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sábado, 28 de dezembro de 2013

FELIZ ANO NOVO

         Desejo a todas as pessoas que têm visitado meu blogue em 2013 que o ano de 2014 seja pleno de realizações e muita paz. Teremos muitos compromissos como cidadãos, no próximo ano, e a sensatez, aliada à informação segura, deverão ser nosso norte. Nada de ouvir apenas a mídia comprometida com seus próprios interesses. A Internet está repleta de sites isentos e sérios. Vamos a eles.
       Não me esqueci das novas postagens sobre literatura, mas, como estou escrevendo um livro de análise literária, conforme informei anteriormente, não tenho podido vir com muita frequência. Não imaginem, de forma alguma, que abandonei meus estudos aqui.
       Há, no entanto, muita matéria a ser consultada neste espaço, se alguém se interessar, em postagens mais antigas. Convido, desse modo, minhas fiéis amigas e meus fiéis amigos a uma viagem para trás no blogue.
       Comprometo-me a achar um tempo em meu afazer principal e postar mais em 2014. 

Continuo a convidar para uma visita a meus blogues Poema Vivo (link) Conto-gotas (link).
    

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Estudo de Escobar: desagravo a Capitu - PARTE II


Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais - RJ)

Na primeira parte desse estudo sobre Dom Casmurro, de Machado de Assis, foram feitas considerações sobre o caráter da personagem Escobar, suposto lado de um triângulo amoroso, traçado pelas palavras de um marido, Bentinho, que se supõe traído, o que torna o depoimento passível de dúvida. Foi chamada a atenção de quem lê para dois fatores: a complacência com que o narrador vai enumerando detalhes sobre o outro, que vão formando uma índole no mínimo suspeita, ânimo bastante diferente que mantém em relação a ex-mulher Capitu; a vocação “comercial” de Escobar, que será mais detalhadamente explicitada neste segmento.
Quando começa a frequentar a casa de Bentinho, o ainda postulante a padre, impressiona a família do amigo. Apenas a velha prima, extremamente crítica, enxerga nele o que os demais não veem. Mas a observação que faz vem ao encontro daquilo que já vinha sendo suspeitado por quem lê:

e prima Justina não achou tacha que lhe pôr; depois, sim, no segundo ou terceiro domingo, veio ela confessar-nos que o meu amigo Escobar era um tanto metediço e tinha uns olhos policiais a que não escapava nada. (cap. XCIII)

Ao contrário da prima, ao companheiro de seminário surpreende o carinho e admiração com que o visitante se refere sempre à D.a Glória, sua mãe:

- Também eu fiquei gostando de todos, mas é possível fazer distinção, confesso-lhe que sua mãe é uma pessoa adorável. (cap. LXXVIII )

Nem de outro modo se explica a opinião de Escobar, que apenas trocara com ela quatro palavras. (cap. LXXIX)

Insistia na educação, nos bons exemplos, na “doce e rara mãe” que o céu me deu... Tudo isso com a voz engasgada e trêmula.
Todos ficaram gostando dele. (cap. XCIII)

Escobar confessou esse acordo do interno com o externo, por palavras tão finas e altas que me comoveram; depois, a propósito da beleza moral que se ajusta à física, tornou a falar de minha mãe, “um anjo dobrado”, disse ele. (mesmo capítulo)

Aos poucos, Escobar vai amiudando a conversa sobre a viúva e Bentinho, ingenuamente, vai dando as explicações.

- Já fez quarenta, respondi eu vagamente por vaidade.
- Não é possível! exclamou Escobar. Quarenta anos! Nem parece trinta; está muito moça e bonita. Também a alguém há de você sair, com esses olhos que Deus lhe deu; são exatamente os dela. Enviuvou há muitos anos?
Contei-lhe o que sabia dela e de meu pai. Escobar escutava atento, perguntando mais, pedindo explicação das passagens omissas ou só escuras. […] E não contávamos voltar à roça? (cap. XCIII)

Mas os detalhes que vai arrancando de Bentinnho não se limitam a aspectos pessoais da senhora. Aos poucos, Bentinho acaba fazendo um verdadeiro inventário dos bens da mãe: o número de escravos que tinha, todas as casas que possuía alugadas, além da casa de Mata-Cavalos – hoje Rua do Riachuelo – e a da roça:

- O que me admira é que D. Glória se acostumasse logo a viver em casa da cidade, onde tudo é apertado; a de lá é grande naturalmente.
- Não sei, mas parece. Mamãe tem outras casas maiores que esta; diz porém que há de morrer aqui. As outras estão alugadas. Algumas são bem grandes, como a da Rua da Quitanda... (cap. XCIII)

O interesse de Escobar – travestido de qualquer outra coisa, como supõe o Bentinho da época, mas do qual desconfia a pessoa que lê – vem como golpe final, algumas páginas adiante:

Nem ele sabia só elogiar e pensar, sabia também calcular depressa e bem. […] Não se imagina a facilidade com que ele somava ou multiplicava de cor. (cap. XCIV)

- Por exemplo... dê-me um caso, dê-me uma porção de números que eu não saiba nem possa saber antes... olhe, dê-me o número das casas de sua mãe e os aluguéis de cada uma, e se eu não disser a soma total em dous, em um minuto, enforque-me! (cap. XCIV)

