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sábado, 31 de julho de 2010

O paraíso perdido - Palavras sobre palavras 21

Eliane F.C.Lima

Nossa reflexão de hoje será sobre um tempo/espaço, normalmente, grato a todo ser humano, embora esse sentimento de felicidade já comece a ser considerado um mito. Vamos visitar alguns poetas e ver como esse tema se instaura.


Saudades

Narcisa Amália

Meus funerários gemidos
Vão legando à imensidade
Um vasto arcano – a tristeza
Um canto eterno – a saudade! ...
Carlos Ferreira


Tenho saudades dos formosos lares
Onde passei minha feliz infância;
Dos vales da dulcíssima fragrância
Da fresca sombra dos gentis palmares.

Minha plaga querida! Inda me lembro
Quando através das névoas do ocidente
O sol nos acenava adeus languente
Nas balsâmicas tardes de setembro;

Lançava-me correndo na avenida
Que a laranjeira enchia de perfumes!
Como escutava trêmula os queixumes
Das auras na lagoa adormecida!

Ai! Que seria do mortal aflito
Que tomba exangue à provação cruenta,
Se no marco da estrada poeirenta
Não divisasse os gozos do infinito ?!...

Eu era de meu pai, pobre poeta,
O astro que o porvir lhe iluminava
De minha mãe, que louca me adorava,
Era na vida a rosa predileta!

Mas...

... tudo se acabou. A trilha olente
Não mais percorrerei desses caminhos...
Não mais verei os míseros anjinhos,
Que aqueciam na minha a mão algente!

Correi, ó minhas lágrimas sentidas,
Do passado no rórido sudário
Bem longe está o cimo do Calvário
E já as plantas sinto tão feridas!...

Abrem-me n’alma as dores da saudade
Um sulco de profundas agonias...
Morreram-me pra sempre as alegrias...
Só me resta um consolo... a eternidade!


O texto de Narcisa Amália introduz como enfoque a infância, tema que, embora caro ao Romantismo, é constante na poesia de qualquer estilo de época, o que demonstra suas implicações com o psiquismo humano. Não é necessário muito conhecimento de psicologia para se perceber que, para as pessoas que passaram por essa fase de forma saudável, é preciso esclarecer, esse tempo passa a representar “o tempo do paraíso”, do qual se é expulso pela própria vida no tempo de adulto, quando a realidade, finalmente, nos bate à porta. Feliz ou não, a criança sempre tem uma visão bastante especial e imaginosa daquela realidade.
Nos poemas que têm como seu objeto a primeira parte da vida, há um entrosamento completo entre tempo e espaço, os dois como duas faces dessa época mágica, sem uma separação manifesta, pelo menos por esses sujeitos poéticos.
Nesse universo textual, estabelece-se uma oposição, de forma nítida, entre o “tempo/lugar paraíso” – a infância – e a “queda” – a idade adulta –, para se aproveitar a terminologia bíblica.
E me parece interessante trazer como argumento o pensamento de C. Gustav Jung (para ler sobre ele em outra postagem deste blogue clique), através das palavras de Murray Stein (Jung – o mapa da alma – Uma introdução. Trad. Álvaro Cabral. São Paulo: Cultrix /s.d./), lembrando que seu conceito de incesto foi o ponto de partida da ruptura entre o psicanalista e seu amigo Freud:

Freud viu no incesto um desejo inconsciente de possuir sexualmente a mãe real, num sentido literal. Jung, por outro lado, interpretou simbolicamente o incesto como um anseio geral de permanência no paraíso da infância. Tal anseio torna-se mais pronunciado quando uma pessoa enfrenta um assustador desafio na vida, crescer, adaptar-se a um meio propício ao estresse. A vontade é de subir na cama e tapar a cabeça com os lençóis. A “mãe” desejada converte-se, na interpretação simbólica de Jung, no desejo de regressar à dependência infantil, à infância, à inconsciência e irresponsabilidade. (pág. 66)

Na verdade, argumentou Jung, a sexualidade tem muito pouco a ver com incesto. O incesto é simbolicamente significante, não biologicamente desejado. (pág. 67)

O tema do sacrifício sobre o qual Jung se alonga na Psicologia do Inconsciente é uma peça central em seus pensamentos sobre o crescimento da consciência e as necessidades de desenvolvimento da maturidade pela personalidade humana. Tivessem os humanos que permanecer escravos do desejo e comportamento incestuosos, simbolicamente falando, não haveria movimento psíquico para fora da infância. O paraíso seria o lar. (pág. 67)

O desejo incestuoso de eterna infância tinha que ser sacrificado coletivamente nos tempos primordiais, e tem que ser sacrificado individualmente por toda a pessoa moderna, a fim de promover um movimento na consciência voltado para a aquisição de uma consciência cada vez maior. (pág. 67)

É o próprio Jung, que afirma em sua autobiografia:

Para mim, o incesto, só em casos extremamente raros, constitui uma complicação pessoal. Na maior parte dos casos, representa um conteúdo altamente religioso e é por este motivo que desempenha um papel decisivo em quase todas as cosmogonias e em inúmeros mitos. (Memórias, sonhos, reflexões. Reunidas e editadas por Aniela Jaffé. Trad. Dora Ferreira da Silva. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. /s.d./pág. 149).

Infância

Cecília Meireles

Levaram as grades da varanda
por onde a casa se avistava.
As grades de prata.

Levaram a sombra dos limoeiros
por onde rodavam arcos de música
e formigas ruivas.

Levaram a casa de telhado verde
com suas grutas de conchas
e vidraças de flores foscas.

