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quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

A perfeita arte de amar: uma lição de Manuel Bandeira e Marina Colasanti

Eliane F.C.Lima
 
Até que a palavra fosse possível

Marina Colasanti

Brigavam, se digladiavam, sofriam. E ainda assim se queriam. Razão pela qual decidiram viver em separação de corpos.
Da estrutura aparentemente compacta de carne, ossos, músculos trancados na elasticidade da pele, separaram um a um os sentimentos, embora alguns, entretecidos nas fibras como invisíveis ligaduras daquele palpitar, parecessem indispensáveis para a sustentação do todo. Mesmo com esses, com firmeza de bisturi foram retirados, amputando-se também aquelas partes do sentir mais entranhadas, cujos limites já não mais se distinguiam, afogados em sangue.
Por fim, livres de tudo o que lhes provocava atrito e desencontro, deitaram-se lavados sobre a cama, brancos corpos possuindo-se sem nenhuma pergunta. E sem qualquer perigo de resposta.
(Contos de amor rasgados. Rio de Janeiro: Rocco, 1986)


Quando li o texto acima, imediatamente me veio à memória um poema de Manuel Bandeira, que até parece um texto interpretativo do conto, o que seria impossível, por ter sido publicado antes, em 1948, na coletânea Belo, belo. Mas há, é inegável, um diálogo que se estabelece entre os dois textos. Pelo menos na cabeça de quem lê e conhece as duas obras. Vamos ao texto de Bandeira.

Arte de amar

Manuel Bandeira

Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua    [alma,
A alma é que estraga o amor.
Só em Deus ela pode encontrar satisfação.
Não noutra alma.
Só em Deus – ou fora do mundo.

As almas são incomunicáveis.

Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.
Porque os corpos se entendem, mas as almas não.
(Estrela da vida inteira. 20 ed.Rio de Janeiro/São Paulo: Record, [s.d.])

Constata-se no texto a presença do dualismo corpo (matéria) X alma, que, vindo desde os filósofos gregos, se vê fortalecido por Descarte. E sempre, nessa disputa filosófica e ideológica, a alma tem levado a melhor, assinalada como verdadeira marca da superioridade do ser humano, sendo o corpo encarado como reles depósito aprisionador da primeira.
Mas, se o eu poético do texto de Bandeira recorre a tal dicotomia, percebe-se, logo, que sua posição vai por caminho diferente: se não  discute a hierarquia entre os dois, enfatiza o sentido pouco funcional da alma, como se pode salientar no verso “Só em Deus ela pode encontrar satisfação”. A realização plena da alma está, pois, “Só em Deus – ou fora do mundo”, ou seja, no mundo, onde a vida realmente se realiza, a alma não tem nenhuma praticidade.
E quando se trata de sentimentos mais que humanos, o eu lírico é radical: “A alma é que estraga o amor.”  É com este mesmo mote que podemos voltar ao texto de Marina Colasanti.
Se, no conto, não encontramos nenhuma alusão explícita à alma, vários elementos textuais nos ajudam a surpreender o elemento metafísico adivinhado em vários de seus atributos: as personagens protagonistas sofriam, tinham sentimentos, os quais provocavam atritos e desencontros entre elas e perguntas – inquietantes? –, que recebiam respostas perigosas. Depois que, através de um processo detalhado de amputação daquelas “partes do sentir mais entranhadas”, livraram-se de sua alma, “lavados”, deitaram-se sobre a cama e seus finalmente “brancos corpos” possuíram-se. Resume-se no apenas corpos se entendendo a “Arte de amar”.

Pareceu-me válida ainda a postagem de outro poema bastante conhecido do mesmo Bandeira, pela ligação com o tema aqui investigado. Neste, o poeta subverte inteiramente e sem disfarce a presunção cartesiana. Vale a pena conferir.

Momento num café

Manuel Bandeira

Quando o enterro passou
Os homens que se achavam no café
Tiraram o chapéu maquinalmente
Saudavam o morto distraídos
Estavam todos voltados para a vida
Absortos na vida
Confiantes na vida.

Um no entanto se descobriu num gesto largo e demorado
Olhando o esquife longamente
Este sabia que a vida é uma agitação feroz e sem finalidade
Que a vida é traição
E saudava a matéria que passava
Liberta para sempre da alma extinta
(Mesma obra)

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sábado, 11 de outubro de 2014

Parte III - Brasileira, negra, pobre... e humana: o retrato de uma escritora em sua obra.

Eliane F.C.Lima 
(Registrado no Escritório de Direitos Autorais)

A última parte do estudo de Quarto de despejo seleciona alguns aspectos inportantes do texto da escritora, os quais, embora sejam sempre apenas tangenciais, apontam para um sentimento já de reflexão sobre as injustiças sociais sedimentadas e que a circundavam como forças invencíveis.
Uma delas é sua condição de negra.

… Sentei ao sol para escrever. A filha da Silvia, uma menina de seis anos, passava e dizia:
- Está escrevendo, negra fidida! (p. 20)

Quiz saber o que eu escrevia. Eu disse ser o meu diario.
- Nunca vi uma preta gostar tanto de livro como você. (p. 20)


Embora essa relação de etnia negra x branca seja tratada algumas vezes com ingenuidade – hoje os grupos negros organizados têm uma visão mais ostensiva –, sua condição de população subjugada não é esquecida. Hoje em dia, com o advento da Internet e as posições francamente racistas que têm se evidenciado e que afloram pelos motivos menos palpáveis, percebe-se que pouca coisa mudou.

Conversei com uma senhora que cria uma menina de cor. É tão boa para a menina... Lhe compra vestidos de alto preço. Eu disse:
- Antigamente eram os pretos que criava os brancos. Hoje são os brancos que criam os pretos. (p. 19)

… Nas prisões os negros eram os bodes espiatorios [sic]. Mas os brancos agora são mais cultos. E não nos trata com despreso. Que Deus ilumine os brancos para que os pretos sejam feliz. (p. 23)

Eu estava pagando o sapateiro e conversando com um preto que estava lendo um jornal. Ele estava revoltado com um guarda civil que espancou um preto e amarrou numa arvore. O guarda civil é branco. E há certos brancos que transforma preto em bode expiatorio. Quem sabe se guarda civil ignora que já foi extinta a escravidão e ainda estamos no regime da chibata? (p. 92)

Em certas passagens, percebe-se que tem dentro de si, ainda que negra, a visão equivocada que os brancos têm de sua etnia e que é reproduzida em seu discurso:

A Rosalina dizia que ela é sosinha e sustenta 3 filhos. É que ela não sabe que o seu filho Celso anda dizendo que quer fugir de casa porque tem nojo dela. Acha a mãe muito barbara e avarenta. Ele diz que queria ser meu filho. Então eu lhe digo:
- Se você fosse meu filho, você era preto. E sendo filho de Rosalina você é branco. (p. 88)  

A Florenciana é preta. Mas é muito diferente dos pretos por ser muito ambiociosa. (p. 64)


Outra questão que perpassa todo o texto é a firme posição que mantém como mulher. Solteira  e sozinha, cria seus três filhos, lutando por eles mesmo dentro da pobreza extrema em que vive, sem abrir mão de sua independência. Apesar de as questões feministas não terem sido formuladas, naquela época,  em certos momentos, seu discurso atinge argumentos inacreditáveis de lucidez, em tal aspecto.           