O Dom Casmurro, o homem já maduro que resolve narrar suas memórias, vai assim desenvolvendo um perfil de Escobar, que se harmoniza com aquela guinada, pouco compreendida, de seminarista a comerciante. É sem surpresa que a perspicácia do comentário da prima é encontrado adiante:

Era opinião de prima Justina que ele afagara a ideia de convidar minha mãe a segundas núpcias. (cap. XCVIII)

E sem surpresa também se percebe a natureza do interesse do rapaz pela mãe do amigo e do motivo de sua desistência, surpreendido em suas próprias palavras: “D. Glória é medrosa e não tem ambição.” (mesmo capítulo)
Se o matrimônio com D.a Glória não parece possível, a amizade com Bentinho, o herdeiro, é passível de concretização. É de Escobar a ideia de que a promessa da mãe do amigo de dar um padre a Deus, seja cumprida por outro menino, um menino orfão. Assim sairiam os dois do seminário e o casamento de Bentinho seria possível e a amizade continuaria.
E é o que se verifica. Porque o imprevisto casamento de Escobar com Sancha, a melhor amiga de Capitu, a eleita de Bentinho e sua esperada futura esposa, estreita e alicerça a amizade.

Venceu Escobar; posto que vexada, Capitu entregou-lhe a primeira carta, que foi mãe e avó das outras. Nem depois de casado suspendeu ele o obséquio... Que ele casou, – adivinha com quem, – casou com a boa Sancha, a amiga de Capitu, quase irmã dela, tanto que alguma vez, escrevendo-me, chamava a esta a “sua cunhadinha”. Assim se formam as afeições e os parentescos, as aventuras e os livros. (mesmo capítulo)

Apesar de Capitu e o marido terem esperado por um longo tempo a vinda de um filho que parecia quase impossível – Sancha e Escobar já eram pais de uma menina –, nascidos os filhos de ambos, estabelecia-se a intimidade total dos casais.
É o filho de Bentinho e Capitu, entretanto, que, crescendo e teimando em imitar, em todos os gestos e atitudes o marido de Sancha, que faz o pai levantar a suspeita da traição de sua mulher com Escobar, mesmo depois da morte desse. Não há, em toda a narrativa, nenhum dado concreto que justifique as suspeitas do marido, a não ser suas conclusões subjetivas, seu enorme sentimento de inferioridade diante de Capitu. Inclusive, o próprio sentimento de Escobar em relação a sua filha e o filho do amigo – “Escobar acompanhava muita vez as minhas criancices; também interrogava o futuro. Chegava a falar da hipótese de casar o pequeno com a filha”. (Cap. CVIII) – embaça no espírito de quem faz a leitura a possibilidade de serem irmãos. Seria o desejo de Escobar, lançado no meio do discurso do velho narrador, uma pista para desfazer sua desconfiança paranoica? Ou, ao contrário, para enfatizar o grau elevado e sem limites de uma jogada comercial, que envolveria seus próprios filhos e garantiria ao comerciante a fortuna do outro?
De qualquer modo, o que fica evidente, com uma leitura analítica, é a desigualdade de tratamento com que são tratados os supostos parceiros de traição. Apesar de ter seu temperamento esboçado, aos poucos, salva-se Escobar do julgamento inclemente dado pelo memorialista à sua mulher. Salva-se, ainda, desse mesmo julgamento feito pela opinião pública e crítica nesses cem anos de publicação de Dom Casmurro.


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sábado, 10 de agosto de 2013

Estudo de Escobar: desagravo a Capitu

Eliane F.C.Lima  (Registrado no Escritório de Direitos Autorais - RJ)