Levaram a dama e o seu velho piano
que tocava, tocava, tocava
a pálida sonata.

Levaram as pálpebras dos antigos sonhos,
deixaram somente a memória
e as lágrimas de agora.

Um lugar de delícias, onde se criavam os “antigos sonhos”: uma natureza presente, o entorno de uma casa de magia – casa de telhado verde, grutas de conchas, vidraças de flores foscas, uma dama, seu velho piano, a pálida sonata –, reconstituído pela memória.
Um tempo, onde todas as imagens são forjadas por uma imaginação que cria sua própria realidade. Ver que o verbo “levaram”, na terceira pessoa, sublinha um sujeito indeterminado, mas que se apresenta, contudo, como um agente concreto, culpado pela perda do paraíso. Essa personificação da ação do tempo tem muito da visão infantil, da não aceitação e incompreensão do abstrato.

A casa grande

Mário Quintana

… mas eu queria ter nascido numa dessas
[casas de meia-água
com o telhado descendo logo após as
[fachadas
só de porta e janela
e que tinham, no século, o carinhoso apelido
de cachorros sentados.
Porém nasci em um solar de leões.
(… escadarias, corredores, sótãos, porões,
[tudo isso...)
Não pude ser um menino da rua...
Aliás, a casa me assustava mais do que o
[mundo lá fora.
A casa era maior do que o mundo!
E até hoje
– mesmo depois que destruíram a casa grande –
até hoje eu vivo explorando os seus esconderijos...

Esse sujeito poético do texto de Quintana traz um novo aspecto a ser analisado: a casa da infância – “... a casa me assustava mais do que o mundo lá fora.” – já prenuncia o medo do adulto – atentar para os dois últimos versos do poema. É surpreendente o desejo que está escondido na metáfora de “casas de meia-água”, “só de porta e janela”: a pequenez do espaço afugenta, puro resguardo, todos os fantasmas e reproduz o ninho primitivo do ser humano, a proteção do útero. Mas, ainda aqui, é para esse “tempo idealizado” que se volta esse eu – “E até hoje...”.


Infância

Carlos Drummond de Andrade

A Abgar Renault

Meu pai montava a cavalo, ia para o campo.
Minha mãe ficava sentada cosendo.
Meu irmão pequeno dormia.
Eu sozinho menino entre mangueiras.
lia a história de Robinson Crusoé,
comprida história que não acaba mais.

No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu
a ninar nos longes da senzala – e nunca se esqueceu
chamava para o café.
Café preto que nem a preta velha
café gostoso
café bom.

Minha mãe ficava sentada cosendo
olhando para mim:
- Psiu...Não acorde o menino.
Para o berço onde pousou um mosquito.
E dava um suspiro... que fundo!

Lá longe meu pai campeava
no mato sem fim da fazenda.

E eu não sabia que minha história
era mais bonita que a de Robinson Crusoé.

Orfandade

Adélia Prado

"Meu Deus,
me dê cinco anos.
Me dê um pé de fedegoso com formiga preta,
me dê um Natal e sua véspera,
o ressonar das pessoas no quartinho.
Me dê a negrinha Fia pra eu brincar,
me dê uma noite pra eu dormir com minha mãe.
Me dê minha mãe, alegria sã e medo remediável,
me dê a mão, me cura de ser grande.
Ó meu Deus, meu pai,
meu pai."

Nos dois últimos poemas – chamemos a atenção de que Adélia Prado é a única poeta ainda viva do grupo aqui postado –, a presença da mãe carinhosa e protetora se explicita, ecoando o pensamento de Jung.
Para o sujeito drummoniano, essa figura materna – é impossível não se reparar no pai posto, desde o início do poema, “Lá longe...” – se duplica na “preta velha” ou em “uma voz que aprendeu a ninar...”, lindíssima metonímia construída. E os adjetivos “gostoso” e “bom” vão abrindo caminho para o final do poema.
Porém, se a adjetivação máxima de Narcisa Amália – “formosos lares”, “feliz infância”, “dulcíssima fragrância”, “gentis palmares”, “plaga querida”, “balsâmicas tardes” – é evitada por um escritor do Modernismo, é interessante se atentar para o recurso usado: se a história de Robinson Crusoé, para o sujeito menino reconstituído pela memória, tem o mesmo valor de todos os adjetivos usados no primeiro poema, imagine-se a história de sua infância que “... era mais bonita que a de Robinson Crusoé”. Por um caminho diverso, chega-se à mesma louvação da fase de criança.
O texto de Adélia é a culminância do desejo de negação da idade adulta. Os versos “... me dê uma noite pra eu dormir com minha mãe./Me dê minha mãe, alegria sã e medo remediável” correspodem, em uma linguagem poética, ao primeiro trecho de Murray Stein, acima transcrito, com perfeição. Em “me cura de ser grande” o sujeito lírico, obsessivamente, manifesta-se já na linguagem infantil, da qual se apropria, tal é sua aspiração da volta ao paraíso – "Meu Deus,/me dê cinco anos.”
Podemos ponderar que, individualmente, me parece, o ser humano não abandonou inteiramente esse desejo simbólico de incesto – refiro-me aqui àquele “anseio geral de permanência no paraíso da infância”, tão bem descrito acima –, o que transparece, ao longo dos vários períodos literários, escondendo-o apenas socialmente. A cada novo susto, no entanto, a época de refúgio e aconchego volta a povoar seu imaginário.