Elas alude que eu não sou casada. Mas eu sou mais feliz do que elas.
…............................................................................................................
Os meus filhos não são sustentados com pão de igreja. Eu enfrento qualquer espécie de trabalho para mantê-los. E elas, tem que mendigar e ainda apanhar. Parece tambor. A noite enquanto elas pede socorro eu tranquilamente no meu barraco ouço valsas vienenses. Enquanto os esposos quebra as tabuas do barracão eu e meus filhos dormimos socegados. Não invejo as  mulheres casadas da favela que levam vida de escravas indianas. (p. 11)

Há as mulheres que os esposos adoece e elas no penado da enfermidade mantem o lar. Os esposos quando vê as esposas manter o lar, não saram nunca mais. (p. 15)


… As mulheres que eu vejo passar vão nas igrejas buscar pães para os filhos. Que o Frei Luiz lhes dá, enquanto os esposos permanecem debaixo das cobertas. Uns porque não encontram emprego. Outros porque estão doentes. Outros porque embriagam-se. (p. 29)

O senhor Manuel aparaceu dizendo que quer casar-se comigo. Mas eu não quero porque já estou na maturidade. E depois, um homem não há de gostar de uma mulher que não pode passar sem ler. E que levanta para escrever. E que deita com lapis e papel debaixo do travesseiro. Por isso é que eu prefiro viver só para o meu ideal. (p. 41)


Eu pensava nas roupas por lavar. Na Vera. E se a doença fosse piorar? Eu não posso contar com o pai dela. Ele não conhece a Vera. E nem a Vera conhece ele.
Tudo na minha vida é fantastico. Pai não conhece filho, filho não conhece pai. (p. 55)


Tem hora que eu revolto comigo por ter iludido com os homens e arranjado estes filhos. (p. 74)

O pai da Vera é rico, podia ajudar-me um pouco. Ele pede para eu não divulgar-lhe o nome no Diario, não divulgo. Podia reconhecer o meu silêncio. (p. 149)


Embora não tenha plena consciência de que quase todos os chamados  “comportamentos” femininos e masculinos são uma construção cultural e não um dado inato – feministas, hoje em dia, já argumentam até que aspectos sexuais, como a heterossexualidade, são impostos a todo ser humano que nasce -, pode-se surpreender que o discurso da escritora vislumbra a solidificação social e de gênero embutido em manuais canônicos, como os livros de História.  


 … Quando eu era menina o meu sonho era ser homem para defender o Brasil porque eu lia a Historia do Brasil e ficava sabendo que existia guerra. Só lia os nomes masculinos como defensor da patria. Então eu dizia para a minha mãe:
- Porque a senhora não faz eu virar homem? (p. 44-45)


Dentre muitos outros dados que podem ser examinados no texto de Carolina de Jesus, ressalte-se seu senso de reflexão crítica sobre a natureza da ação da religião juntos às comunidades desfavorecidas ou o inócuo e adulterado papel do poder instituído que deveria servir social e efetivamente a essas mesmas comunidades e que não o faz.

Fico pensando na vida atribulada e pensando nas palavras do Frei Luiz que nos diz para sermos humildes. Penso: se o Frei Luiz fosse casado e tivesse filhos e ganhasse salario minimo, aí eu queria ver se o Frei Luiz era humilde. Diz que Deus dá valor só aos que sofrem com resignação. Se o Frei visse os seus filhos comendo generos deteriorados, comidos pelos corvos e ratos, havia de revoltar-se, porque a revolta surge das agruras. (p. 72)

 
Percebi que no Juizado as crianças degrada a moral. Os Juizes não tem capacidade para formar o carater das crianças. O que é que lhes falta? interesse pelos infelizes ou verba do Estado? (p. 75)

… Em 1952 eu procurava ingressar na Vera Cruz e fui no Juizado falar com o Dr. Nascimento se havia possibilidade de internar os meus filhos. Ele disse-me que se os meus filhos fossem para o Abrigo que ia sair ladrões.
Fiquei horrorisada ouvindo um Juiz dizer isto. (p. 75)

Quando o carro capela vem na favela surge vários debates sobre a religião. As mulheres dizia que o padre disse-lhes que podem ter filhos e quando precisar de pão podem ir buscar na igreja.
Para o senhor vigario, os filhos de pobres criam só com pão. Não vestem e não calçam. (p. 120)

… De manhã teve missa. O padre disse para nós não beber, porque o homem que bebe não sabe o que faz. Que devemos beber limonada e agua. Varias pessoas veio assistir a missa. Ele disse que sente prazer de estar entre nós.
Mas se o padre residisse entre nós, havia de expressar de outra forma. (p. 121)


Por fim, parece interessante serem citadas algumas passagens que têm verdadeiro valor de axiomas e que servem para fechar o interessante texto da escritora. Recomendo a leitura do livro, que se tornou um verdadeiro documento testemunhal de uma época brasileira – final dos anos 1950 e princípio dos 1960 -, época que, embora pareça pretérita, ainda faz eco nos acontecimentos de agora.

… O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora. (p. 23)

Talvez ela não mais tem ilusão. Entregou sua vida aos cuidados da vida. (p.38)

Cheguei a conclusão que quem não tem de ir pro céu, não adianta olhar para cima. (p.34)

Pretere os filhos e prefere os homens.
O homem entra pela porta. O filho é raiz do coração. (p.40)

… a revolta surge das agruras. ( p.72)


Enfim, o mundo é como o branco quer. Eu não sou branca, não tenho nada com estas desorganizações. (p. 59)

 
Recomendo visita a meus blogues Poema Vivo (link) e Conto-gotas (link). Embora com postagens antigas, não estão esquecidos e há muito texto lá para ser lido.

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Carolina Maria de Jesus: brasileira, negra, pobre... e humana: o retrato de uma escritora em sua obra – parte II

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais)

Nossa segunda postagem sobre Quarto de despejo pretende refletir sobre o olhar que Carolina Maria de Jesus tem sobre o ambiente que a cerca e a relação que parece manter com esse ambiente.
Essa reflexão, a princípio, pode ser comparada com o olhar que hoje em dia tem grande parte dos moradores dessas favelas – hoje denominadas eufemisticamente de “comunidades” – sobre si mesma. Nos depoimentos a que se assiste na grande mídia pode-se ver que há já um sentimento, se não de orgulho, mas de apaziguamento com o lugar onde vive toda essa população. Por coincidência, acaba de sair uma pesquisa que mostra exatamente isso: a maioria das pessoas desses locais não deseja se mudar dali. Como exemplo concreto, pode-se, ainda, citar um rap que foi lançado há poucos anos atrás – 1995 – e que fez muito sucesso. Desde o título, já se antevê que a relação desse morador com seu entorno é de pertencimento, de aceitação, de sentimento de acolhimento ao local onde nasceu e vive. A letra indica a necessidade de melhora, sim, mas nunca de rejeição ou estranhamento a esse lugar de pobreza, como se comprova no refrão:

Rap da Felicidade

Compositores: Cidinho e Doca (nota 1)

Eu só quero é ser feliz,
Andar tranqüilamente,
Na favela onde eu nasci.
É...
E poder me orgulhar
E ter a consciência
Que o pobre tem seu lugar

Ver a letra toda no link.