A reflexão de hoje será feita, em duas partes, sobre uma personagem de Dom Casmurro (1899), de Machado de Assis, personagem central na trama, mas que normalmente é relegada a segundo plano em comparação com a controversa personagem Capitu, que se torna o objeto principal da narração, na velhice, feita pelo ciumento marido – Bentinho –, cujo objetivo é sobrepor prova sobre prova da personalidade capciosa da ex-esposa e de sua suposta infidelidade: “olhos de ressaca”; “olhos de cigana oblíqua e dissimulada”, dentre outras. Tal figura feminina tem frequentado um número enorme de análises do romance, quase sempre com a mesma visão do narrador, indício de que a argumentação daquele atingiu seu intento principal, que era o de tomar quem lê – e desse destino não escapa a maioria dos críticos – como principal cúmplice de sua teoria.
Escobar é o amigo de Bentinho, amigo do seminário, que seria o par de Capitu nessa presumida traição, mas que, estranhamente, não tem tido o mesmo prestígio da companheira de ficção. Seria o destino de Capitu o mesmo da Eva bíblica – e sua serpente, como sua versão zoomórfica –, ou seja, ligado à maligna e traiçoeira “essência” feminina?
Ao longo de seu discurso, Bentinho também vai, aos poucos, fornecendo a seu destinatário sinais significativos – segundo sua visão parcial de narrador profundamente magoado e envolvido na história – da personalidade do companheiro, embora a aparente inocência com que o faz – ou seria complacência? – possa intrigar a pessoa leitora, se se confrontar com a implacabilidade de sua análise da personagem feminina. A tão somente contínua narração de passagens que dão pistas sobre o caráter de Escobar já faz quem lê suspeitar de que o estado de ingenuidade de Bentinho sobre o antigo camarada é falso, que ele pretende marcar o perfil de sua personagem masculina, o que surpreende sobre seu omisso e condescendente julgamento sobre ela, comparativamente ao inclemente juízo sobre Capitu. Se Escobar conseguiu fugir da condenação da personagem narradora, à época em que os fatos aconteciam, via morte – afoga-se nadando –, por que o sentimento de tolerância persiste, no final da vida de Bentinho, quando resolve fazer um balanço judicativo e implacável?
Façamos um breve preâmbulo sobre Escobar, o qual era três anos mais velho que o ingênuo amigo: primeiro é preciso se atentar para o fato de que, tendo  se tornado amigos durante sua estada no seminário, o companheiro abandona seu desejo de ordenar-se padre – por quê? –  praticamente à mesma época do protagonista, para dedicar-se ao comércio, o que, convenhamos, é uma guinada bem violenta em relação às intenções iniciais. Guardemos essa vocação “comercial” como um traço importante da sequência narrativa – e argumentativa – que está por vir.
Durante sua estada ali, fala repetidamente de uma irmã, louvando-lhe em excesso as qualidades, chegando ao ponto de mostrar a Bentinho as cartas que essa lhe envia. Quem lê já começa a estranhar essa porta aberta em sua intimidade – ou na intimidade de Bentinho –, o que não era comum naqueles tempos, ou a desconfiar de sua pretensão. Adiante, no mesmo capítulo, Bentinho completa, a respeito das palavras da irmã do outro, que “tais eram que me fariam capaz de acabar casando com ela se não fosse Capitu.”
Comecemos, então, a analisar o discurso de Bentinho sobre Escobar através – a suspeita sobre as palavras do Bentinho ciumento deve ser mantida pelo analista isento – da narrativa.

Quem não estivesse acostumado com ele podia acaso sentir-se mal, não sabendo por onde lhe pegasse. Não fitava de rosto, não falava claro nem seguido; as mãos não apertavam as outras, nem se deixava apertar delas, porque os dedos, sendo delgados e curtos, quando a gente cuidava tê-los entre os seus, já não tinha nada. (capítulo LVI)

Uma coisa não seria tão fugitiva, como o resto, a reflexão: íamos dar com ele, muita vez, olhos enfiados em si, cogitando. (o mesmo capítulo)

Quando ele entrou na minha intimidade pedia-me frequentemente explicações e repetições miúdas, e tinha memória para guardá-las todas, até as palavras. Talvez esta faculdade prejudicasse alguma outra. (o mesmo capítulo)
 


A reflexão dos exemplos acima já configura um ser esquivo, que pouco se deixa revelar – “não sabendo por onde lhe pegasse” –, mas que, ao contrário, tem como costume – pelo menos a Bentinho – investigar o outro.
Alguns parágrafos à frente, o narrador completa: 


A princípio fui tímido, mas ele fez-se entrado na minha confiança. Aqueles modos fugitivos cessavam quando ele queria, e o meio e o tempo os fizeram mais pousados.


A impressão que fica é de alguém que quer observar miudamente, sem ser observado. E o resultado dessa observação  – “... e tinha memória para guardá-las todas, até as palavras.” – parece estar contemplado naquele “cogitando”, termo cuidadosamente escolhido pelo narrador, pois cogitar é muito mais do que simplesmente pensar. Visto que os trechos anteriores fazem parte do mesmo parágrafo, concluí-se – essa provavelmente é a intenção do narrador no momento de seu relato – que a memória das explicações e repetições miúdas, dadas por Bentinho, devia ser, muita vez, a matéria do cogitar da personagem  descrita.
Por último, é impossível, igualmente, não se encontrar semelhança entre o “não fitava de rosto”, para Escobar no primeiro exemplo, e “olhos de cigana oblíqua e dissimulada”, aplicados a Capitu.
Do mesmo modo, é igualmente impossível não se reconhecer afinidades entre o “... pedia-me frequentemente explicações e repetições miúdas” e  o “olhos enfiados em si, cogitando”, isto é, no costume da “reflexão” sobre as informações persistentemente buscadas, por parte de Escobar e essas mesmas características na menina amada por ele:

Capitu refletia. A reflexão não era cousa rara nela, e conheciam-se as ocasiões pelo apertado dos olhos. Pediu-me algumas circunstâncias mais, as próprias palavras de uns e de outros, e o tom delas. (cap. XVII)

Mostrar que Escobar e Capitu eram feitos um para o outro é a intenção do velho dom casmurro? 
(Este artigo continua na próxima postagem).