Clique aqui para visitar Conto-gotas e aqui para visitar Poema Vivo.

sábado, 24 de julho de 2010

Eliane F.C.Lima

Minhas postagens, neste blogue, envolvem uma pesquisa, como garantia de qualidade e têm como objeto escritoras (es) que merecem admiração por seu talento e importância. Cada uma delas tem direito, portanto, a um tempo maior de visita e reflexão. Desse modo, passo a postá-las de quinze em quinze dias
pelo respeito que merecem.

domingo, 18 de julho de 2010

O outro... multidão - Literatura de ontem 14

Eliane F.C.Lima

Hoje vou focalizar o tema “o outro”, através de alguns movimentos literários. Já há muito tempo a psicanálise descreveu a formação de um “eu”, em cada indivíduo, diante da constatação do “outro”.

Em minha análise, pesquisei e encontrei esse “outro”, inicialmente, equacionado como “mundo” ou “multidão”, sob o olhar de um sujeito que com ele se defronta. Esse traço, que marca a separação entre ambos, está presente na sensação de estranhamento no olhar em volta, na solidão, responsável por quase todas as desventuras que marcarão a fuga que empreende tal sujeito para dentro de si mesmo, surpreendentemente, tanto no Romantismo, o que é uma marca de seu programa poético, como no Modernismo.
Serão focalizados, de início, dois casos desse "eu" – Narcisa Amália (romântica) e Drummond (modernista) –, o qual se apropria do discurso, que se constrói, portanto, subjetivamente.
Para começar, devo, então, apresentar a poeta, desconhecida do cidadão comum, em comparação com Gonçalves Dias ou Casimiro de Abreu, por exemplo. A explicação é direta: sua condição de mulher. Tendo empreendido uma luta para ser reconhecida em sua época, o futuro foi pelo mesmo caminho, sendo ignorada por quase todas as antologias. Em 1999, porém, a doutora em Ciência da Literatura pela UFRJ Christina Ramalho lança o livro Um espelho para Narcisa: reflexos de uma voz romântica, Ed. Elo, dando visibilidade à poeta. A ela dediquei um trabalho de curso na mesma UFRJ.













Imagem Google e Centro Cultura Narcisa Amália em
S.J. da Barra. Agradeço ao site
"Kamila Viagens" a segunda foto (clique aqui)

Vejamos, resumidamente, sua biografia.


Nascida em 1852,(São João da Barra – 1924/Rio de Janeiro), a poeta Narcisa Amália era filha de Narcisa Inácio de Campos e do poeta Jacome de Campos. Já aos quatorze anos estava casada, tendo se separado do primeiro marido algum tempo depois.
Publica em 1872 seu livro de poesias Nebulosas, cuja autoria é contestada por Múcio Teixeira, tendo corrido na época a versão de que o autor era um poeta que se aproveitara de seu nome. Justifica-se, no entanto, que tal hipótese tenha sua origem em declaração do segundo marido descontente e tenha achado terreno fértil na concepção cultural da época sobre a mulher.
Recebia em sua casa, para saraus, nomes literariamente importantes como Raimundo Correia. Até o próprio D. Pedro II a quis conhecer, embora fosse abolicionista e republicana convicta. Apesar dessa larga aceitação é desconsiderada pelo cânone, até hoje, e foi, mesmo na época, reconhecida por uns poucos antologistas que a citam – Edgar Cavalheiro e Péricles Ramos – como pertencente à terceira geração romântica, embora sua poesia tenha muito do subjetivismo e desilusão da segunda, haja vista o título de algumas como “Amargura”, “Desengano”, “Desalento”, “Saudades”, que enfocam os temas dessa fase.
Tendo publicado apenas Nebulosas (Poesia), 1872 e Nelúmbia (Conto), 1874, trabalhou como escritora em jornais – primeira mulher a se profissionalizar nessa área –, numa atividade social e até política, em defesa da condição da mulher.
Vale a pena se ler uma referência a ela feita por nada menos que Machado de Assis, em um de seus artigos na Revista "A marmota", em 1858:

“A poesia do Sr. Ezequiel Freire não tem só o lirismo pessoal, — traz uma nota de humorismo e de sátira; e é por essa última parte que o podemos ligar ao Sr. Artur Azevedo. As Flores do Campo, volume de versos dado em 1874, tiveram a boa fortuna de trazer um prefácio devido à pena delicada e fina de D. Narcisa Amália, essa jovem e bela poetisa, que há anos aguçou a nossa curiosidade com um livro de versos, e recolheu-se depois à turris eburnea da vida doméstica. Resende é a pátria de ambos; além dessa afinidade, temos a da poesia, que em suas partes mais íntimas e do coração, é a mesma. Naturalmente, a simpatia da escritora vai de preferência às composições que mais lhe quadram à própria índole, e, no nosso caso, basta conhecer a que lhe arranca maior aplauso, para adivinhar todas as delicadezas da mulher. Dona Narcisa Amália aprova sem reserva os "Escravos no Eito", página da roça, quadro em que o poeta lança a piedade de seus versos sobre o padecimento dos cativos. Não se limita a aplaudi-lo, subscreve a composição. Eu, pela minha parte, subscrevo o louvor; creio também que essa composição resume o quadro.”
(In Machado de Assis – obra completa, (Org. Afrânio Coutinho). Rio de Janeiro: Nova Aguilar S.A., 1992, Biblioteca Luso-Brasileira, Série Brasileira, V.3, pág. 832)

Para aprofundar a leitura sobre ela e ver os absurdos falocêntricos ditos então, aconselho a clicar aqui e voltar, no site, para a página 419. A leitura é de arrepiar e imperdível. No blogue "Viva a geologia" (vá por aqui), há muita referência à escritora, incluisve, ligando-a a Chico Xavier.
Vamos aos textos:

Amargura

Narcisa Amália

(...)

