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sexta-feira, 4 de julho de 2014

Carolina Maria de Jesus: brasileira, negra, pobre... e humana. O retrato de uma escritora em sua obra – parte I

Da esquerda para a direita: Carolina Maria de Jesus, Audálio Dantas e Ruth de Souza na Favela do Canindé / Divulgação/Acervo IMS. (Ver nota 1 abaixo.)


Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais)
 
Como o prometido, vamos conversar sobre a escritora Carolina Maria de Jesus (1914-1977), que nasceu em Sacramento, Minas Gerais, numa comunidade rural, onde sua mãe era meeira. Em março, completou-se cem anos de seu nascimento. Estudou durante dois anos em uma escola paga pela mulher de um fazendeiro, mas não teve contato com seu pai, porque ele era um homem casado.
Como sua mãe morresse em 1937, resolveu emigrar para São Paulo e passou a residir na Favela do Canindé, hoje inexistente, onde construiu um precário barraco.
Teve três filhos de pais diferentes, mas se negou a casar e a ficar dependente de qualquer homem. Criou os filhos, catando papel e tudo mais que encontrasse para vender.
Apesar do pouco estudo, Carolina revelou logo sua tendência: era inteligente, tinha um apurado senso crítico, lia os livros que encontrava no lixo e passou a escrever um diário – trechos de 1955, 1958, 1959 e fim em 1960 –, que foi o material que deu ensejo à publicação do livro Quarto de despejo, metáfora criada por ela para referir-se à favela em relação à metrópole, nome escolhido pelo jornalista Audálio Dantas, que casualmente a conheceu e conseguiu publicar seu livro em 1960. Alguns acusam o jornalista de ter agido sobre a obra, embora ele alegasse que apenas suprimira trechos repetitivos.
A quem se interessar, há muito material sobre a escritora na Internet, inclusive no Youtube, mas remeto a um vídeo naquele site, denominado "Diário de Bitita", mesmo nome de seu livro póstumo, onde se pode ver a filha Vera Eunice, já adulta – personagem presente na obra –, o que ilustraria o estudo sobre a escritora: link
Além do famoso diário, Carolina M. de Jesus também escreveu Pedaços de fome (1963), Provérbios (1963) e o já citado Diário de Bitita (1982), que não conseguiram o sucesso do primeiro.
Quarto de despejo, além de todas as características que serão analisadas a seguir, é o testemunho de seres sobreviventes, que lutam para não morrer de fome, embora vivam dentro de uma cidade importante como São Paulo. Sob esse aspecto, então, o assunto perde sua feição de questão particular –  população brasileira, pobre e quase toda negra –, e passa a ser uma narrativa  de qualquer ser submetido a condições subumanas de vida, suas reações, seus mecanismos de sobrevivência, ou seja, é uma reflexão sobre a condição humana diante da adversidade.
Mas há outras questões a serem levantadas. Uma delas é o aspecto documental da história brasileira, que se reflete nas vidas individuais de cada elemento do povo. Nas páginas do livro, a pessoa leitora encontra o mesmo enfoque que a coleção História da vida privada defende: através da escrita testemunhal de uma mulher pertencente à fatia mais pobre da população, alijada das decisões, traça-se um perfil e uma perspectiva radicalmente opostos aos pontos de vista elitistas que tradicionalmente marcam os momentos históricos do país e são a eles diretamente ligados. Assim, os mesmos fatos que frequentam as análises históricas dos intelectuais, em seus aspectos sociais, econômicos e políticos, são desnudados através de um viés tanto mais inocente, quanto mais cruel da realidade da época.
Quarto de despejo aponta como a história não é algo abstrato, porém, como apontou Marx, extremamente concreto em seus efeitos, principalmente sobre as camadas mais desfavorecidas como a que pertencia Carolina de Jesus. Transcrevo os trechos sem modificações gráficas, a não ser a atualização de alguns acentos.