Inicialmente deve-se chamar a atenção, é verdade, para o fato de que as favelas mudaram: já não se encontram praticamente “barracos” de madeira, como à época de lançamento do livro, e quase todas as moradias são de “alvenaria”, símbolo maior do sonho dos moradores das favelas de então, como se vê nas palavras de Carolina:


(…) O José Carlos disse:
- Não fique triste mamãe! Nossa Senhora Aparecida há de ter dó da senhora. Quando eu crescer eu compro uma casa de tijolos para a senhora. (p. 11-12)

… Eu estou contente com os meus filhos alfabetizados. Compreendem tudo. O José Carlos disse-me que vai ser um homem distinto e que eu vou tratá-lo de Seu José.
Já tem pretensões: quer residir em alvenaria. (p. 119).

Outra reflexão que pode ser feita, é que a escritora, embora sempre muito pobre, não teve, entretanto sua origem numa favela. E assim o texto do livro marca uma avaliação inteiramente contrária que a autora tem sobre o que a letra da canção chama de “seu lugar”:


…Estou residindo na favela. Mas se Deus me ajudar hei de mudar daqui. Espero que os políticos estingue as favelas. (p.15)

É que eu estou escrevendo um livro, para vendê-lo. Viso com esse dinheiro comprar um terreno para eu sair da favela. (p. 21)

…Lavei o assoalho porque estou esperando a visita de um futuro deputado e ele quer que eu faça uns discursos para ele. Ele disse que pretende conhecer a favela, que se for eleito há de abolir as favelas. (p.27)

O dia que eu mudar da favela vou acender uma vela para São Sebastião. (p.76)

(…) Se eu fosse homem não deixava meus filhos residir nessa espelunca. Se Deus auxiliar-me hei de sair daqui, e não hei de olhar para trás. (p.159)

Outro dado, de não pouca importância e que deve ser levado em consideração, é que na época da publicação do livro começa a se sedimentar a oposição da cidade contra as favelas, ainda incipientes e em muito menor número, acrescentando-se o fato bastante relevante de que a visão das classes mais favorecidas economicamente sempre é a visão dominante, a tal ponto, que as minorias, como os moradores de favelas, como os negros em relação aos brancos, como as mulheres em relação à sociedade patriarcal, acabam se enxergando como o “outro” em relação a um “eu” dominador. Então o morar em uma casa de alvenaria, mais do que ser o desejo de alcance de um conforto, passa a ser traço valorativo de inclusão no mundo reconhecido. Quarto de despejo traduz, aos poucos, esse discurso dominante:

…Os visinhos ricos de alvenaria dizem que nós somos protegidos pelos politicos. É engano. Os politicos só aparece aqui no quarto de despejo, nas epocas eleitorais. (p. 37)

…Os visinhos de alvenaria olha os favelados com repugnancia. Percebo seus olhares de odio porque eles não quer a favela aqui. Que a favela deturpou o bairro. Que tem nojo da pobreza. Esquecem eles que na morte todos ficam pobres. (p.46)

Uma tarde de terça-feira. A sogra de Dona Ilda estava sentada e disse:
- Podia dar uma enchente e arrazar a favela e matar estes pobres cacetes. Tem hora que eu revolto contra Deus por ter posto gente pobre no mundo, que só serve para amolar os outros. (p.47)

Quando alguém nos insulta é só falar que é da favela e pronto. Nos deixa em paz. Percebi que nós da favela somos temido. (p.70)

E se o discurso da cidade vem bastante claro nas páginas do diário, indiretamente ele acaba se realizando também na avaliação testemunhal dessa moradora da favela, que, assim, se enxerga como o “outro” em relação à cidade, apartada de seu direito de moradora de São Paulo.

...Eu classifico São Paulo assim: o Palacio, é a sala de visita. A Prefeitura é a sala de jantar e a cidade é o jardim. E a favela é o quintal onde jogam os lixos.  (p.25)

Devo incluir-me, porque eu tambem sou favelada. Sou rebotalho. Estou no quarto de despejo, e o que está no quarto de despejo ou queima-se ou joga-se no lixo. (p.29)

Oh! São Paulo rainha que ostenta vaidosa a tua coroa de ouro que são os arranha-céus. Que veste viludo e seda e calça meias de algodão que é a favela. (p. 33)

Aqui nesta favela a gente vê coisa de arrepiar os cabelos. A favela é uma cidade esquisita e o prefeito daqui é o Diabo. (p.77)

Percebo que todas as pessoas que residem na favela, não aprecia o lugar. (p.77)

Favela, sucursal do Inferno, ou o proprio Inferno. (p. 139)

Percebe-se que a autora constrói seu discurso de um lugar antagônico à favela.  E esse lugar torna-a uma estranha em relação a seus pares. Percebe-se que essa avaliação hostil em relação ao entorno e seus habitantes é devolvido pelos demais da mesma forma; seus vizinhos, conscientes do sentimento que despertam, pela atuação sempre crítica de Carolina, sua tentativa de influir nas ações que desaprova, têm por ela, muitas vezes, um profundo senso de rejeição.


Aqui, todas impricam comigo. Dizem que falo muito bem. Que sei atrair os homens. (…) Quando fico nervosa não gosto de discutir. Prefiro escrever. Todos os dias eu escrevo. Sento no quintal e escrevo. (p. 17)
 
(…) Só interfiro-me nas brigas onde prevejo um crime. Não sei a origem desta antipatia por mim. Com os homens e as mulheres eu tenho um olhar duro e frio. O meu sorriso, as minhas palavras ternas e suaves, eu reservo para as crianças. (p.29-30)

Não tenho força física, mas as minhas palavras ferem mais do que espada. E as feridas são incicatrisaveis. Ele deixou de aborrecer-me porque eu chamei a radio patrulha para ele, e ele ficou 4 horas detido. Quando ele saiu andou dizendo que ia matar-me. (p. 39-40)

Se eu gastasse todo o dinheiro que já gastei telefonando para a Radio Patrulha, eu podia comprar um quilo de carne! (p.95)

Mas até ele anda atrás da I. e da C. Apareceu tantos jovens de 15 e 16 anos aqui na favela, que vou dar parte as autoridades. (p. 116)

(…) Telefonei para as Folhas para mandar uns reporteres na favela para expulsar uns ciganos que estão acampados aqui. Eles jogam excrementos na rua. As pessoas que reside perto dos ciganos estão queixando que eles falam a noite toda. E não deixam ninguem dormir. Eles são violentos e os favelados tem medo deles. Mas eu já preveni que comigo a sopa é mais grossa. (p.118) 

…Eu percebo que se este Diário for publicado vai maguar muita gente. Tem pessoa que quando me vê passar saem da janela ou fecham as portas. Estes gestos não me ofendem. (p. 66)

Dada a riqueza de faces que o testemunho de Carolina Maria de Jesus apresenta se fará necessária uma terceira postagem posteriormente.

Nota 1: algumas informações sobre os compositores em link.