Remeto a meus blogues Conto-gotas (link) e Poema Vivo (link).

domingo, 23 de junho de 2013

Polifonia: um recurso do engenho poético


Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais - RJ)

Ainda a propósito dos conceitos bakhtinianos estudados em postagem anterior, solicito  a releitura de "Dialogismo" e "polifonia" ali resumidamente transcritos. 
Hoje é analisado um poema de Adélia Prado, do livro Oráculos de maio, e se verifica o quanto a perícia literária se aproveita das prerrogativas da linguagem comum, qual seja, desses dois aspectos. Dialogando, então, com um texto de domínio público, caro a uma coletividade ocidental, a escritora solicita o concurso de uma voz alheia ao poema, mas essencial para a configuração do discurso do sujeito lírico, suas significâncias e alcance.
 
       Mulher ao cair da Tarde


Adélia Prado



Ó Deus, não me castigue se falo

minha vida foi tão bonita!

Somos humanos,

nossos verbos têm tempos,

não são como o Vosso,

eterno.


Uma leitura atenta começa por identificar os termos “Deus” e “verbos”, o que remete a uma voz que se pronuncia no Gênesis, “No princípio era o verbo”, que se refere, naturalmente a uma prerrogativa divina, pejada de sua aura de sagrado e sempiternidade. 
Mas essa mesma leitura permite entrever que o locutor se apropria, sub-repticiamente, dessa sentença narrativa, para, em seu procedimento, apor ao termo “verbo” e a seu sentido original de Logos1 bíblico, seu significado contemporâneo de termo gramatical, em uma de suas características, qual seja a temporal, finita: “nossos verbos têm tempos”. Magistralmente, liga os dois significados e os opõe, ao apontar em outra direção, justificando, assim, a transitoriedade de sua condição humana. E o emprego de “foi tão bonita” em lugar de “é tão bonita”, ou seja o lamento por essa transitoriedade de aspectos, soa, para o agente do discurso, como uma ingratidão em relação a esse Deus e, portanto, quase como um pecado.
O entendimento do texto e o alcance da longitude poética partem e dependem, então, basicamente, do entendimento da afirmativa dessa outra voz de domínio coletivo, da identificação do significado primordial da palavra “verbo” ali empregado, do entrecruzar dessas duas vozes presentes. O diálogo da voz chamada ao texto e da voz enunciadora, através do jogo entre os dois significados do termo, constrói o significado geral do texto poético – há uma nítida distância estabelecida, então, entre “humanos” e a divindade, embutida naquele “Vosso” – e delineia o discurso daquela “Mulher ao cair da tarde”, que, assim, assume sua humana fragilidade e o direito à avaliação negativa sobre sua própria condição.
1. Conforme o dicionário Aulete digital, dentre outros conceitos, destacam-se: I.“conjunto de leis e conexões que, comandando o universo, formam uma espécie de inteligência cósmica”, segundo “o filósofo grego Heráclito (séc. V a.C.)”; II. Para a filosofia estoica é o princípio que anima e organiza a matéria, agindo como força determinante do destino e da racionalidade humanas”. No entanto, acredita-se que um terceiro conceito deste mesmo dicionário é o mais adequado ao texto da escritora: “No Evangelho de João, o Deus criador e seu filho, Jesus Cristo, que representam o poder e o saber absolutos da razão divina”.

Convido para meus blogues Poema Vivo (link) e Conto-gotas (link). 

quinta-feira, 2 de maio de 2013

AVISO

                   Caras amigas e caros amigos,
     Como estou me dedicando à elaboração de um livro de estudos literários, os artigos estão sendo postados aqui com mais vagar. Mas há muito comentário feito desde que o blogue começou. Acredito que valha à pena voltar às postagens anteriores, principalmente, às de aspecto analítico-didático, que são o objeto do livro que ora escrevo. Não imaginem que me esqueci de meu público leitor. Volto sempre.
     Convido igualmente para meus blogues Poema Vivo (link) e Conto-gotas (link).

domingo, 24 de março de 2013

O texto artístico: um coro polifônico de uma só voz

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais - RJ)
Tenho trabalhado ultimamente com os conceitos de Bakhtin, filósofo russo, que, ao se debruçar sobre a linguagem, acabou penetrando em outros aspectos do saber humano, como a literatura, a linguística, entre outros.
O Círculo de Bakhtin, liderado por Mikhail Bakhitin (1895-1975), era formado por um grupo de estudiosos russos, filósofos e linguistas, liderados por quem dá nome ao grupo, no princípio do século XX, e que tinha como principal entendimento o fato de ver a linguagem e a literatura como o concurso de interações dialogais.
Para melhor entendimento dos vários conceitos que foram plasmados para a posteridade e aproveitados por outros campos de estudos, como a Análise do Discurso, por exemplo, os que mais foram apropriados pelo discurso do público, em geral, são apresentados em forma de verbetes facilmente apreensíveis. De início, deve-se chamar a atenção para o fato de que eles estão essencialmente entrelaçados e se completam.

VOZ: é a presença de alguém que fala no texto. A noção de “fala”, nesse caso, não deve ser confundida com o ato corriqueiro e cotidiano. Em alguns textos, uma determinada voz pode vir bastante dissolvida e só uma leitura arguta a percebe no meio de outra voz predominante. Nesse caso, então, quando houver mais de uma voz, haverá POLIFONIA.


Arguiam-no de avareza, e cuido que tinham razão; mas a avareza é apenas a exageração de uma virtude e as virtudes devem ser como os orçamentos: melhor é o saldo que o deficit.

