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domingo, 16 de dezembro de 2012

O porto lírico de Líria Porto

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais - RJ)

A professora e poeta Líria Porto é mineira de Araguari, embora more em Araxá. Publicou o livro Borboleta desfolhada (Canto escuro editora, Portugal, 2009) e De lua (Corpos editora, Portugal), em editoras de Portugal, mas sua atuação se dá mais fortemente na Internet em blogues como “Tanto mar”, “Putas resolutas”, “Balaio porreta”, “ogatodaodete”. Participa também de outros espaços virtuais da qualidade de “Germina literatura”, “Cronópios" e "Escritoras suicidas". Podemos encontrá-la, também, no blogue "Penetra surdamente no reino das palavras" (link).
Seus textos são compostos numa linguagem bastante simples e me trazem a paz lírica também sentida com a leitura de Mário Quintana, o que não quer dizer que, usando essa linguagem simples, não consiga extrair dela efeitos poéticos inimagináveis. 

morgana 

Líria Porto 

comer dormir e sonhar 
usar chinelo de pano 
roupa larga leque de abano 
rir da morte das desgraças 
andar de cara lavada 
deixar que a vida nos faça 
afagos de vez em quando 

e se alguém não gostar 
cobrar de ti algo além 
não respondas ri e entendas 
as pessoas exigentes 
correm atrás de si mesmas 
e demoram a aprender 
o paraíso é o presente


pá lavra e enxada 

Lívia Porto

mato e morro
morro e mato
e não é suicídio
nem assassinato

é mato verde
é morro alto
é viver a vida 
longe do asfalto


Respingos

Líria Porto 

e quando a chuva caía
eu ia com a enxurrada
ia beirando a calçada
descia junto com a flor
e ria a risada d'água
aquela alegria d'água
brincava que era a flor
mas depois sentia frio
lembrava-me então do rio
da flor que o rio levou*
e os meus olhos choviam
eu era como a enxurrada
fui ficando poça d'água
que o tempo choveu
chorou



No poema “Respingos”, os versos “lembrava-me então do rio/da flor que o rio levou”, parecem trazer uma outra voz, a de Gonçalves Dias, em seu poema “Não me deixes, não!” – mania de professora de literatura, em que persistem sempre versos já lidos? –, os versos de agora sem a vibração explicitamente trágica, claro, característica do Romantismo, que era o estilo de época daquele escritor. Se no poema de Líria Porto – pontuação contida, ao contrário do outro – esse eu poético, parece definir-se por um outro tom, pois “ria a risada d'água” e sentia “aquela alegria d'água”, a princípio, tornado assimilação total com a poça d'água – lágrimas, enfim –, que o tempo chorou, aproxima-se, por via indireta, um pouco mais do lamento romântico anterior. Ao final da apresentação dos textos da poeta, transcrevo o texto do escritor romântico – ver o asterisco –, que é bonito e vale a pena ser lido.


Mas a poética de Líria Porto também paga seu tributo à presença masculina. O primeiro desses dois textos escolhidos – até por uma possível sugestão do título – pode divisar, na leitura, um tema homossexual. Essa leitura, contudo, demonstraria bastante obviedade e pobreza significativa. 
Um segundo patamar de leitura vai em outro sentido e visualiza o apagamento da visão estereotipada de gênero. Esse impulso iconoclasta começaria desde o título, pois, diferentemente da primeira interpretação dada ao título, descobre ali um jogo brincalhão de polissemia, pois chama para o texto a realidade dura dos termos contábeis e, por outro lado, introduz a eterna e clichê oposição “atividade”, normalmente atribuída a homens e “passividade”, característica imputada a mulheres. O corpo do texto, no entanto, desconstrói completamente essa visão culturalmente sedimentada, atribuindo a um ele a suavidade, a doçura, e ao eu supostamente feminino a secura oposta. A troca de papéis termina igualmente abençoada. 

ativos e passivos

Líria Porto

falo seco de arranco coisa assim de capiau
ele não - é sedoso nas palavras tem veludo na voz
gestos de moça

apesar da diferença damos-nos bem
ele faz papel de dama
eu viro homem

No segundo poema, onde é introduzido o elemento masculino, a sensualidade transita todo o texto – não fosse o tema o dançar um tango! – e se desenvolve numa oposição: se a expressão “rastrear o cheiro” tem muito do instinto animal, de cio, a exortação de “com elegância beber-lhe o espírito” instaura o traço humano no ato lúdico. 