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sexta-feira, 4 de julho de 2014

Carolina Maria de Jesus: brasileira, negra, pobre... e humana. O retrato de uma escritora em sua obra – parte I

Da esquerda para a direita: Carolina Maria de Jesus, Audálio Dantas e Ruth de Souza na Favela do Canindé / Divulgação/Acervo IMS. (Ver nota 1 abaixo.)


Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais)
 
Como o prometido, vamos conversar sobre a escritora Carolina Maria de Jesus (1914-1977), que nasceu em Sacramento, Minas Gerais, numa comunidade rural, onde sua mãe era meeira. Em março, completou-se cem anos de seu nascimento. Estudou durante dois anos em uma escola paga pela mulher de um fazendeiro, mas não teve contato com seu pai, porque ele era um homem casado.
Como sua mãe morresse em 1937, resolveu emigrar para São Paulo e passou a residir na Favela do Canindé, hoje inexistente, onde construiu um precário barraco.
Teve três filhos de pais diferentes, mas se negou a casar e a ficar dependente de qualquer homem. Criou os filhos, catando papel e tudo mais que encontrasse para vender.
Apesar do pouco estudo, Carolina revelou logo sua tendência: era inteligente, tinha um apurado senso crítico, lia os livros que encontrava no lixo e passou a escrever um diário – trechos de 1955, 1958, 1959 e fim em 1960 –, que foi o material que deu ensejo à publicação do livro Quarto de despejo, metáfora criada por ela para referir-se à favela em relação à metrópole, nome escolhido pelo jornalista Audálio Dantas, que casualmente a conheceu e conseguiu publicar seu livro em 1960. Alguns acusam o jornalista de ter agido sobre a obra, embora ele alegasse que apenas suprimira trechos repetitivos.
A quem se interessar, há muito material sobre a escritora na Internet, inclusive no Youtube, mas remeto a um vídeo naquele site, denominado "Diário de Bitita", mesmo nome de seu livro póstumo, onde se pode ver a filha Vera Eunice, já adulta – personagem presente na obra –, o que ilustraria o estudo sobre a escritora: link
Além do famoso diário, Carolina M. de Jesus também escreveu Pedaços de fome (1963), Provérbios (1963) e o já citado Diário de Bitita (1982), que não conseguiram o sucesso do primeiro.
Quarto de despejo, além de todas as características que serão analisadas a seguir, é o testemunho de seres sobreviventes, que lutam para não morrer de fome, embora vivam dentro de uma cidade importante como São Paulo. Sob esse aspecto, então, o assunto perde sua feição de questão particular –  população brasileira, pobre e quase toda negra –, e passa a ser uma narrativa  de qualquer ser submetido a condições subumanas de vida, suas reações, seus mecanismos de sobrevivência, ou seja, é uma reflexão sobre a condição humana diante da adversidade.
Mas há outras questões a serem levantadas. Uma delas é o aspecto documental da história brasileira, que se reflete nas vidas individuais de cada elemento do povo. Nas páginas do livro, a pessoa leitora encontra o mesmo enfoque que a coleção História da vida privada defende: através da escrita testemunhal de uma mulher pertencente à fatia mais pobre da população, alijada das decisões, traça-se um perfil e uma perspectiva radicalmente opostos aos pontos de vista elitistas que tradicionalmente marcam os momentos históricos do país e são a eles diretamente ligados. Assim, os mesmos fatos que frequentam as análises históricas dos intelectuais, em seus aspectos sociais, econômicos e políticos, são desnudados através de um viés tanto mais inocente, quanto mais cruel da realidade da época.
Quarto de despejo aponta como a história não é algo abstrato, porém, como apontou Marx, extremamente concreto em seus efeitos, principalmente sobre as camadas mais desfavorecidas como a que pertencia Carolina de Jesus. Transcrevo os trechos sem modificações gráficas, a não ser a atualização de alguns acentos.


[…] O tenente interessou-se pela educação dos meus filhos. Disse-me que a favela é um ambiente propenso, que as pessoas tem mais possibilidades de delinquir do que tornar-se util a patria e ao pais. Pensei: Se ele sabe disto, porque não faz um relatório e envia para os politicos? O Senhor Janio Quadros, o Kubstchek e o Dr. Adhemar de Barros? Agora falar para mim, que sou uma pobre lixeira. Não posso resolver nem as minhas dificuldades.
… O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora. (p. 22-23)


… Chegou um caminhão aqui na favela. O motorista e o seu ajudante jogam umas latas. É linguiça enlatada. Penso: É assim que fazem esses comerciantes insaciáveis. Ficam esperando os preços subir na ganancia de ganhar mais. E quando apodrece jogam fora para os corvos e os infelizes favelados. (p. 26)

… Nas ruas e casas comerciais já se vê as faixas indicando os nomes dos futuros deputados. Alguns nomes já são conhecidos. São reincidentes que já foram preteridos nas urnas. Mas o povo não está interessado nas eleições, que é o cavalo de troia que aparece de quatro em quatro anos. (p. 35 - Ver nota 2 abaixo.)

… Mas eu já observei os nossos políticos. Para observá-los fui na Assembleia. A  sucursal do Purgatorio, porque a matriz é a sede do Serviço Social, no palacio do Governo. Foi lá que eu vi ranger de dentes. Vi os pobres sair chorando. E as lagrimas dos pobres comove os poetas. Não comove os poetas de salão. Mas os poetas do lixo, os idealistas das favelas, um expectador que assiste e observa as trajedias que os politicos representam em relação ao povo. (p. 44)

… Os preços aumentam igual as ondas do mar. Cada qual mais forte. Quem luta com as ondas? Só os tubarões. Mas o tubarão mais feroz é o racional. É o terrestre. É o atacadista. (p.50)

Que dilema triste para quem presencia. As pobres querendo ganhar. E o rico não queria dar. Ele dá só os pedaços de bolacha. E elas saem contentes como se fossem a Rainha Elizabethe da Inglaterra quando recebeu os treze milhões em joias que o presidente Kubstchek lhe enviou como presente de aniversario. (p.52 – Ver nota 3 abaixo.)

[…] Encontrei o Sansão. O carteiro. Ele ainda não cortou os cabelos. Ele estava com os olhos vermelhos. Pensei: será que ele chorou? Ou está com vontade de fumar ou está com fome. Coisas tão comuns aqui no Brasil. Fitei o seu uniforme descorado. O senhor Kubstchek que aprecia pompas devia dar outros uniformes para os carteiros. (p. 66)

[…] Todos falavam. A conversa não me interessava, mas eu fiquei. Falavam nas brigas. No jogo de foot-bol na Suissa. E na pretenção do homem ir na lua. Uns diziam que o homem vai. Outros que não vai. E eu quando ouvi o vai não vai, já fiquei pensando numa briga, porque aqui na favela tudo inicia bem e termina com brigas. (p. 65)

Parei para conversar com a Dona Anita. Ela está preocupada com as notícias de guerra. Que a guerra é ingrata para os jovens. Que é pungente a condição dos pracinhas. Que herois são os jogadores de fut-bol. Os pracinhas são venerados pelas mulheres. É que os pracinhas são nossos filhos. (p.80)  


O último trecho transcrito, embora provavelmente não tenha sido essa a intenção da escritora, contém uma ironia profunda e rascante entre a realidade de todos e a realidade individual.  