(Machado de Assis, romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, cap. CXXIII)


No trecho acima, há uma voz dominante, a voz do narrador (Voz 1), identificável a partir daquele “cuido”, em primeira pessoa e que domina o trecho até o final. Porém o verbo em terceira pessoa “Arguiam” plasma um outro sujeito indeterminado, uma voz alheia ao narrador (Voz 2), que diz que a personagem em questão – o pronome “no” remete a uma terceira personagem, que é o objeto da análise do narrador – era avara. Nesse caso, têm-se duas vozes presentes (Voz 1 e Voz 2) e o trecho é marcado pela POLIFONIA. É importante se observar que as duas vozes são discordantes, pois a noção de avareza (da Voz 2) é discutida e recolocada pela Voz 1. A inconsistência, porém, do argumento da Voz 1 faz a pessoa leitora começar a desconfiar da ironia ali presente.

POLIFONIA

Como se viu acima, a polifonia baseia-se na presença das diversas vozes que dialogam entre si num mesmo texto. O concurso dessas variadas vozes pode ser de concordância ou de discordância, como no exemplo dado. Quando se faz uma citação, por exemplo, quase sempre se convoca a fala do citado como uma opinião esclaredora, com a qual se concorda.
Estudos atuais têm identificado, mais minuciosamente, a presença de vozes não claras, que  configuram a polifonia. Em uma frase como “O candidato seria incompetente”, identificam-se duas vozes: uma que é responsável pela frase, mas que escolhe usar o verbo no futuro do pretérito, emitindo a opinião – pela qual ele não se responsabiliza – de uma outra voz que afirmava, sem dúvida, que o candidato “era” incompetente.

DIALOGISMO

O mesmo trecho machadiano acima pode ser dado como exemplo desse conceito, pois ali há duas vozes, que dialogam entre si, colocando, inclusive opiniões opostas sobre o que é avareza e sobre a personagem. A noção de dialogismo tem grande peso no estudo de Bakhtin, pois é, em seu entendimento, inclusive, elemento formador da identidade do indivíduo.
Em relação ao texto, o estudioso afirma que cada novo texto é construído sobre a interação com textos anteriores e se projeta, dialogicamente, não só em relação a seus destinatários, mas aos textos futuros. Essa noção fica bem clara se atentarmos para o fato de que, na noção de dialogismo, está a base para o estágio atual do conhecimento: cada novo passo que a humanidade dá sempre parte de todas as outras descobertas que se acumulam em obras anteriores, quer para desenvolvê-las, quer para retificá-las.

INTERDISCURSIVIDADE

Esse conceito se refere à presença de um discurso anterior, formador de um outro texto, em discurso posterior de outro texto. Dessa forma, pode-se já atentar para o fato de que, ao trazer um discurso anterior, se estabelece uma polifonia, pela anexação daquela voz discursiva anterior ao novo discurso e se cria, por esse fato, um envolvimento dialógico entre essas duas vozes. São analisados dois textos abaixo.



23.

eu não sou nada disso
que você está pensando

por isso venha com calma
que eu conheço este tipo

quer acertar na mosca
acaba errando de sopa

(Martha Medeiros, em Poesia reunida.)



No poema de Martha Medeiros, há um eu lírico que elabora um discurso poético. Mas há a concorrência de pelo menos outras três vozes, que podem ser identificadas. Ao iniciar o primeiro verso com uma negação, esse sujeito lírico recusa todo um discurso mental, implícito naquele “disso” e naquele “está pensando”, o qual um ser intratextual, nomeado como “você”, faz sobre ele. O texto então já começa sua estrutura sobre a polifonia.
Na última estrofe, dois acontecimentos linguísticos trazem para o discurso desse eu poético os discursos, por assim dizer, extratextos. O primeiro, diz respeito à expressão clichê “acertar na mosca”, expressão idiomática da língua portuguesa, que, ao ser empregada no poema, traz para o texto um aspecto que vai além do uso dos vocábulos comuns, traz um discurso pronto, fossilizado, de domínio público.
Uma das características marcantes dos textos da escritora é sua relação com seu tempo. Essa marca exige do locutário – aquela pessoa que recebe a mensagem do poema – um conhecimento, pelo menos, da contemporaneidade cultural, para identificar na última estrofe a voz que se pronunica na canção “Mosca na sopa, de Raul Seixas.”: “Eu sou a mosca/Que pousou em sua sopa/Eu sou a mosca/Que pintou pra lhe abusar.” Então o emprego daquela expressão coletiva – “acertar na mosca” –  tem, ainda, uma intenção segunda, qual seja, a ligação entre “mosca” e “sopa”. Desse modo, o poema apresenta uma interdiscursividade entre o eu lírico e o sujeito discursivo daquela canção. O recurso, pleno de humor crítico, pretende fixar uma oposição entre “acertar” X “errando” e atingir aquele “você”, desautorizadamente pensante, com seu injuriante discurso. No poema, esse eu poético, além de aderir à voz que enuncia na letra da música, trazendo-a para seu próprio texto, estende a seu próprio discurso a espontaneidade e humor que caracterizam a
canção, usando-os a seu favor e intenção.
Mas há um outro caso bastante especial de interdiscursividade na literatura brasileira. É o diálogo que se estabelece entre o discursos de dois sujeitos líricos, em textos diferentes de Manuel Bandeira. Em tais poemas, a peculiaridade interdiscursiva é de tal natureza que permite a quem lê imaginar ser o sujeito lírico o mesmo, não porque a autoria comum seja a causa desse fato, mas por ser o símbolo amoroso dos dois a mesma figura “porquinho-da-índia”.


