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sábado, 31 de julho de 2010

O paraíso perdido - Palavras sobre palavras 21

Eliane F.C.Lima

Nossa reflexão de hoje será sobre um tempo/espaço, normalmente, grato a todo ser humano, embora esse sentimento de felicidade já comece a ser considerado um mito. Vamos visitar alguns poetas e ver como esse tema se instaura.


Saudades

Narcisa Amália

Meus funerários gemidos
Vão legando à imensidade
Um vasto arcano – a tristeza
Um canto eterno – a saudade! ...
Carlos Ferreira


Tenho saudades dos formosos lares
Onde passei minha feliz infância;
Dos vales da dulcíssima fragrância
Da fresca sombra dos gentis palmares.

Minha plaga querida! Inda me lembro
Quando através das névoas do ocidente
O sol nos acenava adeus languente
Nas balsâmicas tardes de setembro;

Lançava-me correndo na avenida
Que a laranjeira enchia de perfumes!
Como escutava trêmula os queixumes
Das auras na lagoa adormecida!

Ai! Que seria do mortal aflito
Que tomba exangue à provação cruenta,
Se no marco da estrada poeirenta
Não divisasse os gozos do infinito ?!...

Eu era de meu pai, pobre poeta,
O astro que o porvir lhe iluminava
De minha mãe, que louca me adorava,
Era na vida a rosa predileta!

Mas...

... tudo se acabou. A trilha olente
Não mais percorrerei desses caminhos...
Não mais verei os míseros anjinhos,
Que aqueciam na minha a mão algente!

Correi, ó minhas lágrimas sentidas,
Do passado no rórido sudário
Bem longe está o cimo do Calvário
E já as plantas sinto tão feridas!...

Abrem-me n’alma as dores da saudade
Um sulco de profundas agonias...
Morreram-me pra sempre as alegrias...
Só me resta um consolo... a eternidade!


O texto de Narcisa Amália introduz como enfoque a infância, tema que, embora caro ao Romantismo, é constante na poesia de qualquer estilo de época, o que demonstra suas implicações com o psiquismo humano. Não é necessário muito conhecimento de psicologia para se perceber que, para as pessoas que passaram por essa fase de forma saudável, é preciso esclarecer, esse tempo passa a representar “o tempo do paraíso”, do qual se é expulso pela própria vida no tempo de adulto, quando a realidade, finalmente, nos bate à porta. Feliz ou não, a criança sempre tem uma visão bastante especial e imaginosa daquela realidade.
Nos poemas que têm como seu objeto a primeira parte da vida, há um entrosamento completo entre tempo e espaço, os dois como duas faces dessa época mágica, sem uma separação manifesta, pelo menos por esses sujeitos poéticos.
Nesse universo textual, estabelece-se uma oposição, de forma nítida, entre o “tempo/lugar paraíso” – a infância – e a “queda” – a idade adulta –, para se aproveitar a terminologia bíblica.
E me parece interessante trazer como argumento o pensamento de C. Gustav Jung (para ler sobre ele em outra postagem deste blogue clique), através das palavras de Murray Stein (Jung – o mapa da alma – Uma introdução. Trad. Álvaro Cabral. São Paulo: Cultrix /s.d./), lembrando que seu conceito de incesto foi o ponto de partida da ruptura entre o psicanalista e seu amigo Freud:

Freud viu no incesto um desejo inconsciente de possuir sexualmente a mãe real, num sentido literal. Jung, por outro lado, interpretou simbolicamente o incesto como um anseio geral de permanência no paraíso da infância. Tal anseio torna-se mais pronunciado quando uma pessoa enfrenta um assustador desafio na vida, crescer, adaptar-se a um meio propício ao estresse. A vontade é de subir na cama e tapar a cabeça com os lençóis. A “mãe” desejada converte-se, na interpretação simbólica de Jung, no desejo de regressar à dependência infantil, à infância, à inconsciência e irresponsabilidade. (pág. 66)

Na verdade, argumentou Jung, a sexualidade tem muito pouco a ver com incesto. O incesto é simbolicamente significante, não biologicamente desejado. (pág. 67)

