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domingo, 9 de setembro de 2012

Mulheres de mantilha: resolução e ação em "Memórias de um sargento de milícias".

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais - RJ)

Em artigo anterior, falei sobre as personagens femininas de Machado de Assis. Ali, salientei o fato de que essas têm as mesmas ambições e desejo de glória das personagens masculinas, segundo a visão crítica do escritor sobre a humanidade, tolida sua ação efetiva, nesse sentido, apenas por sua condição social, afinal vivem no século XIX. 
Hoje vou analisar, ainda que superficialmente, as personagens femininas de Manuel Antônio de Almeida, em  Memórias de um sargento de milícias (daqui para a frente nomeado como MSM). É bom lembrar que tal escritor foi um dos principais responsáveis pelo encaminhamento de Machado na carreira literária. Identifico, no protetor – a ironia, a visão pouco otimista da sociedade, a tendência ao realismo, o descortinamento metalinguístico da enunciação –, alguns traços que fizeram a glória do escritor protegido.  Seu romance foi dado ao público em folhetim – esse processo era comum na época – e anonimamente – de 1852 a 1853 –, publicado em livro em 1854, ainda sob pseudônimo, só aparecendo seu nome, finalmente, em publicação póstuma em 1863.
Começa-se por ressaltar a reflexão que o presente artigo fará: as personagens femininas do escritor de MSM terão um comportamento muito mais ousado e ativo do que as de Machado. E esse dado, à primeira vista, parece sui generis, visto que o romance de Manuel A. Almeida antecede a produção ficcional realista do outro escritor em quase vinte anos e tem como enfoque temporal o “tempo de el rei” D. João VI, ou seja, início do século XIX.
Mas há um aspecto extremamente relevante que separa os dois e pode justificar as atitudes de tais personagens estudadas: a diferença na condição social das mulheres ficcionais de um e de outro. Se em Machado, esses seres literários são, quase em sua maioria, mulheres de alta burguesia, sustentadas por seus maridos e que têm de manter essa situação como condição sociocultural inegociável, as personagens femininas de Almeida, inseridas no enredo que enfoca o povo, são mulheres da mais baixa condição, representantes-tipo dessa camada, que lutam, portanto, por sua sobrevivência. Deve-se atentar para o fato de que, até na vida real, as mulheres de tais estratos sociais já trabalhavam, desde sempre, fora de suas casas em busca de seu próprio sustento, como lavadeiras, domésticas etc. Salta aos olhos a importância que as mulheres têm, no romance, como responsáveis pelo encaminhamento e como base do enredo:

Foi ter com a comadre, a quem já conhecia, e a encarregou de o avisar apenas sentisse que a Maria sofria qualquer necessidade. (p.43*)

Eis aqui porque o Leonardo [pai] se dirigiu no seu segundo apuro ao velho tenente-coronel por intermédio da comadre, e porque  este prometeu empenhar-se por ele, o que com efeito tratou e cumprir. (p.43)


Uma das principais é a “comadre”, a parteira – atente-se aí para sua atividade profissional –, que, tendo feito o parto da personagem título, o Leonardo, e o batizado posteriormente, que sempre é chamada para intervir e efetivamente sai para resolver os problemas em favor de seus protegidos. E essa interferência não é ocasional. É marcante.

… mandou por um colega chamar a comadre, e a encarregou da missão de ir ter com ele, missão que ela aceitou de bom grado, e que desempenhou, segundo vimos, satisfatoriamente. (p. 35)

O compadre começou a banzar sobre o caso, e um dia veio-lhe a ideia: era preciso pôr a comadre ao corrente do que se passava, e interessá-la no negócio; ela era bem capaz, se quisesse, de arcar com José Manuel, e pô-lo fora de combate... (p. 97)


Todas essas mulheres literárias têm personalidade forte, de resultados indiscutíveis, sendo, muitas vezes, temidas até pelos próprios elementos masculinos. Observemo-las em ação:

Chegou o dia de batizar-se o rapaz: foi madrinha a parteira; sobre o padrinho houve dúvidas: o Leonardo [pai do outro] queria que fosse o Sr. Juiz; porém teve de ceder a instâncias da Maria e da comadre, que queriam que fosse o barbeiro de defronte, que afinal foi adotado. (p. 7)

A Maria [mãe do Leonardo], como se já esperasse por aquilo, sorriu-se como envergonhada do gracejo, e deu-lhe também em ar de disfarce um tremendo beliscão nas costas da mão esquerda. Era isto uma declaração em forma, segundo os usos da terra: levaram o resto do dia de namoro cerrado... (p. 7)

A Maria recuou dois passos e pôs-se em guarda, pois também não era das que se receava por qualquer coisa.
- Tira-te lá, ó Leonardo! (p. 10)


Apenas se achou ela [a mãe da Maria] em frente do capitão (era este o posto que tinha nesse tempo o velho) foi-se chegando para ele com ar resoluto e enfurecido. O capitão recuou instintivamente um passo. (p. 41)

- Se me diz meia palavra... perco-lhe o respeito... eu nunca lhe dei confiança; e apesar de ser a senhora lá o que quer que é de meu pai... perco-lhe o respeito...
- Você sempre mostra que tem raça de saloio, disse Chiquinha empertigando-se e sem recuar um passo. (p.128)