Hoje amanheceu chovendo. A Vera, ontem pois dois vermes pela boca. Está com febre. Hoje não vai ter aulas, em homenagem ao Príncipe do Japão. (p.55)

Em próxima postagem, o estudo sobre essa escritora tão especial em seu papel de mulher e pobre continuará.


Nota 1: Em 1961, o livro Quarto de despejo foi adaptado para o teatro pela escritora gaúcha Edy Lima. A peça, dirigida por Amir Haddad, teve Ruth de Souza no papel de Carolina. 
Nota 2:  É surpreendente a metáfora do "cavalo de Troia" criada pela escritora: o cavalo de Troia teria sido um presente que, na verdade, continha a traição dentro dele.
Nota 3: Comentários diferentes sobre esse "presente" do ex- presidente Kubitschek podem ser vistos no link e no link.

Visite, também, os blogues POEMA VIVO (LINK) E CONTO-GOTAS (link).

sábado, 7 de junho de 2014

ATENÇÃO

       Num futuro bem próximo, devo fazer uma postagem sobre a escritora Carolina Maria de Jesus e seu conhecido livro diário Quarto de despejo. Até breve.

sábado, 22 de março de 2014

Parte III: A pseudo “alma feminina”: Senhora e o olhar do século XIX sobre a mulher.


A heroína silenciada e a evolução do herói



Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais - RJ)



A terceira parte do estudo – reenfatize-se a leveza dele – sobre Senhora, de José Alencar, como caracterização da mulher do século XIX, usará como foco a personagem romântica personificada em Aurélia Camargo, a protagonista do romance.

Em primeiro lugar, é necessário se ressaltar que tais protagonistas seguem um padrão de idealização, que, de forma geral, enquadram as mulheres de então, ficcionais ou não.

É indispensável também ser ressaltado que a palavra “idealização” não traz em si uma fixidez significativa, como aliás, a maioria dos termos: o ideal para uma época pode não ser para outra.

Assim, o ideal de mulher do século referido e compartilhado pela trama de Senhora seria um ser recatado, guardião da sacralidade do lar, consciente de seus limites, principalmente intelectuais, cujo extremismo sentimental faria dele só coração. Esses atributos comporiam um tipo romântico.

Quem lê o romance em questão imagina que Alencar faz, portanto, de sua personagem um ser ímpar por desenhá-la diferente de tais padrões: submete todos os seus pretendentes a sua vontade, é mais senhora de seu tutor do que regida por ele, traça um plano racionalizado em seus mínimos detalhes para sujeitar seu marido comprado a toda a sorte de humilhações. Em vez de uma personagem “tipo” – aquela que está submetida a um padrão comportamental, no caso, a que seguisse fielmente o projeto romântico –, Aurélia seria uma personagem “indivíduo” – aquela personagem que tem características próprias e não pode ser identificada em outras personagens. A alusão ao termo “senhora”, que inclusive, dá título ao romance, refere-se a esse aparente perfil da personagem principal:

Aurélia tomou o braço do marido, e afastou-se lentamente ao longo da alameda.
Por que me chama senhóra? perguntou ela fazendo soar o ó com a voz cheia?
Defeito de pronúncia.
Mas às outras diz senhora. Tenho notado; ainda esta noite.
Esta é, creio eu, a verdadeira pronúncia da palavra; mas nós, os brasileiros, para distinguir da fórmula cortês, a relação de império e domínio, usamos da variante que soa mais forte, e com certa vibração metálica. O súdito diz à soberana, como o servo à sua dona, senhóra. Eu talvez não reflita e confunda.
Quer isso dizer que o senhor considera-se meu escravo? – perguntou Aurélio fitando Seixas. (p. 197)

Enganar-se-á, porém, essa pessoa leitora, se não reparar em alguns detalhes bastante importantes, que podem ser inferidos dos exemplos baixo e que serão comentados a seguir e vão compondo uma personagem, que, ao final do romance, se mostra a heroína romântica, por excelência.

É verdade! Desculpe-me, Aurélia, a precipitação... Ele exige vinte contos de réis à vista, até amanhã, sem o que não aceita.
Pague-os!
.................................................................................................
Cobria-se-lhe o semblante de uma palidez mortal; e por momentos parecia que a vida tinha abandonado aquele formoso vulto, congelado em uma estátua de mármore. (p. 57)

Nesse trecho, o tutor informa à Aurélia que Seixas havia não só aceitado casar-se com ela por um dote maior, desfazendo o arranjo matrimonial e financeiro anterior que tinha com outra moça, mas exigia um adiantamento. É importante se observar o transe emocional por que passa a personagem: o que deveria ter sido recebido com alegria – o sucesso em casar-se, por fim, com o antigo amado –, indica um sentimento oposto: “uma palidez mortal”.

A personagem principal já tinha, desde o início da trama, quando não possuía ainda fortuna e entregara seu amor a Seixas em vão, fornecido pistas concretas de suas características tão caras ao estilo de época:

A sua promessa de casamento o está afligindo, Fernando; eu lha restituo. A mi basta-me o seu amor, já lho disse uma vez; desde que mo deu, não lhe pedi nada mais. (p.104)

[…] Mas Deus nos deu uma missão neste mundo, e temos de cumpri-la [disse Seixas].
A minha é amá-lo. A promessa que o aflige, o senhor pode retirá-la tão espontaneamente como a fez. Nunca lhe pedi, nem mesmo simples indulgência, para esta afeição; não lha pedirei neste momento em que ela o importuna. (p. 107)

Abandonando-a Seixas por vender-se a primeira vez, a comoção por que passa a personagem principal já aponta seu apego à idealização com que são configuradas as mulheres de então, como se evidencia na passagem adiante:

Recebeu uma carta anônima. Comunicavam-lhe que Seixas a havia abandonado por um dote de trinta contos de réis. Acabando de ler essas palavras levou a mão ao seio, para suster o coração que se lhe esvaía.
Nunca sentira dor como esta. Sofrera com resignação e indiferença, o desdém e o abandono, mas o rebaixamento do homem, a quem amava, era suplício infindo, de que só podem fazer ideia os que já sentiram apagarem-se os lumes d'alma, ficando-lhes a inanidade.
Debalde Aurélia refugiou-se nos primeiros sonhos de seu amor. A degradação de Seixas repercutia no ideal que a menina criara em sua imaginação, e imprimia-lhe o estigma. Tudo ela perdoou a seu volúvel amante, menos o tornar-se indigno de seu amor.
Que pungente colisão! Ou expelir do coração esse amor que tinha decaído, e deixar a vida para sempre erma de um afeto; ou humilhar-se adorando um ente que se aviltara, e associando-se à sua vergonha. (grifo meu. p. 108)

Não é a lacuna do amado que faz Aurélia sofrer, mas a lacuna do amor que desapareceria por aquele não corresponder a esse.

Na noite das núpcias, o marido descobre todas as motivações anteriores de sua mulher para escolhê-lo dentre outros pretendentes mais legítimos. Ao conseguir comprá-lo por um valor mais alto – Fernando aceita a proposta feita anonimamente pelo tutor de Aurélia –, retomando-o da noiva pela qual tinha sido preterida e que lhe oferecera também um dote, a protagonista irá se decepcionar pela segunda vez, sendo esse um golpe irrecuperável na idealização do amor. Na verdade, o fato revelado por ela é o verdadeiro mote para o desenvolvimento da narrativa.