[…] O tenente interessou-se pela educação dos meus filhos. Disse-me que a favela é um ambiente propenso, que as pessoas tem mais possibilidades de delinquir do que tornar-se util a patria e ao pais. Pensei: Se ele sabe disto, porque não faz um relatório e envia para os politicos? O Senhor Janio Quadros, o Kubstchek e o Dr. Adhemar de Barros? Agora falar para mim, que sou uma pobre lixeira. Não posso resolver nem as minhas dificuldades.
… O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora. (p. 22-23)


… Chegou um caminhão aqui na favela. O motorista e o seu ajudante jogam umas latas. É linguiça enlatada. Penso: É assim que fazem esses comerciantes insaciáveis. Ficam esperando os preços subir na ganancia de ganhar mais. E quando apodrece jogam fora para os corvos e os infelizes favelados. (p. 26)

… Nas ruas e casas comerciais já se vê as faixas indicando os nomes dos futuros deputados. Alguns nomes já são conhecidos. São reincidentes que já foram preteridos nas urnas. Mas o povo não está interessado nas eleições, que é o cavalo de troia que aparece de quatro em quatro anos. (p. 35 - Ver nota 2 abaixo.)

… Mas eu já observei os nossos políticos. Para observá-los fui na Assembleia. A  sucursal do Purgatorio, porque a matriz é a sede do Serviço Social, no palacio do Governo. Foi lá que eu vi ranger de dentes. Vi os pobres sair chorando. E as lagrimas dos pobres comove os poetas. Não comove os poetas de salão. Mas os poetas do lixo, os idealistas das favelas, um expectador que assiste e observa as trajedias que os politicos representam em relação ao povo. (p. 44)

… Os preços aumentam igual as ondas do mar. Cada qual mais forte. Quem luta com as ondas? Só os tubarões. Mas o tubarão mais feroz é o racional. É o terrestre. É o atacadista. (p.50)

Que dilema triste para quem presencia. As pobres querendo ganhar. E o rico não queria dar. Ele dá só os pedaços de bolacha. E elas saem contentes como se fossem a Rainha Elizabethe da Inglaterra quando recebeu os treze milhões em joias que o presidente Kubstchek lhe enviou como presente de aniversario. (p.52 – Ver nota 3 abaixo.)

[…] Encontrei o Sansão. O carteiro. Ele ainda não cortou os cabelos. Ele estava com os olhos vermelhos. Pensei: será que ele chorou? Ou está com vontade de fumar ou está com fome. Coisas tão comuns aqui no Brasil. Fitei o seu uniforme descorado. O senhor Kubstchek que aprecia pompas devia dar outros uniformes para os carteiros. (p. 66)

[…] Todos falavam. A conversa não me interessava, mas eu fiquei. Falavam nas brigas. No jogo de foot-bol na Suissa. E na pretenção do homem ir na lua. Uns diziam que o homem vai. Outros que não vai. E eu quando ouvi o vai não vai, já fiquei pensando numa briga, porque aqui na favela tudo inicia bem e termina com brigas. (p. 65)

Parei para conversar com a Dona Anita. Ela está preocupada com as notícias de guerra. Que a guerra é ingrata para os jovens. Que é pungente a condição dos pracinhas. Que herois são os jogadores de fut-bol. Os pracinhas são venerados pelas mulheres. É que os pracinhas são nossos filhos. (p.80)  


O último trecho transcrito, embora provavelmente não tenha sido essa a intenção da escritora, contém uma ironia profunda e rascante entre a realidade de todos e a realidade individual.  

Hoje amanheceu chovendo. A Vera, ontem pois dois vermes pela boca. Está com febre. Hoje não vai ter aulas, em homenagem ao Príncipe do Japão. (p.55)

Em próxima postagem, o estudo sobre essa escritora tão especial em seu papel de mulher e pobre continuará.


Nota 1: Em 1961, o livro Quarto de despejo foi adaptado para o teatro pela escritora gaúcha Edy Lima. A peça, dirigida por Amir Haddad, teve Ruth de Souza no papel de Carolina. 
Nota 2:  É surpreendente a metáfora do "cavalo de Troia" criada pela escritora: o cavalo de Troia teria sido um presente que, na verdade, continha a traição dentro dele.
Nota 3: Comentários diferentes sobre esse "presente" do ex- presidente Kubitschek podem ser vistos no link e no link.

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