Já tive, como todos, meus enlevados sonhos,
Senti tingir-me a face a púrpura do enleio;
E o coração pulsou-me um dia entre delícias
Fazendo arfar o seio.
(...)


Ai! cedo esvaeceu-se a frívola miragem,
E fugitiva, rápida, desfez-se essa ilusão;
Apenas hoje sangra e estua-me sem vida,
O gélido coração.

(...)

O mundo que me vê passar sem um sorriso,
Não vê do meu tormento o horrendo vendaval!
Ele que acolhe e afaga o venturoso, entrega
O triste à lei fatal!...
(...)

Meu Deus! Por que embalar-me o quedo pensamento
Se amor é passageiro, se as glórias são de pó?!
Poetisa – torno a lira às linfas da descrença,
E a ti me volvo só.

Bondoso abre-me os braços, reúne-me a teus anjos,
A eterna ventura almejo palpitante;
Contemplarei o – nada – do seio das estrelas,
Das dores triunfantes.


Desengano

Narcisa Amália

Antes d’espirar el dia
Vi morir a mi esperanza.
Zaraté

Quando resvala a tarde na alfombra do poente
E o manto do crepúsculo se estende molemente;
Na hora dos mistérios, dos gozos divinais,
Despedaçam-me o peito martírios infernais;
E sinto que, seguindo uma ilusão perdida,
Me arqueja, treme e expira a lâmpada da vida!

Feriu-me os olhos tímidos o brilho da esperança;
A luz do amor crestou-me o riso de criança;
E quando procurei - sedenta – uma ventura,
Aberta vi a face voraz da sepultura!...
Dilacerou-me o seio, matou-me a crença bela,
O tufão minador de hórrida procela!

Então, pálida e triste, alcei a fronte altiva
Onde se estampa a dor tenaz que me cativa;
Sorvi na taça amarga o fel do sofrimento,
E a voz queixosa ergui num último lamento:
Era o cantar do cisne, o brado da agonia...
E a multidão passou soberba, muda e fria!
( ... )

Poema de sete faces

C. Drummond de Andrade

(…)
O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.

Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus,
se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundo
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.

Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.


Mundo grande

C. Drummond de Andrade

Não, meu coração não é maior que o mundo.
É muito menor.
Nele não cabem nem as minhas dores.
Por isso gosto tanto de me contar.
Por isso me dispo,
por isso me grito,
por isso freqüento os jornais, me exponho cruamente nas livrarias:
preciso de todos.
Sim, meu coração é muito pequeno.
Só agora vejo que nele não cabem os homens.
Os homens estão cá fora, estão na rua.
A rua é enorme. Maior, muito maior do que eu esperava.
Mas também a rua não cabe todos os homens.
A rua é menor que o mundo.
O mundo é grande.
(…)

Mas esse sentimento de que há um hiato entre si e “o outro” e o desejo de mesmo, aparentemente, diminuir essa lacuna pode estar sob um terceiro olhar, externo a tal “eu”. E se naquele de “Mundo grande” o traço da oposição está na apartação dos homens de seu coração, nos dois sonetos abaixo, parnasianos, essa distância traz desdobramentos intensos. Os dois iniciais são de Raimundo Correia (1859-1911), que é, junto a Olavo Bilac e Alberto de Oliveira, um dos mais destacados poetas do parnasianismo e autor de belos poemas de cunho filosófico, como os abaixo. A Cadeira 5 da Academia Brasileira de Letras deve a ele sua fundação. Para informaçôes complementares, remeto à “Revista Agulha”, bastando clicar aqui.


Mal Secreto

Raimundo Correia

Se a cólera que espuma, a dor que mora
N'alma, e destrói cada ilusão que nasce,
Tudo o que punge, tudo o que devora
O coração, no rosto se estampasse;

Se se pudesse o espírito que chora,
Ver através da máscara da face,
Quanta gente, talvez, que inveja agora
Nos causa, então piedade nos causasse!

Quanta gente que ri, talvez, consigo
Guarda um atroz, recôndito inimigo,
Como invisível chaga cancerosa...

Quanta gente que ri, talvez existe,
Cuja ventura única consiste
Em parecer aos outros venturosa!

Mal Secreto

Raimundo Correia

Se em muita fronte que parece calma,
Se em muito olhar que límpido parece;
Se pudesse notar, ler se pudesse,
Tudo o que n'alma existe e vive n'alma!

Entre essa paz fictícia que se espalma
No rosto, a inveja, raro transparece;
Ela que à glória alheia se enraivece,
E que às alheias lágrimas se acalma.

Alma, vítima dessa enfermidade!
Mal sabes que à dos outros sendo adversa,
Tu és adversa à própria f'licidade!

A inveja os risos todos te dispersa:
Menos ódio merece que piedade,
Porque és mais insensata que perversa.

Em ambos os textos, de mesmo tema, um discurso em terceira pessoa faz de uma falta, que marca uma subjetividade em face de um “outro”, seu objeto, como se comprova, no primeiro “Mal secreto”, no “recôndito inimigo” e, no segundo, a descoberta felicidade alheia. Vê-se, inclusive, que essa alteridade é assumida até pelo depositário do discurso – “... que inveja agora/ Nos causa, então piedade nos causasse!” (grifo meu).
E, nos dois, a realçar oposições, o ódio, a inveja. E esse sujeito observado pretende, pelo menos simuladamente – flagrado em “em parecer”, no primeiro soneto e em “paz fictícia”, no segundo –, diminuir essa falta, que, como se vê, só se concretiza na aparência.