Conheci que não amava-me, como eu desejava e merecia ser amada. Mas não era sua a culpa e só minha que não soube inspirar-lhe a paixão, que eu sentia. Mais tarde, o senhor retirou-me essa mesma afeição com que me consolava e transportou-a para outra, em quem não podia encontrar o que eu lhe dera, um coração virgem e cheio de paixão com que eu o adorava. Entretanto, ainda tive forças para perdoar-lhe e amá-lo.
              A moça agitou então a fronte com uma vibração altiva:
Mas o senhor não me abandou pelo amor de Adelaide e sim pelo seu dote, um mesquinho dote de trinta contos! Eis o que não tinha o direito de fazer, e que jamais lhe podia perdoar. Desprezasse-me embora, mas não descesse da altura em que o havia colocado dentro de minha alma. Eu tinha um ídolo; o senhor abateu-o de seu pedestal e atirou-o no pó. Essa degradação do homem a quem eu adorava, eis o seu crime; a sociedade não tem leis para puni-lo, mas há um remorso para ele. Não se assassina assim um coração que Deus criou para amar, incutindo-lhe a descrença e o ódio.
.................................................................................................
[…] Entretanto, ainda eu afagava uma esperança. Se ele recusa nobremente a proposta aviltante, eu irei lançar-me a seus pés. Suplicar-lhe que aceite a minha riqueza, que a dissipe se quiser; mas consinta que eu o ame. Esta última consolação o senhor a arrebatou. Que me restava? Outrora atava-se o cadáver ao homicida, para expiação da culpa; o senhor matou-me o coração; era justo que o prendesse ao despojo de sua vítima. (grifos meus. p. 120-121)

Após onze meses de vilipêndio, o marido comprado restitui o dinheiro que recebera, conseguido com seu trabalho e honestamente e, por esse modo, libera-se da palavra dada, terminando com um casamento que, podia ser, então, uma prática social, mas contrariava o idealizado casamento por amor. Nesse momento, Seixas é alçado à condição de herói romântico, situação a qual não correspondera até então. Diferentemente da personagem protagonista, que tem um comportamento sempre preso aos parâmetros da heroína literária epocal e, portanto, uma postura estática, como constatam as mesmas passagens do romance, a personagem masculina central evolui em direção ao papel que lhe cabe na estética romântica. É nessa condição que ele, finalmente, sobe a seu “pedestal”, à sua condição de ídolo e tem, portanto, um lugar no coração ressuscitado da heroína.


Pois bem, agora ajoelho-me a teus pés, Fernando, e suplico-lhe que aceites meu amor, este amor que nunca deixou de ser teu, ainda quando mais cruelmente ofendia-te. (grifo meu, p. 234)

Aquela que te humilhou, aqui a tens abatida, no mesmo lugar onde ultrajou-te, nas iras de sua paixão. Aqui a tens implorando seu perdão e feliz porque te adora, como o senhor de sua alma. (grifo meu, p. 234-235)

Duas particularidades dos trechos, nem um pouco desprezíveis, ao contrário, bastante significativas, saltam aos olhos de quem lê: primeiro a subserviência a que se entrega Aurélia – o vocábulo “abatida” pode ter o significado de “diminuído em suas forças físicas e/ou morais” –, ela sempre tão orgulhosa e altiva, ajoelhada, numa posição de inferioridade frente ao marido. Pode-se até imaginar uma ave que, acostumada a altos e grandes voos, é caçada e se faz ao chão. A imagem é forte, mas corresponde bastante ao trecho. Para mostrar-se digna do amor de Fernando, ela tem de descer à condição estabelecida para a mulher do século XIX. Se ele tem de subir em seu pedestal, como ídolo, como herói, ela tem de ser rebaixada, para corresponder a essa mesma idealização. 
Segundo – e confirmando essa primeira particularidade –, a oposição que se estabelece na troca de posições entre Aurélia e Fernando – inadequadas até então, de acordo com os preceitos do Romantismo, caros ao século. O termo que é escolhido no texto não é apenas uma coincidência: ela, que era “senhóra” (rever p. 197)), abdica de sua posição e pede ao amado que se torne “o senhor de sua alma”. Invertem-se os papéis. Mais do que uma questão amorosa, evidencia-se uma submissão prevista pela sociedade. O fecho do romance indica, finalmente, que essa era a condição “essencial” para a paz e desejava desde o princípio pela própria Aurélia: “As cortinas cerraram-se, acariciando o seio das flores, cantavam o hino misterioso do santo amor conjugal.” (p. 235)





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domingo, 9 de março de 2014

Parte II: A pseudo “alma feminina”: Senhora e o olhar do século XIX sobre a mulher.


Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais)


Antes de se iniciarem os comentários sobre certos aspectos da narrativa propriamente dita – esses dados são levantados na terceira parte –, chama-se a atenção para o fato de que, na primeira parte do estudo sobre o romance Senhora, foi citado o aproveitamentos dos costumes sociais de meados do século XIX presentes no romance. Os exemplos citados são tirados da 5.a edição da Editora Martin Claret, da “Coleção a obra-prima de cada autor”.

Mas essa parenta não passava de mãe de encomenda, para condescender com os escrúpulos da sociedade brasileira, que naquele tempo não tinha ainda admitido ainda certa emancipação feminina.” (p.17)

Riam-se todos destes ditos de Aurélia e os lançavam à conta de gracinhas de moça espirituosa; porém a maior parte das senhoras, sobretudo aquelas que tinham filhas moças, não cansavam de criticar esses modos desenvoltos, impróprios de meninas bem-educadas. (p. 19-20)

Por isso cresciam as tristezas e inquietações da boa mãe, pensar que também esta filha estaria condenada à mesquinha sorte do aleijão social, que se chama celibato. (p.45)

Vendido! – exclamou Seixas, ferido dentro d'alma.
Vendido sim: não tem outro nome. Sou rica, muito rica, sou milionária; precisava de um marido, traste indispensável às mulheres honestas. O senhor estava no mercado; comprei-o. Custou-me cem contos de réis, foi barato; não se fez valer. Eu daria o dobro, o triplo, toda a minha riqueza por este momento. (p.81)

Nessas circunstâncias, a mãe só via para a filha o natural e eficaz apoio de um marido. (p. 90)

No primeiro ensejo interrogou o moço acerca de suas intenções. Fez valer o argumento formidável da sombra que um galanteio ostensivo projeta sobre a reputação de uma menina, quando não o perfumam os botões de laranjeira a abrir em flor. Lembrou também que a preferência exclusiva afugentava os pretendentes, sem garantia do futuro. (p.99)

Apesar da aparente crítica dos costumes sociais da época em que se desenvolve a trama literária – “Sou rica, muito rica, sou milionária; precisava de um marido, traste indispensável às mulheres honestas.” –, uma observação mais atenta dá a perceber que muitos dos conceitos que são destilados por toda a obra acabam fazendo coro a esses mesmos costumes, principalmente em relação à posição da mulher naquela sociedade. 
Para observar esse aspecto, começa-se a chamar a atenção para a posição do narrador, personagem criado como responsável pela enunciação, que, se parece estar em um ponto de vista externo, em algumas passagens se mostra uma presença subjetiva:

Suspeito eu porém que a explicação dessa singularidade já ficou assinalada. Aurélia amava mais seu amor do que seu amante; era mais poeta do que mulher; preferia o ideal ao homem. (p.106)

E essa presença subjetiva, responsável, portanto, pelos conceitos ali expostos, se trai não somente pela presença explícita do pronome de primeira pessoa. Os articuladores textuais escolhidos pelo narrador vão dando conta de suas posições frente ao objeto narrado, como tão bem descreveu os aspectos teóricos da análise do discurso. Como se comprova no exemplo abaixo, se, à primeira vista, o trecho parece apenas conter uma constação de época, o advérbio “felizmente”, de natureza afetiva, mas francamente axiológico (que se manifesta com um caráter de valor para o enunciador do discurso), tão bem descrito pela teoria citada, abre, significativamente, o parágrafo: o narrador se posiciona claramente a favor da “antiga educação brasileira”, bem como pelas opiniões que recheiam toda a trama.