Como era rica, D. Maria alimentava este vício largamente; as suas demandas eram o alimento da sua vida; acordada pensava nelas, dormindo sonhava com elas; raras vezes conversava em outra coisa, e apenas achava uma tangente caía logo no assunto predileto; pelo longo hábito que tinha da matéria, entendia do riscado a palmo, e não  havia procurador que a enganasse; sabia todos aqueles termos jurídicos e toda a marcha do processo de modo tal, que ninguém lhe dava nisso a palma. (p.77)

Já se vê que esta vida era trabalhosa e demandava sérios cuidados; porém a comadre  dispunha de uma grande soma de atividade: e apesar de gastar muito tempo nos deveres do ofício e na igreja, sempre lhe sobrara algum para empregar em outras coisas. Como dissemos, ela havia tomado a peito a causa dos amores de Leonardo com Luizinha, e jurara pôr José Manuel, o novo candidato, fora da chapa. (p. 111)

Era a tal vizinha uma dessas mulheres que se chamam de faca e calhau, valentona, presunçosa, e que se gabava de não ter papas na língua... (p. 47)

Vidinha, tendo a princípio trocado com os primos algumas indiretas a respeito da prisão de Leonardo [o futuro sargento de milícias], julgara conveniente deixar-se de panos quentes, e fora direto a eles, como se diz, com quatro pedras na mão, atribuindo-lhes o que acabava de suceder. (p. 159)

Ninguém houve que a pudesse desviar do seu propósito: ela foi tomando a mantilha e dispondo-se a sair; rogos, choros, nada a pôde conter. (p.170)

Por mais arrogante que fosse a voz do toma-largura, e por mais ameaçadora que fosse a sua figura quase hercúlea, Vidinha não recuou um passo, não desfez uma ruga da testa, antes pareceu mostrar que a sua presença ali favorecia suas intenções; tanto que dirigindo-se a ele o foi logo apostrofando também pela seguinte maneira:
- É Vm. um homem que eu não sei para que traz barbas nessa cara... (p.173)


Outro aspecto que deve ser levantado, mas que ainda assim me parece ser outra face dessa mesma moeda, qual seja o sentimento de decisão e independência dessas mulheres do povo retratadas no romance, é a liberdade que algumas delas têm em relação ao amor, ignorando os ditames morais e sociais da época. Vê-se isso desde a atuação da Maria, mãe do segundo Leonardo, personagem que justificará o título do romance, que já desembarca do navio de onde viera de Portugal “sentindo os enjoos”, resultado “da pisadela e do beliscão” travados com o Leonardo-Pataca, o futuro pai.
Vários são os exemplos a serem destacados, os quais vão explicando a expressão da época “estar de moça”:

- Pois tu casaste?
- Não... mas que tem isso?
- Ah!... estás de moça! (p.132)

Saibam pois que a família era composta de duas irmãs, ambas viúvas, ou que pelo menos diziam sê-lo... (p.135)

Uma delas já os leitores conhecem; é Vidinha, a cantora de modinhas; era solteira como uma de suas irmãs; a última era também solteira, porém não como estas duas. (p. 135)

Pois a vida de Luizinha, depois de casada, representava com fidelidade a vida do maior número das moças que então se casavam: era por isso que as Vidinhas não eram raras... (p.192)


Vidinha era uma rapariga que tinha tanto de bonita como de movediça e leve: um soprozinho, por brando que fosse,a fazia voar, outro de igual natureza a fazia revoar, e voava e revoava na direção de quantos sopros por ela passassem; isto quer dizer, em linguagem chã e despida dos trejeitos da retórica, que ela era uma formidável namoradeira, como hoje se diz, para não dizer lambeta, como se dizia naquele tempo. (p. 146)

Quase sempre senhoras de seu próprio destino – e muitas vezes do destino alheio, como se viu em inúmeros exemplos transcritos –, essa marca de decisão vem simbolizada na ação de “vestir a mantilha”, vestimenta retratada no texto almediano como de extremo mau gosto, e que acompanha a comadre em todas as suas peripécias decisórias.

A mulher de mantilha é nossa conhecida, porque nem mais nem menos é a comadre; e o negócio que aí a levou também nos interessa, pois que se trata da soltura do pobre Leonardo. (p.34)

D. Maria aprontou-se, meteu-se na sua cadeirinha; a comadre tomou a mantilha, e partiram para a Prainha. (p.196)

Maria-Regalada vestiu-se à pressa, tomou a sua mantilha, e ao lado da cadeirinha em que ia D. Maria partiram para a casa do major. (p.197)


Para finalizar, um exemplo emblemático desse  ato, que, mais do que os outros citados anteriormente, deixa claro o quanto essa peça do vestuário feminino de então revestia de autoridade aquela que a portava:

… Vidinha parou um instante, concentrou-se, meditou, e depois, como tomando uma grande resolução:
- Minha mãe, disse dirigindo-se a uma das velhas, quero a sua mantilha...
- Filha de Deus, acudiu a velha, que desatino é esse? onde é que ides agora de mantilha?...
- Eu cá sei onde vou... quero a sua mantilha... tenho dito... quero a sua mantilha... (p.170)


Recomendo a leitura do livro, que, sendo de uma atualidade a toda a prova em seu sentido crítico dos costumes, proporciona a quem lê momentos de extrema hilaridade e de boas gargalhadas.

* A edição aqui usada é a edição crítica de Cecília de Lara, de 1978. 


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