Nosso estudo do “eu X outro” vai percorrer, no texto a seguir, caminhos até então não percorridos, principalmente, pela imaterialidade do que virá. Se até então o antagonismo tornava bem explícito “o outro” e o “eu”, quer em discurso próprio, quer em terceira pessoa, agora, revestido de uma sutileza quase impalpável, o leitor tem de estar bem atento para identificar nossos dois elementos. O texto é de Vicente de Carvalho, parnasiano, que se não faz parte da tríade literária acima enunciada, foi tão conhecido, quanto os outros três (para aprofundar informações, remeto ao site “Biblio.com.br”, indo por aqui)
Vamos conhecer o poema:

A Invenção do Diabo

Vicente de Carvalho

Deus, entregando ao Diabo a metade do mundo,
Deu-lhe a parte pior, como era de razão;
E, para arrecadar seu patrimônio, o Imundo
Foi forçado a varrer todo o cisco do chão.

Tomando para si todo o imenso tesouro
Da Bondade e da Luz, do Amor e da Harmonia,
Pode o Senhor fazer esbanjamento de ouro
Nas estrelas da noite e no esplendor do dia.
(...)

A Satanás, porém, coube em partilha a treva,
O ódio como prazer, como covil um poço,
E ele lá no seu reino escuro a vida leva
De um cão magro a que dão muita pancada e um osso.
(...)

Só uma vez Satã respirou satisfeito,
E arregaçou-lhe o beiço um pérfido sorriso:
Quando, acaso, ao sair do seu covil estreito,
De repente se achou dentro do Paraíso.

A primeira impressão que teve foi de inveja:
Daquele estranho quadro o imprevisto esplendor,
Só lhe pode arrancar à boca malfazeja
Uivos de cão ferido, imprecações de dor.

Mas, de repente, como o corisco clareia
O tenebroso céu nas borrascas de agosto,
Uma ideia triunfante, uma sinistra ideia,
Fuzilou-lhe no olhar e iluminou-lhe o rosto.

Sobre um macio chão todo em musgos e rosas,
Eva, formosa e nua, adormecera ao luar:
E sobre a alva nudez dessas formas graciosas
Satã deixou cair um desdenhoso olhar...

Mas num sonho talvez de cousas ignoradas,
Num desejo sem alvo, imperfeito e indeciso,
Eva os lábios abriu – e abriram-se, orvalhadas,
De um suspiro de amor, as rosas de um sorriso.

Espantado, Satã viu que esse mármore era
Animado e gentil, ardente e encantador;
Como um resumo viu de toda a primavera
Na frescura sem par daquela boca em flor.

E foi somente então que o Príncipe da Treva
Imaginou o Amor furioso e desgrenhado,
E resolveu fazer dos róseos lábios de Eva
O cálix consagrado às missas do Pecado.

Lábios feitos de mel, de rosas ao sereno,
De céu do amanhecer franjado em rosicler...
Entreabriu-os Satã, e enchendo-os de veneno,
Sorriu. Tinha inventado o beijo da mulher.

Está claro que não foi sem prurido que postei o texto acima, achado, bem como Raimundo Correia, em DUQUE-ESTRADA, Osório. Tesouro poético brasileiro, 2 ed.. Rio de janeiro/São Paulo: Livraria Francisco Alves, 1926. Mas negá-lo seria ignorar a realidade, pelo menos do século XIX.
A poesia, narrativa, é conduzida por um discurso, à primeira vista, feito em terceira pessoa também. Mas a Análise do discurso já nos ensinou a encontrar a subjetividade onde menos se imagina. E a ressaltar que subjetividades sempre correm em um leito ideológico. E aí é que está a questão.
Vejamos apenas alguns de seus traços: o enunciador, dentro da dicotomia Deus/Diabo, vai assumindo uma posição em favor do primeiro – “Deu-lhe a parte pior, como era de razão”–, claras desde os atributos com que descreve o segundo: “o Imundo”, “pérfido sorriso”, “boca malfazeja”.
Já podemos, nesse caso, identificar um “eu”, que se coloca como masculino – o final do poema encaminha para isso – e, portanto, posso nomear como coletivo. Percebe-se isso naquele “beijo da mulher”, invenção do Diabo diz o título, criado para tentar qualquer “eu” masculino e comprometido com o divino. E que tem Deus a seu lado, o que, convenhamos, não é pouco. Isso dava o grande poder aos faraós. Do lado oposto um Diabo, que arrebata Eva do Paraíso.
É preciso salientar que, no texto literário, mais gravemente que no bíblico, não há serpente a tentar a mulher e seu pecado faz parte de sua substância, como se pressente em “num sonho talvez de cousas ignoradas”, “desejo sem alvo, imperfeito e indeciso”, nos lábios que abrem, com um suspiro já de amor – pasmem! - as rosas de um sorriso. E ela é toda descrita como sedução: “formosa e nua”, “a alva nudez dessas formas graciosas”, “boca em flor”,“róseos lábios”, “Lábios feitos de mel”. Foi o semblante de Eva que tornou Satã espantado e deu a ele a ideia, meio encantado ele próprio.
O adjetivo da antepenúltima estrofe “ardente” – que arde, que está em chamas – referente a mármore, o corpo de Eva, não é uma escolha qualquer. Eva era já pura lascívia. O “veneno”, que o Diabo lhe colocou nos lábios, era apenas uma segurança a mais, é permitido supor. E assim, marcada com o sinal da malignidade, que já é sua própria essência, segundo o texto, a Mulher é transformada, para sempre, no “outro”.

sábado, 10 de julho de 2010

Os arranjos no tempo de Zulmira R. Tavares - Literatura, já 16/Palavras sobre palavras 20

Eliane F.C.Lima

Faço hoje a segunda postagem sobre um texto de Zulmira Ribeiro Tavares, agradecendo ao Google a imagem. No final de meu comentário, coloco um link para quem quiser ler a outra. Ali também há uma breve biografia sobre a escritora.



