Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais - RJ)
Ainda a propósito dos conceitos bakhtinianos estudados em postagem anterior, solicito a releitura de "Dialogismo" e "polifonia" ali resumidamente transcritos.
Hoje é analisado um poema de Adélia Prado, do livro Oráculos de maio, e se verifica o quanto a perícia literária se aproveita das prerrogativas da linguagem comum, qual seja, desses dois aspectos. Dialogando, então, com um texto de domínio público, caro a uma coletividade ocidental, a escritora solicita o concurso de uma voz alheia ao poema, mas essencial para a configuração do discurso do sujeito lírico, suas significâncias e alcance.
Mulher ao cair da Tarde
Adélia Prado
Ó Deus, não me castigue se falo
minha vida foi tão bonita!
Somos humanos,
nossos verbos têm tempos,
não são como o Vosso,
eterno.
Uma
leitura atenta começa por identificar os termos “Deus” e
“verbos”,
o que remete a uma voz que se pronuncia no Gênesis, “No princípio
era o verbo”, que se refere, naturalmente a uma prerrogativa
divina, pejada de sua aura de
sagrado
e sempiternidade.
Mas
essa mesma leitura permite entrever que o locutor se apropria,
sub-repticiamente, dessa sentença narrativa, para,
em
seu procedimento, apor
ao
termo “verbo” e
a seu
sentido original de
Logos1
bíblico,
seu
significado contemporâneo de termo gramatical, em uma de suas
características, qual seja a temporal, finita:
“nossos verbos têm tempos”. Magistralmente,
liga
os dois significados e os opõe, ao
apontar em outra direção, justificando, assim, a transitoriedade de
sua condição humana. E o emprego de “foi tão bonita” em lugar
de “é tão bonita”, ou seja o lamento por essa transitoriedade
de aspectos, soa, para o agente do discurso, como uma ingratidão em
relação a esse Deus e, portanto, quase como um pecado.
O entendimento do texto e o alcance
da longitude poética partem e dependem, então, basicamente, do
entendimento da afirmativa dessa outra voz de domínio coletivo, da
identificação do significado primordial da palavra “verbo” ali
empregado, do entrecruzar dessas duas vozes presentes. O diálogo da
voz chamada ao texto e da voz enunciadora, através do jogo entre os
dois significados do termo, constrói o significado geral do texto
poético – há uma nítida distância estabelecida, então, entre
“humanos” e a divindade, embutida naquele “Vosso” – e
delineia o discurso daquela “Mulher ao cair da tarde”, que,
assim, assume sua humana fragilidade e o direito à avaliação
negativa sobre sua própria condição.
1.
Conforme o dicionário Aulete digital, dentre outros conceitos,
destacam-se: I.“conjunto de leis e conexões que, comandando o
universo, formam uma espécie de inteligência cósmica”, segundo
“o filósofo grego Heráclito (séc. V a.C.)”; II. Para a
filosofia estoica é o princípio que anima e organiza a matéria,
agindo como força determinante do destino e da racionalidade
humanas”. No entanto, acredita-se que um terceiro conceito deste
mesmo dicionário é o mais adequado ao texto da escritora: “No
Evangelho de João, o Deus criador e seu filho, Jesus Cristo, que
representam o poder e o saber absolutos da razão divina”.
Um comentário:
Vejo que terei boas dicas aqui pra o vestibular que se aproxima! Obrigada pelos elogios!
Xerus
Gabi (http://abrindooslivros.blogspot.com/)
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