela mãe/mulher.

E o sujeito enunciador se apressa a encerrar a questão, trazendo para si, subjetivamente, segundo sua visão idealizada, a perfeição da história da família: “minha história.”

Mater dolorosa

Adélia Prado

Este puxa-puxa
tá com gosto de coco.
A senhora pôs coco, mãe?
— Que coco nada.
— Teve festa quando a senhora casou?
— Teve. Demais.
— O que que teve então?
— Nada não menina, casou e pronto.
— Só isso.
— Só e chega.
Uma vez fizemos piquenique,
ela fez bolas de carne
pra gente comer com pão.
Lembro a volta do rio
e nós na areia.
Era domingo,
ela estava sem fadiga
e me respondia com doçura.
Se for isso o céu,
está perfeito.

Adélia Prado também expõe um perfil de mãe em “Mater dolorosa”. No poema, aparece uma mãe sem a disponibilidade apregoada pela tradição patriarcal. Primeiro pela ironia presente em “Teve. Demais”, onde afirma o que evidentemente nega. E o trecho “ela estava sem fadiga/e me respondia com doçura” apresenta uma situação inusitada, não costumeira, que inaugura um caminho desconhecido para o “céu”.
E o termo “céu”, no poema de Adélia, cujo título enfatiza o sofrimento materno, pode remeter-nos para o "paraíso" do famoso poema de Coelho Neto – Caxias, MA, 1864-1934, Rio de Janeiro –, cujos versos finais acabou se configurando em ditado, cultuado no imaginário popular.

Ser Mãe

Coelho Neto

Ser mãe é desdobrar fibra por fibra
o coração! Ser mãe é ter no alheio
lábio que suga, o pedestal do seio,
onde a vida, onde o amor, cantando, vibra.

Ser mãe é ser um anjo que se libra
sobre um berço dormindo! É ser anseio,
é ser temeridade, é ser receio,
é ser força que os males equilibra!

Todo o bem que a mãe goza é bem do filho,
espelho em que se mira afortunada,
Luz que lhe põe nos olhos novo brilho!

Ser mãe é andar chorando num sorriso!
Ser mãe é ter um mundo e não ter nada!
Ser mãe é padecer num paraíso!

Parece importante chamar a atenção para a afirmativa de “ser mãe é ter um mundo e não ter nada!” que, fazendo coro à canção popular no início citada, reveste-se, sob a visão atual que se tem sobre os direitos da mulher, com o significado oposto ao que pretendia o poeta. Essa visão parece retomada no poema que se segue. Nele, tradução de um pensamento contemporâneo, a maternidade – paternidade –, esvaziada de seu pseudo conteúdo sagrado, de seu idealismo, está colocada no mesmo patamar de outros elementos da vivência hodierna da mulher, analisada dentro de seus limites reais. Vale se atentar para o fato de que esse eu que “filosofa” se neutraliza ou se amplia nesse “a gente”, independente de sua condição de gênero. Ter filho não é sagrado, é humano.

190

Martha Medeiros

o sentido da vida
é o que a gente sente

por um filho
que é a cara da gente

por um trabalho
que ocupa a mente

por um amor
que nos deixa doente

pena que isso não baste
por mais que se tente

(Poesia Reunida)

O diálogo de opostos, quando se cotejam os poemas de Coelho Neto e Martha Medeiros, fica claro e resumido no trecho “Todo o bem que a mãe goza é bem do filho,/espelho em que se mira afortunada,” em oposição à “pena que isso não baste/ por mais que se tente.” Serão os versos finais da citada poeta a chave para o suspiro da mãe drummoniana?
(Aguardo você em Poema Vivo e Conto-gotas.)

(Continuo remetendo para o Longitudes, de Nydia Bonetti, poeta que postei em Literatura em vida 2. É maravilhar-se.)