Arranjos no tempo


Em um canto do jardim o menino escondido dentro da moita espiona a casa.

Dentro da sala, o avô cabeceia na poltrona e procura a sua infância com dedos sonolentos arranhando a manta xadrez. A infância lhe aparece como certa moita com um menino dentro. O passado é um ovo verde e folhudo guardando um menino espião da vida.

Na cozinha a mulher bate as chinelas no chão, bate as panelas, taramela com os restos do sol que entram – o nariz virado para o poente.

Do outro lado da cidade estão enterrados há tempo pai e mãe. Os ossos limpos foram guardados em gavetas como os talheres depois da última refeição serão limpos e guardados.

A mulher logo irá chamar para a mesa. O avô então vai dar um pulo da poltrona, ficar muito esperto e esfomeado. O ovo verde da infância vai se quebrar e de dentro saltar o menino pronto para abrir a boca enorme e comer de tudo; e ficar depressa comprido como o futuro, onde moram o avô da poltrona e a mulher das panelas.

Mastigarão calados e irão escutar a mastigação um do outro até o fim. A mulher vai taramelar com os pratos sujos, vai olhar para a lua subindo na janela, vai lavar os talheres em muitas águas.

Limpos, os talheres serão guardados nas gavetas como os ossos foram guardados depois que pai e mãe os abandonaram.

Em mais de uma água os dias e as noites serão levados aos poucos para o outro lado da cidade – com o menino, o avô, a mulher, a moita, a poltrona, as panelas; a própria casa vai se soltar e atravessar a distância atrás deles todos.

(TAVARES, Zulmira R.. Cortejo em abril: ficções. São Paulo: Companhia das Letras, 1998).

O texto se inicia por um "menino escondido dentro da moita". O segundo parágrafo, porém, trata de reduzir esse menino à sua condição onírica, memória do passado do "avô", embora o verbo no presente – “espiona” – o resgate desse tempo ido. E ele aparece muito vivo e ainda atuante – “O ovo verde da infância vai se quebrar e de dentro saltar o menino pronto para abrir a boca enorme e comer de tudo".
Não é à toa, então, o título: mais velho do que o "avô", porque veio ao mundo antes dele – o chamar de "avô" introduz uma ambiguidade no texto e leva o leitor a acreditar no "menino" como terceira personagem da casa –, pertencente a um tempo que se foi, ele consegue trazer sua infância até o presente. E tal tempo, então, ainda se guarda como "um ovo verde e folhudo". E esse menino insiste em "espionar" a casa e, principalmente, a vida, não rendido, não ido. Apresenta-se sempre que lhe é possível. Ele é, na verdade, testemunha de que o velho está vivo. Sua existência está intersecionada a do outro.
Os "arranjos do tempo", entretanto, não se dão apenas no nível da narrativa, realizam-se mais ainda na linguagem. Atentemos para que o fato de que o texto está dividido em oito parágrafos, os quatro iniciais com verbos no presente. Só pertencem ao passado – “foram guardados” – os "ossos limpos" do pai e da mãe, os quais, mesmo assim, hoje, "estão enterrados".
Os quatro parágrafos finais levam ao futuro, que parece ser o tempo da realização. Na verdade, me parece ser o tempo padrão, o tempo do menino, o qual, não sendo passado, nem presente, é o futuro, em que será "o avô da poltrona", morando com a mulher, sem sua ilusória vida de presente. É o futuro, enfim, nesse jogo com os outros tempos, que os reunirá, a todos, aos ossos de pai e mãe, "no outro lado da cidade".

Para ver o texto anterior da talentosa escritora e a respectiva análise, clique aqui
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domingo, 4 de julho de 2010

"Coisa de homem" - Palavras sobre palavras 19

Eliane F.C.Lima

Resolvi, neste 4 de julho, fazer uma brincadeira e pegar também o tema “coisa de homem”, dessa vez dando voz aos poetas. E escolhi textos, cujo foco sempre é uma presença de mulher sob essa visão masculina. E, como veremos, os revelados são eles. Pena que a pesquisa, pelo pouco tempo disponível entre os dois domingos, não pudesse ser mais abrangente. Talvez surpresas maiores pudessem surgir.


Relatividade da mulher amada

Murilo Mendes

Eu gosto de você com uma força bruta que não
[entendo bem.
Gosto quase tanto como de mim.
Mas que pena você não ser também minha filha.
Que pena você não ser minha filha, minha irmã e
[minha mãe, tudo ao mesmo tempo.
(Poesia. Rio de janeiro: Agir, 1983.
Coleção Nossos Clássicos)

O “que pena você não ser”, nessa relação amorosa, chamou, imediatamente, minha atenção: o eu lírico desejoso de um ser amado que não existe. Inicialmente, ele ainda admite um “também” (3o verso), que resguarda a condição amorosa e sexual de sua amada. Mas, no verso seguinte, a eliminação do “também”, prende-se aos três itens familiares, ao fechar o poema. E a mulher, em sua condição de amada, é mais do que relativizada – ver o título – é anulada.
Uma mulher, em uma relação amorosa, deveria preencher, exatamente, aquelas lacunas deixadas por uma filha, uma irmã, uma mãe para um homem adulto. Mas, aqui, o desejo vai, exatamente, no caminho contrário. A incompletude da mulher desejada a ser satisfeita por facetas não desejáveis. Ou há, em sua procura, o desejo da certeza, da proteção, da segurança do amor da filha, da irmã, da mãe?