passionais 

Líria Porto

para se dançar um tango
é preciso mais que técnica 
música luzes

há que se rastrear o cheiro o olhar
a pele as pernas a sombra do parceiro
e com elegância beber-lhe o espírito


No terceiro poema, essa presença masculina entra colateralmente como comparação: o tema do texto é o raio de sol. Mas quem chega ao final da leitura, aos três últimos versos, não tem tanta certeza de que o tema é esse. Volta ao princípio do poema – mesmo o título com seu significado de “desviar-se do bom caminho” já parece ter um novo valor – e refaz a leitura de um outro modo, desconfiando de que, na verdade, o sol entra no tema apenas de penetra.


descarrilamento 

Líria Porto

um raio de sol 
esquiva-se entre as galhas da mangueira 
engraça-se pelas folhas novas 
tenras cor-de-rosa 

encabula-se esconde-se 
depois reaparece 
feliz aprumado 
igual homem casado 
ao chegar em casa 
após o serão 



Impossível não se encontrar em Líria Porto o tema constante em todos os poetas, que se supõe sobe à garganta e vaza pelos dedos, sem poder ser evitado: o discorrer sobre o próprio ato poético. E esse ato é dor, é lavra penosa.

esqueleto 

Líria Porto

escrevo
depois faço a poda

só sobram
os ossos descarnados
do poema


dor

Líria Porto

escrevo num soco
única palavra
tem ela três letras
depois da pancada

e esse grunhido
não faz um poema
é ele o gemido
da minha pena


poeminha

um barquinho na enxurrada
e a poesia
          nada


O domínio da linguagem, do fazer lírico, como se constatou, é marcante na criação de Líria Porto e os efeitos conseguidos são poesia viva.


estrelada

Líria Porto

a noite mastiga o escuro
e cospe as sementes


o passarinho

Líria Porto

não cobra um tostão
pela serenata
de todas as manhãs


definitivo

Líria Porto

foi triste
quanto partiste
levaste a estrada.



*Não me deixes!

Gonçalves Dias 

Debruçada nas águas dum regato
A flor dizia em vão
À corrente, onde bela se mirava:
"Ai, não me deixes, não!
"Comigo fica ou leva-me contigo
Dos mares à amplidão;
Límpido ou turvo, te amarei constante;
Mas não me deixes, não!"

E a corrente passava; novas águas
Após as outras vão;
E a flor sempre a dizer curva na fonte:
"Ai, não me deixes, não!"

E das águas que fogem incessantes
À eterna sucessão
Dizia sempre a flor, e sempre embalde:
"Ai, não me deixes, não!"

Por fim desfalecida e a cor murchada,
Quase a lamber o chão,
Buscava inda a corrente por dizer-lhe
Que a não deixasse, não.

A corrente impiedosa a flor enleia,
Leva-a do seu torrão;
A afundar-se dizia a pobrezinha:
"Não me deixaste, não!"

Você está convidada(o) a meus blogues Poema Vivo (link) e Conto-gotas (link).

sábado, 1 de dezembro de 2012

O jogo da forma e do conteúdo: duas faces de uma mesma estética

O presente estudo foi publicado há cerca de dois anos. Trago-o aqui de volta por considerá-lo bastante representativo dos novos movimentos literários. 

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais - RJ)

Mocinhamoringa
(interior – anos 20)

Zulmira Ribeiro Tavares

Moça alegrinha na sua compostura. Corada sem e com vergonha. Um pouco de tudo. Pescoço de gargalo de moringa. Levezinha para cima. Para baixo, pesa. Dentro da sala sentada a prumo e a gosto. O mormaço assoma à janela, um lerdo sol de emplastro. Sem sombra de susto pensa as coisas proibidas e as de todas as horas no mesmo espaço da cabeça. Lá estão seus pensamentos-carneirinhos chamando o sono mas também retirando o ponto de todas as suas costuras. Por dentro de si mesma escorrega nuinha feito uma cobra d’água. Ninguém lhe bota a mão em cima dos pensamentos. Nadam e vão-se embora com ela pelo rente das corredeiras. Sua compostura e seu desatino se casam no mesmo barro e na mesma água. MORINGA NO AR PARADO NO MEIO DA SALA AO MEIO-DIA. Rútila. Morena. Com muito gluglus assomando. Barulhinho de água encanta o mais santo. Paredes porejando. Espanto pela suavidade da curva. Oleiro fez, oleiro desfez. Da porta já dá na vista. Tudo o que se arredonda e desmancha lá está posto junto. Se quebra ou trinca não tem outro dia. Madrinha Tiana precipitando-se para os fundos do quintal no sensacional dos agudíssimos: EU VI! EU VI!
(TAVARES, Z.R., O mandril. São Paulo: Brasiliense, 1988).