O tema do sacrifício sobre o qual Jung se alonga na Psicologia do Inconsciente é uma peça central em seus pensamentos sobre o crescimento da consciência e as necessidades de desenvolvimento da maturidade pela personalidade humana. Tivessem os humanos que permanecer escravos do desejo e comportamento incestuosos, simbolicamente falando, não haveria movimento psíquico para fora da infância. O paraíso seria o lar. (pág. 67)

O desejo incestuoso de eterna infância tinha que ser sacrificado coletivamente nos tempos primordiais, e tem que ser sacrificado individualmente por toda a pessoa moderna, a fim de promover um movimento na consciência voltado para a aquisição de uma consciência cada vez maior. (pág. 67)

É o próprio Jung, que afirma em sua autobiografia:

Para mim, o incesto, só em casos extremamente raros, constitui uma complicação pessoal. Na maior parte dos casos, representa um conteúdo altamente religioso e é por este motivo que desempenha um papel decisivo em quase todas as cosmogonias e em inúmeros mitos. (Memórias, sonhos, reflexões. Reunidas e editadas por Aniela Jaffé. Trad. Dora Ferreira da Silva. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. /s.d./pág. 149).

Infância

Cecília Meireles

Levaram as grades da varanda
por onde a casa se avistava.
As grades de prata.

Levaram a sombra dos limoeiros
por onde rodavam arcos de música
e formigas ruivas.

Levaram a casa de telhado verde
com suas grutas de conchas
e vidraças de flores foscas.

Levaram a dama e o seu velho piano
que tocava, tocava, tocava
a pálida sonata.

Levaram as pálpebras dos antigos sonhos,
deixaram somente a memória
e as lágrimas de agora.

Um lugar de delícias, onde se criavam os “antigos sonhos”: uma natureza presente, o entorno de uma casa de magia – casa de telhado verde, grutas de conchas, vidraças de flores foscas, uma dama, seu velho piano, a pálida sonata –, reconstituído pela memória.
Um tempo, onde todas as imagens são forjadas por uma imaginação que cria sua própria realidade. Ver que o verbo “levaram”, na terceira pessoa, sublinha um sujeito indeterminado, mas que se apresenta, contudo, como um agente concreto, culpado pela perda do paraíso. Essa personificação da ação do tempo tem muito da visão infantil, da não aceitação e incompreensão do abstrato.

A casa grande

Mário Quintana

… mas eu queria ter nascido numa dessas
[casas de meia-água
com o telhado descendo logo após as
[fachadas
só de porta e janela
e que tinham, no século, o carinhoso apelido
de cachorros sentados.
Porém nasci em um solar de leões.
(… escadarias, corredores, sótãos, porões,
[tudo isso...)
Não pude ser um menino da rua...
Aliás, a casa me assustava mais do que o
[mundo lá fora.
A casa era maior do que o mundo!
E até hoje
– mesmo depois que destruíram a casa grande –
até hoje eu vivo explorando os seus esconderijos...

Esse sujeito poético do texto de Quintana traz um novo aspecto a ser analisado: a casa da infância – “... a casa me assustava mais do que o mundo lá fora.” – já prenuncia o medo do adulto – atentar para os dois últimos versos do poema. É surpreendente o desejo que está escondido na metáfora de “casas de meia-água”, “só de porta e janela”: a pequenez do espaço afugenta, puro resguardo, todos os fantasmas e reproduz o ninho primitivo do ser humano, a proteção do útero. Mas, ainda aqui, é para esse “tempo idealizado” que se volta esse eu – “E até hoje...”.


Infância

Carlos Drummond de Andrade

A Abgar Renault

Meu pai montava a cavalo, ia para o campo.
Minha mãe ficava sentada cosendo.
Meu irmão pequeno dormia.
Eu sozinho menino entre mangueiras.
lia a história de Robinson Crusoé,
comprida história que não acaba mais.

No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu
a ninar nos longes da senzala – e nunca se esqueceu
chamava para o café.
Café preto que nem a preta velha
café gostoso
café bom.

Minha mãe ficava sentada cosendo
olhando para mim:
- Psiu...Não acorde o menino.
Para o berço onde pousou um mosquito.
E dava um suspiro... que fundo!

Lá longe meu pai campeava
no mato sem fim da fazenda.