Mulher

Murilo Mendes

Mulher, o mais terrível e vivo dos espectros,
Por que te alimentas de mim desde o princípio?
Em ti encontro as imagens da criação:
És pássaro e flor, pedra e onda variável...
E, mais que tudo, a nuvem que volta e se consome.
Dormir, sonhar – que adianta, se tu existes?
Se fosses forma, somente! És ideia também.
Ah, quando descerá sobre mim a paz antiga.
(Poesia. Rio de janeiro: Agir, 1983.
Coleção Nossos Clássicos)

Observemos os dois primeiros versos: ali ressalta o atributo “terrível” para mulher e a expressão “te alimentas de mim”, que não é esclarecido ao longo do poema, embora pareça um ser obsessivamente presente para esse eu lírico. Por quê? Peço a quem lê que traga esses dois elementos, quando ler o segundo poema a seguir.
Observemos, ainda, o desejo claro: “Se fosses forma, somente.” É preciso chamar a atenção para o fato de esse verso poder ser lido de dois modos diferentes: “Se me atraísses apenas fisicamente, mas estás presente também em meu pensamento.” Ou ainda: “Se fosses apenas uma forma de beleza, mas pensas também”, o que, cá entre nós, seria bem preocupante. Em nome da paz, fico com a primeira opção. No entanto temos, de novo, a não satisfação plena em relação à mulher.

A esposa

Vinicius de Moraes

Às vezes, nessas noites frias e enevoadas
Onde o silêncio nasce dos ruídos monótonos e
[mansos
Essa estranha visão de mulher calma
Surgindo do vazio dos meus olhos parados
Vem espiar minha imobilidade.
E ela fica horas longas, horas silenciosas
Somente movendo os olhos serenos no meu rosto
Atenta, à espera do sono que virá e me levará com ele.
Nada diz, nada pensa, apenas olha – e o seu olhar
[é como a luz
De uma estrela velada pela bruma.
Nada diz. Olha apenas as minhas pálpebras que
[descem
Mas que não vencem o olhar perdido longe.
Nada pensa. Virá e agasalhará minhas mãos frias
Se sentir frias suas mãos.
Quando a porta ranger e a cabecinha de criança
Aparecer curiosa e a voz clara chamá-la num reclamo
Ela apontará para mim pondo o dedo nos lábios
Sorrindo de um sorriso misterioso
E se irá num passo leve
Após o beijo leve e roçagante...
Eu só verei a porta que se vai fechando
[brandamente...
Ela terá ido, a esposa amiga, a esposa que eu
[nunca terei.
(Vinicius de Moraes – Obra poética – Rio de Janeiro:
Cia José Aguilar)

Aqui temos, de novo, uma mulher sonhada, idealizada. Até o 17o verso, essa mulher, me parece, tem uma atitude inteiramente maternal em relação ao eu lírico e esse devolve-lhe uma atitude, correspondentemente, infantil, embora o título do poema seja “esposa”. É intrigante o trecho “Virá e agasalhará minhas mãos frias/Se sentir frias suas mãos.”, cuidados, todos nós lembramos bem, dignos de mãe.
A partir de “Quando a porta ranger... “, pode-se imaginar a mãe que sai para o “reclamo” de um outro filho.
E a conclusão também é intrigante: “... a esposa que eu nunca terei.” Por quê? É impossível a gente não retornar àquele “Que pena você não ser” do primeiro poema de Murilo Mendes. Ainda em Vinicius, há um eu que sonha com uma esposa/mulher que não corresponde à realidade. Ou que tem expectativas, no mínimo, sui generis.

Poema para todas as mulheres

Vinicius de Moraes

No TEU BRANCO SEIO eu choro.
Minhas lágrimas descem pelo teu ventre
E se embebedam do perfume do teu sexo.
Mulher, que máquina és, que só me tens desesperado
Confuso, criança para te conter!
Oh, não feches os teus braços sobre a minha
[tristeza, não!
Ah, não abandones a tua boca à minha inocência, não!
Homem sou belo
Macho sou forte, poeta sou altíssimo
E só a pureza me ama e ela é em mim uma cidade e
[tem mil e uma portas.
Ai! teus cabelos recendem à flor da murta
Melhor seria morrer ou ver-te morta
E nunca, nunca poder te tocar!
Mas, fauno, sinto o vento do mar roçar-me os braços
Anjo, sinto o calor do vento nas espumas
Passarinho, sinto o ninho nos teus pelos...
Correi, correi, ó lágrimas saudosas
Afogai-me, tirai-me deste tempo
Levai-me para o campo das estrelas
Entregai-me depressa à lua cheia
Dai-me o poder vagaroso do soneto, dai-me a iluminação
[das odes, dai-me o cântico dos cânticos
Que eu não posso mais, ai!
Que esta mulher me devora!
Que eu quero fugir, quero a minha mãezinha, quero
[o colo de Nossa Senhora!
(Vinicius de Moraes – Obra poética – Rio de Janeiro:
Cia José Aguilar)