Porquinho-da-índia

         Manuel Bandeira

Quando eu tinha seis anos
Ganhei um porquinho-da-índia.
Que dor de coração me dava
Porque o bichinho só queria estar debaixo do fogão!
Levava ele pra sala
Pra os lugares mais bonitos mais limpinhos
Ele não gostava:
Queria era estar debaixo do fogão.
Não fazia caso nenhum das minhas ternurinhas...

– O meu porquinho-da-índia foi a minha primeira namorada.

(Manuel Bandeira, em Estrela da vida inteira.)


Madrigal tão engraçadinho

Manuel Bandeira


Teresa, você é a coisa mais bonita que eu vi [até hoje na minha vida, inclusive o [porquinho-da-índia que me deram quando [eu tinha seis anos.
                                                                       (Manuel Bandeira, em Estrela da vida inteira.)



INTERTEXTUALIDADE

O termo foi plasmado por Julia kristeva, membro atuante da crítica francesa, que partiu da ideia de dialogismo, conceito de Mikhail Bakhtin a propósito dos romances de Dostoiévski, donde se originou o conceito de polifonia, que tem como principal condição a diversidade de vozes concorrentes no interior de um texto.
Na intertextualidade, a par da polifonia e suas várias vozes e do dialogismo, há interdiscursividade, não se devendo confundir uma com a outra, pois, nos casos descritos anteriormente, temos a presença dessa última, sem  a colaboração daquela. Só se pode falar em intertextualidade, quando há a presença material de texto preexistente.
Um dos contos presentes na antologia Os cem menores contos brasileiros do século (Organização de Marcelino Freire, Cotia,SP: Ateliê editorial, 2004 (Coleção 5 minutinhos) pode exemplificar, ainda, a diferença entre esses dois conceitos.



           FIM DE PAPO

Antônio Carlos Secchin

Na milésima segunda noite,
Sherazade degolou o sultão.

 

No texto, fica clara a alusão a uma série de elementos do discurso dos contos que compõem a coletânea oriental As mil e uma noites, onde uma princesa, Sherazade, mulher de um sultão, narra histórias, à noite, tentando prolongar sua vida e contrariar o destino das outras esposas anteriores, as quais foram mortas no dia seguinte às núpcias. O discurso do texto de Secchin remete aos elementos mais marcantes do discurso daquela obra. Mas, além de não haver citações textuais, a subversão empreendida – milésima segunda noite, degolou o sultão – tenciona e estabelece um confronto com a obra em si.

No poema abaixo, finalmente, vamos nos deparar com o que estabelece o conceito de intertextualidade. 


  
 33.

tango ensaiado
boca pintada
só de danada
lasco um decote
profundo
rosa vermelha
batom maravilha
só de rasteira
lasco um pingente
na orelha

don't cry for me
segunda-feira
 
(Martha Medeiros, em Poesia reunida.)

    O processo de intertextualidade – identificam-se, nele, também, a polifonia, a interdiscursividade, o dialogismo com a outra obra, enfim – se apresenta pela inserção, ao final do poema, da citação materialmente presente de parte do refrão de “Don't cry for me, Argentina”, de uma canção do musical de 1978,  “Evita”, cuja música é de Andrew Lloyd Webber e letra de Tim Rice, refrão que anexa, destarte, uma segunda voz à predominante do eu textual, para enfatizar o que já havia sido inaugurado com “tango ensaiado” e com toda a descrição da primeira estrofe.
    O inesperado está, entretanto, na mudança do vocativo para “segunda-feira”, o que modifica inteiramente a significância do dito refrão – a pessoa locutária pressente de que forma vai terminar aquela preparação sensual da primeira estrofe – e anula-lhe inteiramente a dramaticidade original. Um quê de humor ainda continua a ser a marca do poema de Martha Medeiros.
Todos os elementos aqui estudados e que se configuram num recurso empreendido pelo escritor, enriquecem-lhe o texto, perpassam seu discurso  com a  riqueza do discurso do outro, mas sempre se submetem e se transformam numa nova criação.

Aguardo sua visita em Poema Vivo (link) e Conto-gotas (link).




domingo, 10 de março de 2013

A nova mulher: o "tornar-se agente" em Castro Alves

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais - RJ)
Na sexta-feira, dia 08-03-2013, foi o Dia Internacional da Mulher. Embora seja apenas um dia, serve para lembrar às mulheres, principalmente, que somos nós que devemos reger nossos destinos. Resolvi trazer um poema de Antônio Frederido de Castro Alves (1847-1871 – poeta baiano, pertencente à terceira geração romântica, mais conhecido por seus poemas abolicionistas). É feito um superficial estudo sobre suas significações, sendo esta apenas uma possibilidade de leitura.