E eu não sabia que minha história
era mais bonita que a de Robinson Crusoé.

Orfandade

Adélia Prado

"Meu Deus,
me dê cinco anos.
Me dê um pé de fedegoso com formiga preta,
me dê um Natal e sua véspera,
o ressonar das pessoas no quartinho.
Me dê a negrinha Fia pra eu brincar,
me dê uma noite pra eu dormir com minha mãe.
Me dê minha mãe, alegria sã e medo remediável,
me dê a mão, me cura de ser grande.
Ó meu Deus, meu pai,
meu pai."

Nos dois últimos poemas – chamemos a atenção de que Adélia Prado é a única poeta ainda viva do grupo aqui postado –, a presença da mãe carinhosa e protetora se explicita, ecoando o pensamento de Jung.
Para o sujeito drummoniano, essa figura materna – é impossível não se reparar no pai posto, desde o início do poema, “Lá longe...” – se duplica na “preta velha” ou em “uma voz que aprendeu a ninar...”, lindíssima metonímia construída. E os adjetivos “gostoso” e “bom” vão abrindo caminho para o final do poema.
Porém, se a adjetivação máxima de Narcisa Amália – “formosos lares”, “feliz infância”, “dulcíssima fragrância”, “gentis palmares”, “plaga querida”, “balsâmicas tardes” – é evitada por um escritor do Modernismo, é interessante se atentar para o recurso usado: se a história de Robinson Crusoé, para o sujeito menino reconstituído pela memória, tem o mesmo valor de todos os adjetivos usados no primeiro poema, imagine-se a história de sua infância que “... era mais bonita que a de Robinson Crusoé”. Por um caminho diverso, chega-se à mesma louvação da fase de criança.
O texto de Adélia é a culminância do desejo de negação da idade adulta. Os versos “... me dê uma noite pra eu dormir com minha mãe./Me dê minha mãe, alegria sã e medo remediável” correspodem, em uma linguagem poética, ao primeiro trecho de Murray Stein, acima transcrito, com perfeição. Em “me cura de ser grande” o sujeito lírico, obsessivamente, manifesta-se já na linguagem infantil, da qual se apropria, tal é sua aspiração da volta ao paraíso – "Meu Deus,/me dê cinco anos.”
Podemos ponderar que, individualmente, me parece, o ser humano não abandonou inteiramente esse desejo simbólico de incesto – refiro-me aqui àquele “anseio geral de permanência no paraíso da infância”, tão bem descrito acima –, o que transparece, ao longo dos vários períodos literários, escondendo-o apenas socialmente. A cada novo susto, no entanto, a época de refúgio e aconchego volta a povoar seu imaginário.

Clique aqui para visitar Conto-gotas e aqui para visitar Poema Vivo.

2 comentários:

Carmem Teresa disse...

Olá, Eliane... Concordo integralmente com sua ponderações e com os poetas citados: a fuga romântica para a infância é um atributo humano em qualquer era histórica e/ou movimento literário...Não nos esqueçamos de que a noção de consciência da individualidade do eu também surge nesse período (Não sou psicóloga, mas já me disseram que esse proceso já está estabelecido por volta dos 7 anos, juntamente com nossa personalidade e carater).Ao ler esses textos me ocorre justamente a idéia de que os autores estão resgatando essa idade da descoberta do eu ( não os sinto como se relatassem idades mais precoces ou mais velhas do que esse período nesses textos). Estabelecemos os primeiros contatos do 'eu' em separação com o 'mundo', no caso a família, a moradia... Como poderíamos ser adultos se não tivéssemos essas memórias ?
Adorei sua análise desta semana.

ju rigoni disse...

Regredir para respirar, reencontrar o lugar onde estão guardadas energias das quais não se pode ou não se deve abrir mão. Impulso que se assemelha a uma metáfora enriquecedora, - extremamente significativa no que se refere a comparação que escancara o tempo em que não se tem olhos de ver, reconhecendo seu papel, sua real importância para os caminhos e descaminhos da vida.

Além da Narcisa, que vou conhecendo aos poucos através de suas postagens, eu não conhecia esse poema da Adélia. Que maravilha!

Bjs, Eliane. E inté!