No segundo poema de Vinicius, o título “Poema para todas as mulheres” elimina uma mulher definida, única, como interlocutora do eu poético e nos remete, de novo, para uma imagem geral de mulher. E agora esse “Confuso, criança” eu lírico não deixa mais dúvidas, mesmo com o “Homem sou belo/ Macho sou forte, poeta sou altíssimo” adiante.
Se no poema anterior do mesmo poeta, uma “imobilidade” assexuada, compatível com o sentimento de filho, caracterizava o ser enunciador, no segundo, a luxúria, que se acaso vislumbrou, acorda do fundo do inconsciente desse eu, uma imagem castradora e punitiva: “Que eu não posso mais, ai!/Que esta mulher me devora!”. E parece impossível a quem lê não se lembrar dos versos “Mulher, o mais terrível e vivo dos espectros,/Por que te alimentas de mim desde o princípio?”, no segundo poema de Murilo Mendes.
Esse ser feminino aponta para o que em psicologia se chama a “Mãe terrível” –“Que esta mulher me devora!” –, que é uma imagem negativa do arquétipo da mãe, segundo o estudioso da mente C. G. Jung, e que pode surgir, como imagem, nos sonhos, mitos e contos... e poemas masculinos, agora constatamos. A Medusa é um exemplo típico dessa faceta negativa da mulher/mãe devoradora.
E é em sua contraparte positiva - “... quero a minha mãezinha” –, maximizada na imagem espiritual – “... quero o colo de Nossa Senhora! –, desejoso de reconciliação com a imagem materna e com sua consciência, que esse eu lírico se refugia.

Desdobramento de Adalgisa

C. Drummond de Andrade

Os homens preferem duas.
Nenhum amor isolado
habita o rei Salomão
e seu amplo coração.
Meu rei, a vossa Adalgisa
virou duas diferentes
para mais a adorardes.
Sou loura, trêmula, blândula
e morena esfogueteada.
Ando na rua a meu lado,
colho bocas, olhos, dedos
pela esquerda e pela direita.
Alguns mal sabem escolher,
outros misturam depressa
perna de uma, braço de outra,
e o indiviso sexo aspiram,
Como se as duas fossem uma,
quando é uma que são duas.

Adalgisa e Adaljosa,
parti-me para vosso amor
que tem tantas direções
e em nenhuma se define
mas em todas se resume.
Saberei multiplicar-me
e em cada praia tereis
dois, três, quatro, sete corpos
de Adalgisa, a lisa, fria
e quente e áspera Adalgisa,
numerosa qual Amor.
(...)

Sou Adalgisa de fato,
pensais que sou minha irmã
ou que me espelho no espelho.
Amai-me e não repareis!
Uma Adalgisa traída
presto se vinga da outra.
Eu mesma não me limito:
se viro o rosto me encontro,
quatro pernas, quatro braços,
duas cinturas e um
só desejo de amar.
Sou a quádrupla Adalgisa,
sou a múltipla, sou a única
e analgésica Adalgisa.
Sorvei-me, gastai-me e ide.
Para onde quer que vades,
o mundo é só Adalgisa.
(C. D. Andrade - Reunião:10 livros de poesia, 9. ed. Rio de Janeiro:
J.Olympio,1978)

Aqui, um discurso malandramente construído, dá voz a uma mulher. “Os homens preferem duas.” é Adalgisa quem diz. É ela, esse eu poético feminino, quem vai, por sua conta e risco, emitindo seus conceitos e caracterizações a respeito dos homens: “Alguns mal sabem escolher,/outros misturam depressa/perna de uma, braço de outra... ”.
Impossível, contudo, não reparar nessa Adalgisa, que desdobrada, é vista, ainda, como uma só em todas, retornando à velha concepção de mulher única, de "alma feminina", como se as mulheres também não fossem plurais.

A mulher e a casa

J. Cabral de Melo Neto

Tua sedução é menos
de mulher do que de casa;
pois vem de como é por dentro
ou por detrás da fachada.

Mesmo quando ela possui
tua plácida elegância,
esse teu reboco claro,
riso franco de varandas,

uma casa não é nunca
só para ser contemplada;
melhor: somente por dentro
é possível contemplá-la.

Seduz pelo que é dentro,
ou será, quando se abra;
pelo que pode ser dentro
de suas paredes fechadas;

pelo que dentro fizeram
com seus vazios, com o nada;
pelos espaços de dentro,
não pelo que dentro guarda;

pelos espaços de dentro:
seus recintos, suas áreas,
organizando-se dentro
em corredores e salas,

os quais sugerindo ao homem
estâncias aconchegadas,
paredes bem revestidas
ou recessos bons de cavas,

exercem sobre esse homem
efeito igual ao que causas:
a vontade de corrê-la
por dentro, de visitá-la.
(J. C. M. Neto - Antologia poética -4. ed. Rio de Janeiro, J. Olympio,
1978)

É o poema de Cabral, obra de rara beleza, que redime o discurso desses eus masculinos sobre as mulheres, nessa sua imagética tão concreta, que é a mais marcante característica do escritor, criando-lhe uma metáfora inédita e magnífica: mulher/casa.
E lindamente afirma que “uma casa não é nunca/ só para ser contemplada”. Valoriza-se, mais do que a “fachada”, o por dentro, vocábulo que aparece no poema nove vezes, três em uma só estrofe, numa franca ênfase ao interior de uma mulher, que tanto pode ser uma visitação física, no sentido sexual, quanto naquilo que um ser tem em seu interior. E a gente, finalmente, se apazigua daquele lamento do eu lírico do segundo poema “Se fosses forma, somente! És ideia também.”
E é um eu seguro, tranquilo, homem adulto, afinal, que confessa “a vontade de corrê-la/ por dentro, de visitá-la.”