Felizmente D. Camila tinha dado a suas filhas a mesma rigorosa educação que recebera; antiga educação brasileira, já bem rara em nossos dias, que, se não fazia donzelas românticas, preparava a mulher para as sublimes abnegações que protegem a família e fazem da humilde casa um santuário. (O grifo é meu – p.44)

Ainda, refletindo sobre o exemplo anterior, pode-se argumentar que o termo “abnegação” (renúncia, desprendimento, altruímo, sacrifício de direitos), intensificado pelo atributo “sublime” (quase sagrado), já permite a quem lê prever as concepções que esse narrador tem – e o que valoriza – do papel social da mulher: o silêncio, o recato, a não intervenção no processo social público. À mulher estavam reservadas as sublimes abnegações que protegem a família e fazem da humilde casa um santuário.”, ou seja, o papel privado.

Era realmente para causar pasmo aos estranhos e susto a um tutor, a perspicácia com que essa moça de dezoito anos apreciava as questões mais complicadas; o perfeito conhecimento que mostrava dos negócios, e a facilidade com que fazia, muitas vezes de memória, qualquer operação aritmética por mais complicada e difícil que fosse.
Não havia porém em Aurélia nem sombra do ridículo pedantismo de certas moças que, tendo colhido em leituras superficiais certas noções vagas, se metem a tagarelar de tudo.
Bem ao contrário, ela recatava sua experiência, de que só fazia uso, quando o exigiam seus próprios interesses. Fora daí ninguém lhe ouvia falar de negócios e emitir opinião acerca de coisas que não pertencessem à sua especialidade de moça solteira. ( O grifo é meu – p. 30)


E a justificativa desse comportamento social não intervencionista é equacionado claramente no delineamento da características do ser “Mulher” – emocionais, presas ao coração, ao contrário dos homens, presos à razão –, ser singularizado através do enquadramento de todas as mulheres dentro de uma pretensa essência feminina, por assim dizer, essência da qual, não foge nem a personagem Aurélia, mesmo com as especificidades que apresenta como heroína do romance e, portanto, um ser especial. Os exemplos são abundantes nas palavras do narrador. Alguns trechos foram colocados em negrito para realce do que se quer apresentar.

Era uma expressão fria, pausada, inflexível, que jaspeava sua beleza, dando-lhe quase a gelidez da estátua. Mas no lampejo de seus grandes olhos pardos, brilhavam a irradiação da inteligência. Operava-se nela uma revolução.
O princípio vital da mulher abandonava seu foco natural, o coração, para concentrar-se no cérebro, onde residem as faculdades especulativas do homem.(p. 30)

Via-se bem que essa altiva e gentil cabeça não carregava um fardo, talvez o espólio de um crânio morto, jugo cruel que a moda impõe às moças vaidosas. O que ela ostentava era a coma abundante de que a tocara a natureza, como às árvores frondosas, era a juba soberba de que a galanteria moderna coroou a mulher como emblema de sua realeza. (p.64)

No altivo realce da cabeça e no enlevo das feições cuja formosura se toucava de lumes esplêndidos, estava-se debuxando a soberba expressão do triunfo, que exalta a mulher quando consegue a realidade de um desejo férvido e longamente ansiado. (p.74)

Seixas ajoelhou aos pés da noiva, tomou-lhe as mãos que ela não retirava; e modulou o seu canto de amor, essa ode sublime do coração, que só as mulheres entendem, como somente as mães percebem o balbuciar do filho. (p. 80)

A natureza dotara Aurélia com a inteligência viva e brilhante da mulher de talento, que se não atinge ao vigoroso raciocínio do homem, tem a preciosa ductilidade de prestar-se a todos os assuntos, por mais diversos que sejam. O que o irmão não conseguira em meses de prática foi para ela estudo de uma semana. (p. 89)

Esse fenômeno devia ter uma razão psicológica, de cuja investigação nos abstemos; porque o coração, e ainda mais o da mulher que é toda ela, representa o caos do mundo moral. Ninguém sabe que maravilhas ou que monstros vão surgir desses limbos. (p.104)

Desse modo, percebe-se que a leitura de um texto literário está longe de se constituir apenas na fruição inocente de uma obra artística. Há muito mais a ser revelado. 
Mas, a despeito dos comentários anteriores sobre as particularidades sociais levantadas, quem leu a obra em questão se deparou com a magnificência da habilidade narrativa alencariana e foi envolvido por uma história da qual não conseguiu fugir até chegar a seu final surpreendente.
Convido a quem me lê a voltar para acompanhar a terceira parte, que fala mais abrangentemente dessa trama de Senhora, observada então a força que o texto tem.


ESTE ESTUDO CONTINUA NA POSTAGEM SEGUINTE.


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quarta-feira, 5 de março de 2014

A pseudo alma feminina: "Senhora" e o olhar do século XIX sobre a mulher



                    PRAÇA JOSÉ DE ALENCAR - FLAMENGO - RIO DE JANEIRO

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais)