       
O adeus de Teresa

Castro Alves

A vez primeira que eu fitei Teresa,
Como as plantas que arrasta a correnteza,
A valsa nos levou nos giros seus...
E amamos juntos... E depois na sala
“Adeus” eu disse-lhe a tremer co’a fala...

E ela, corando, murmurou-me: “adeus”.

Uma noite... entreabriu-se um reposteiro...
E da alcova saiu um cavaleiro
Inda beijando uma mulher sem véus...
Era eu... Era a pálida Teresa!
“Adeus” lhe disse conservando-a presa...

E ela entre beijos murmurou-me: “adeus!


Passaram tempos... séc’los de delírio...
Prazeres divinais... gozos do Empíreo...
... Mas um dia volvi aos lares meus.
Partindo eu disse – “Voltarei!... descansa!...”
Ela, chorando mais que uma criança, 
Ela em soluços murmurou-me: “adeus!”

 
Quando voltei... era o palácio em festa!...
E a voz d’Ela e de um homem lá na [orquestra
Preenchiam de amor o azul dos céus.
Entrei!... Ela me olhou branca... surpresa!
Foi a última vez que eu vi Teresa!...
 
E ela arquejando murmurou-me: “adeus!”


    Quando se lê o poema do romântico Castro Alves fica evidente que é estruturado sobre uma narração – a par do lirismo predominante, é óbvio –, como base intencional para a construção do verdadeiro e maior significado,  a “narratividade”, a qual domina o texto, conforme se pode compreender através da definição de José Luiz Fiorin, em seu Elementos de análise do discurso (10.ed., São Paulo: Contexto, 2001):


Na realidade, é preciso fazer uma distinção entre narratividade e narração. Aquela [narratividade] é componente de todos os textos, enquanto esta [narração] concerne a uma determinada classe de textos. A narratividade é uma transformação situada entre dois estados sucessivos e diferentes. 

 
    Para se exemplificar concretamente a diferença entre as duas, a narração em que se desenrola todo o texto do poeta baiano, pode ser identificada, por exemplo, nos elementos temporais que vão encadeando uma história que está sendo contada sobre um eu lírico e uma mulher chamada Teresa: “A vez primeira que eu fitei Teresa”,”E depois na sala”; “Uma noite... entreabriu-se um reposteiro...”; “Passaram tempos... séc’los de delírio...”; “Quando voltei... era o palácio em festa!...”; “Foi a última vez que eu vi Teresa!...”.
    No entanto a narratividade – “a transformação situada entre dois estados sucessivos e diferentes” –, embora seja encontrada até num trecho como “Ela me olhou branca... surpresa!” (última estrofe, na qual a figura Teresa passa de um estado de alegria para um estado de negativa surpresa), pode ser avaliada como a verdadeira intenção do discurso total do eu poético, o que seria, afinal, sua configuração lírica: se, no texto, há um enfoque amoroso, o processo em que esse sentimento se dá vai numa metamorfose de sentidos opostos, pois, como o título mesmo sugere, o que era delírio e sensualidade acaba numa cena de despedida, ou em “disjunção”, como nomeia o mesmo Fiorin.
    A leitura do texto identifica duas figuras centrais, qual seja, um eu poético, reconhecível em todos os pronomes de primeira pessoa, e Teresa, o centro amoroso das atenções desse sujeito lírico.
    Um olhar perscrutador, entretanto, identifica um desdobramento na figura desse eu poético. Há, na verdade, duas presenças: um eu enunciador, que olha de um lugar e um tempo diferentes, e narra um fato, como seu objeto, e um outro, que, nomeado até em terceira pessoa, passa a fazer parte desse objeto narrado: “Uma noite... entreabriu-se um reposteiro.../E da alcova saiu um cavaleiro/Inda beijando uma mulher sem véus...”.
    O mais importante, porém, é a presença do termo “adeus”, que percorre todo o poema, marcando uma partida, cuja iniciativa vem sempre do eu lírico, o elemento masculino da relação, que, assim, estabelece, com  suas ausências, a interrupção ou a retomada do evento amoroso. À Teresa, o elemento feminino, só cabe a resposta resignada à ação do sexo oposto.
    Mas uma mudança no estado de ânimo da figura feminina, levada pelo aprofundamento do sentimento amoroso, em relação às partidas do amado, embora não percebida por ele, então, vai sendo sutilmente revelada por esse sujeito lírico que volve seu olhar, já criticamente, do presente para o passado: “E ela, corando, murmurou-me: 'adeus'” (após a primeira estrofe); “E ela entre beijos murmurou-me: 'adeus!'” (após a segunda); “Ela, chorando mais que uma criança,/Ela em soluços murmurou-me: 'adeus!'” (após a terceira).  
    O desfecho do texto, todavia, marca uma mudança radical no aspecto desnivelado dessa relação e na atitude da figura Teresa frente a ela: o  adeus definitivo protagonizado pela mulher, o movimento  no sentido de definir seu próprio destino.
    O título “O adeus de Teresa”, enfático, anula as atitudes do sujeito masculino, diminuindo-o frente à figura feminina, marcada pela importância desse “tornar-se agente”.