Breve biografia.
Zulmira R.Tavares nasceu em S.Paulo, em 1930. Recebeu o prêmio “Revelação em Literatura” da Associação Paulista de Críticos de Arte por Termos de comparação (conto, poesia, ensaio, Ed. Perspectiva, 1974).
Outras obras de ficção: O japonês dos olhos redondos (ficções, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1982); O nome do Bispo (romance, S.Paulo, Brasiliense, 1985).

Análise do texto

Eliane F.C.Lima

Fico na dúvida qual aspecto do texto de Zulmira é mais atraente: o seu conteúdo ou a magnífica linguagem que ela manipula. Na verdade, a segunda, levada às raias poéticas, acaba sendo o próprio texto.
Com o subtítulo, quem lê é convocado a usar todo o seu conhecimento contextual para imaginar uma mocinha de interior dos anos 20, as convenções sociais, as restrições impostas. Mas, burlando esses elementos que fixam comportamentos coletivos, o texto vai desenhando uma individualidade de mulher, silenciosa, mas não menos verdadeira – “Sem sombra de susto...” –, que se constrói interiormente, território não invadido, liberdade preservada: “Ninguém lhe bota a mão em cima dos pensamentos. Nadam e vão-se embora com ela pelo rente das corredeiras.”
A linguagem, na verdade, é a estrela principal do texto da escritora. Utilizando um processo essencialmente econômico, elíptico da linguagem, alcança resultados poéticos inusitados, como no trecho “...retirando o ponto de todas as suas costuras...” em que consegue uma superposição de significados: um que assinala a atividade rotineira de uma mulher da época e, outro, com um efeito fundamental para o significado geral do texto, indica a quebra dos limites impostos para essa mesma mulher, através de seus pensamentos, o que se confirma logo adiante.
Essa contenção da linguagem se verifica ainda no uso da conjunção aditiva para reduzir o discurso, somando o que pode ficar junto ou o que se opõe ou não se coaduna, como o abstrato e o concreto, obtendo, desse modo, no menos, o máximo: “Corada sem e com vergonha”; “Sem sombra de susto pensa as coisas proibidas e as de todas as horas no mesmo espaço da cabeça.”; “Sua compostura e seu desatino se casam no mesmo barro e na mesma água.”
Nesse aspecto, é importante se observar, ainda, os dois movimentos estruturais: a descrição e a narração. A primeira seria quase predominante no texto, se não valesse pela própria narração ou fosse por ela invadida, ocasionalmente: a personagem parece parada, estática, embora seja revelada sua dinâmica interior: “Corada sem e com vergonha. Um pouco de tudo. Pescoço de gargalo de moringa. Levezinha para cima. Para baixo, pesa.”; “MORINGA NO AR PARADO NO MEIO DA SALA AO MEIO-DIA. Rútila. Morena.”; “Espanto pela suavidade da curva.”; “Tudo o que se arredonda e desmancha lá está posto junto.”
Pode-se concluir que faz parte da mesma intenção produtiva do texto a colocação em maiúsculas de dois trechos, um descritivo e outro narrativo, os quais parecem resumi-lo.
No aspecto da linguagem, ainda, é a metáfora da moringa – desde o título, já se vê – que domina o texto, e que anula o burlesco ao convocar a imaginação a criar uma figura atraente de mulher pelo arredondado, pelo leve em cima e pesada embaixo e que continua a apostar no erótico da ação interior, como se conclui em “pensa as coisas proibidas” e “escorrega nuinha feito uma cobra d’água.”.
Com o concurso da idéia de água acaba-se de compor o ambiente de lascívia em que se insere a imagem da moça: “Com muito gluglus assomando. Barulhinho de água encanta o mais santo.”; “Tudo o que se arredonda e desmancha lá está posto junto.”; “Paredes porejando.” Mais do que o encontro com uma metáfora criativa, percebe-se que a moça é, essencialmente, a moringa e seu conteúdo: “Sua compostura e seu desatino se casam no mesmo barro e na mesma água.”
Mas tal desatino, descrito inicialmente em seu interior, ultrapassa as paredes da compostura: “Da porta já dá na vista.”.
E é o primeiro momento real de narração, a madrinha alardeando seu testemunho, que nos faz retornar, então, ao contexto social da mulher do interior, na segunda década do século XX: o controle do comportamento, da sexualidade e até do pensamento.

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