Parte I

A postagem que ora se inicia é um superficial estudo sobre o magnífico romance Senhora, do escritor romântico José Martiniano de Alencar, que, nascido em 1829, no Ceará, falece muito jovem ainda, aos 48 anos (1877), o que permite ao público imaginar – uma vasta obra escrita em tão pouco tempo e mais de um romance em um mesmo ano –, que obra não teríamos, se nos fosse dada a sorte de ele ter vivido mais anos: os romances indianistas O guarani (1857), Iracema (1865) e Ubirajara (1874); os urbanos ou de costumes Cinco minutos (1856), A viuvinha (1857), Lucíola (1862), Diva (1864), A pata da gazela (1870), Sonhos d'ouro (1872), Senhora (1875) e Encarnação (1877 - publicação póstuma); os regionalistas O gaúcho (1870) O tronco do Ipê (1871), Til (1871) e O sertanejo (1875); os históricos As minas de prata (1865-1866) e A guerra dos mascates (1871-1873). O guarani é um verdadeiro romance épico.
Num olhar atento, percebe-se o plano nacionalista que Alencar seguiu de abarcar o Brasil em todas as suas variações geográficas, culturais e históricas, desde sua origem. Comparece-se apenas, por exemplo, O sertanejo (região Nordeste), O gaúcho (região Sul) e os vários romances urbanos, cujas tramas transcorrem no Rio de Janeiro.
Senhora é uma análise da sociedade brasileira urbana do século XIX. No romance, são abordadas, com olhar crítico, várias instituições sociais da época, como o casamento das classes favorecidas economicamente através de uma transação comercial. A par deste aspecto, outros costumes sociais vêm à tona.
Aurélia, a heroína-título, a príncipio paupérrima, que, ao contrário das mocinhas da época – à primeira vista, a protagonista parece contrariar o perfil de mulher de então –, não treme por um casamento, vê frustrado, no entanto, seu desejo de realização puramente amorosa, justamente subjugado aos ditames sociais do contrato de núpcias comercial, o que dá ensejo ao enredo envolvente do romance. A herança que recebe – no Romantismo quase sempre havia uma inesperada herança – permite realizar uma vingança contra o amado vendido para outra. Desse modo, a trama é dividida em quatro partes e os títulos procuram denunciar, não só a intenção de Aurélia ao “comprar” Fernando Seixas, como mostrar a crítica feroz que a mesma empreende contra a sociedade que a maltratara, usando seu próprio veneno: “Primeira parte: O preço”; “Segunda parte: Quitação”; “Terceira parte: Posse” e “Quarta parte: Resgate”.
O estudo ora iniciado e continuado em postagens posteriores tem como finalidade, na verdade, mostrar como, apesar das intenções de análise e crítica social, Alencar não consegue fugir da visão da época – está preso a ela, como qualquer um, pois é a “sua” época – e submerge nas comuns concepções de então sobre a mulher, concepções, aliás, que ainda continuam a ser repetidas até hoje.

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domingo, 5 de janeiro de 2014

O bem-aventurado mundo da poesia


Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais)

O estudo de hoje é sobre Mário Quintana.
Além de poeta (1906-1994), foi tradutor e jornalista. Por sua importância na literatura – em 1980, recebeu o prêmio Machado de Assis e em 1981, o prêmio Jabuti –, chegou a ser indicado para a Academia Brasileira de Letras, embora a justiça não tenha sido feita. A literatura perdeu pouco, pois seus textos não ficaram menos magníficos por isso.
Se seus poemas encantam, famosas ficaram, do mesmo modo, frases que deliciam gerações:

Dos grilos
Toda a noite os grilos fritam não sei o quê. A madrugada chega, destampa o panelão: a coisa esfria.

Da relativa igualdade
Democracia? É dar a todos o mesmo ponto de partida. Quanto ao ponto de chegada, isso depende de cada um.

O trágico dilema
Quando alguém pergunta a um autor o que este quis dizer, é porque um dos dois é burro.

Camuflagem
A esperança é um urubu pintado de verde

O pior
O pior dos problemas da gente é que ninguém tem nada com isso.

Incorrigível
O fantasma é um exibicionista póstumo.

Mentira?
A mentira é uma verdade que se esqueceu de acontecer.

Provérbio
O seguro morreu de guarda-chuva.

Mas há um poema a ser estudado, que aprecio muito, e que se estrutura sobre um tema que, como se verá adiante, tem, não só ligações literárias, mas, ouso dizer, psicológicas, através dos sujeitos líricos, com outro poema transcrito em seguida. Vamos lê-lo, inicialmente.

Eu nada entendo

Mário Quintana

Eu nada entendo da questão social.
Eu faço parte dela simplesmente...
E sei apenas do meu próprio mal,
Que não é bem o mal de toda gente,

Nem é deste Planeta... Por sinal
Que o mundo se lhe mostra indiferente!
E o meu Anjo da Guarda, ele somente,
É quem lê os meus versos afinal...

E enquanto o mundo em torno se esbarronda,
Vivo regendo estranhas contradanças
No meu vago País de Trebizonda...

Entre os Loucos, os Mortos e as Crianças,
É lá que eu canto, numa eterna ronda,
Nossos comuns desejos e esperanças!...
(In Nariz de vidro – São Paulo: Moderna, 1984, p.17)


A primeira observação a ser feita é de que há, nitidamente, uma ruptura entre o mundo indiferente de toda gente, que se posta de um lado, e aquele “eu” e seu Anjo da Guarda, que se postam no mesmo lado que os Loucos, os Mortos e as Crianças.
E há até a fixação de espaços diferentes para esses dois mundos: um está neste “Planeta”; mas o sujeito poético constrói para si e seus pares um “vago País de Trebizonda”, um “lá”, onde é possível cantar, “numa eterna ronda,/Nossos comuns desejos e esperanças”, sentimentos – “E sei apenas do meu próprio mal” – a que o mundo se mostra indiferente.
É importante observar que esse vago país é um local de exceção, onde pode penetrar o Anjo da Guarda, que, afinal, é o único que lê os versos desse sujeito poético, compartilhando-lhe o mal e, ainda, seus desejos. Um local subjetivo onde é possível a realização de todas as ações e sonhos interditos no Planeta de onde o eu poético se evade.
Mas a porta secreta dessa terra particular – seriam os versos a chave incógnita? – é aberta a outras entidades excepcionais, como os mortos, as crianças e os loucos, porque sempre exclusos dos limites do senso comum. A poesia – e poetas, como seres igualmente de exceção –, como se conclui, transita, igualmente, muito além dos padrões aceitos nas “questões sociais”.
Vale a pena ler, agora, o poema de Manuel Bandeira, citado no início e se verificar como tange, similarmente, o tema do território inatingível da bem-aventurança, só alcançado através da poesia.

Vou-me Embora pra Pasárgada

Manuel Bandeira

Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada

Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz

Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
Da nora que nunca tive

E como farei ginástica
Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe-d'água
Pra me contar as histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada

Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone automático
Tem alcaloide à vontade
Tem prostitutas bonitas
Para a gente namorar

E quando eu estiver mais triste
Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
— Lá sou amigo do rei —
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada.
(In Estrela da vida Inteira. Rio de Janeiro, S. Paulo: Record, /s.d./, p.143-144)

Não é coincidência o fato de aqui também surgir a presença do Louco - “Que Joana a Louca de Espanha –, entrelaçado ao sujeito poético, apontando, novamente, para o ser excêntrico, aqui empregado no sentido mesmo de “afastado ou desviado de fora do centro”, numa terra subjetiva, um País de Trebizonda, ora nomeado Pasárgada: “ Em Pasárgada tem tudo/É outra civilização”.
Como se pode perceber, Trebizonda e Pasárgada são o território de todas as possibidades, a terra prometida do eu lírico doada a si mesmo. 
Para fechar a argumentação, novo e belíssimo texto do mesmo Mário Quintana.

Mário Quintana

Se eu fosse um padre, eu, nos meus sermões,
não falaria em Deus nem no Pecado
– muito menos no Anjo Rebelado
e os encantos das suas seduções,

não citaria santos e profetas:
nada das suas celestiais promessas
ou das suas terríveis maldições...
Se eu fosse um padre eu citaria os poetas,

Rezaria seus versos, os mais belos,
desses que desde a infância me embalaram
e quem me dera que alguns fosse meus!

Porque a poesia purifica a alma
… e um belo poema – ainda que Deus se aparte –
um belo poema sempre leva a Deus!
(Na mesma obra de Mário Quintana, p. 44)


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