Convido a quem me visita a ir também a meus blogues Conto-gotas (link) e Poema Vivo (link).

domingo, 3 de fevereiro de 2013

Ficcionalidade: a interseção de mundos


Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais - RJ)

A conhecidíssima escritora Marina Colasanti (1937) nasceu em Eritreia, uma, então, colônia italiana na África. Viveu, posteriormente, na Itália, durante onze anos, findos os quais sua família emigrou para o Brasil. Suas primeiras experiências com a arte foram com a pintura, tendo participado de várias exposições e, só mais tarde, se reportando para a literatura.
Tem uma obra extensa. Publicou 33 livros de contos, poesia, prosa, literatura infantil e infanto-juvenil, como o conto a seguir. Já ganhou várias vezes o prêmio Jabuti, como o de poesia por Rota de colisão (1993 - poemas) e, em 2010, por Passageria em trânsito. São bastante conhecidos seus livros Uma ideia toda azul (1978 - contos)  e  Eu sei, mas não devia (1995 – crônicas). Para maiores informações remeto ao link .

Antes que chegue a manhã

Marina Colasanti

Acabada a sopa de nabos, um ferreiro cochilou por instantes junto ao fogo, depois foi deitar-se ao lado da esposa, soprou a vela e adormeceu.
Sonhou que subia em uma carruagem. Os cavalos galopavam, galopavam, e embora a noite fosse interminável, logo chegaram a uma cidade e pararam diante de uma edificação nobre e grandiosa. O ferreiro saltou, atravessou o grande umbral, subiu a escadaria de pedra. Seus pés conheciam cada degrau. Chegando ao alto, abriu a segunda de muitas portas de uma longa galeria e, apressado para não ser colhido pela manhã, despiu-se e meteu-se entre os lençóis na grande cama de dossel vermelho. O dossel ondulou de leve, sua cabeça despencou no sono.
Acordou com a primeira luz da manhã varando a janela e cortinado. Suas roupas estavam na cadeira. Vestiu-se rapidamente, abriu a porta, desceu a escadaria, e entrou na carruagem.
Os cavalos galoparam, galoparam e embora o dia parecesse não ter fim, logo era noite e chegaram a uma aldeia. Pararam diante de uma casa. O ferreiro saltou, empurrou a porta que sua mão conhecia tão bem, sentou-se à mesa e começou a comer. Acabada a sopa de nabos, cochilou por alguns minutos junto ao fogo, depois foi deitar-se com a esposa, apagou a vela como quem apaga o dia, e entregou a cabeça ao travesseiro.
Lá fora, a carruagem esperava.
(do seu coração partido - 2009)

O texto se apresenta, numa primeira abordagem, como uma narrativa que se divide em duas partes: a primeira coincidiria com o parágrafo inicial e se caracterizaria por configurar o mundo real, embora ficcional. 
A partir do “Sonhou que”, no segundo parágrafo, a narrativa muda de rumo e envereda por uma atmosfera de sonho.
Com o início do terceiro parágrafo, levada pelo "acordou com a primeira luz da manhã", a pessoa leitora, em um primeiro momento, imagina o final desse mundo do inconsciente, mas, ao se ver diante da alusão à escadaria do sonho e da figura "carruagem", uma de suas principais marcas oníricas e de grande valor significativo para o texto, acaba imaginando que esse mundo especial, então, continua dominando a narrativa até o final do conto.
Ao entrar no trecho “Acabada a sopa de nabos” do quarto parágrafo, porém, a/o agente da leitura reconhece, a partir dali, os principais elementos do que supunha até então ser o mundo real, o mundo vígil da personagem “ferreiro”,  reconhecível no primeiro parágrafo, o que vai criando uma sensação de estranhamento – e de crescente dúvida –, visto estar inserido, agora, na sequência de sonho que vinha se desenvolvendo. 
O paradoxo chega a seu grau máximo, quando aquele símbolo onírico - “Lá fora, a carruagem esperava.”-, que parecia já ser parte significativa de um determinado percurso de leitura, o qual começava a ser supostamente desviado para o outro, fecha a sucessão, no último parágrafo, enredando quem recebe o texto num círculo vicioso e num furacão de possibilidades interpretativas.
De posse desse novo dado, a certeza de que a figura ferreiro está, no parágrafo que abre o texto, em um mundo real, a certeza de que aquele caminho de leitura deve ser aceito, se abala. A receptora/o receptor do texto, inconscientemente, refaz o início da leitura e se pergunta se não deve suspeitar ali também da presença não declarada do “Lá fora, a carruagem esperava.” 
Diversos textos de Marina Colasanti, como o conto transcrito, colocam a/o agente da leitura num terreno lábil, marcado pela incerteza, pela imbricação de várias trajetórias de leitura – por várias isotopias, como  são chamadas –, o que faz algumas/alguns analistas verem neles uma tendência ao fantástico, que se caracteriza pela hesitação entre um fato com uma explicação racional, do senso comum, e entre outro, que tem uma origem estranha às leis da natureza. Apesar da avaliação ser verdadeira para muitos deles, no texto em questão, diferentemente disso, a opção dessa/desse agente parece decidir a natureza do  conto.

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