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domingo, 16 de dezembro de 2012

O porto lírico de Líria Porto

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais - RJ)

A professora e poeta Líria Porto é mineira de Araguari, embora more em Araxá. Publicou o livro Borboleta desfolhada (Canto escuro editora, Portugal, 2009) e De lua (Corpos editora, Portugal), em editoras de Portugal, mas sua atuação se dá mais fortemente na Internet em blogues como “Tanto mar”, “Putas resolutas”, “Balaio porreta”, “ogatodaodete”. Participa também de outros espaços virtuais da qualidade de “Germina literatura”, “Cronópios" e "Escritoras suicidas". Podemos encontrá-la, também, no blogue "Penetra surdamente no reino das palavras" (link).
Seus textos são compostos numa linguagem bastante simples e me trazem a paz lírica também sentida com a leitura de Mário Quintana, o que não quer dizer que, usando essa linguagem simples, não consiga extrair dela efeitos poéticos inimagináveis. 

morgana 

Líria Porto 

comer dormir e sonhar 
usar chinelo de pano 
roupa larga leque de abano 
rir da morte das desgraças 
andar de cara lavada 
deixar que a vida nos faça 
afagos de vez em quando 

e se alguém não gostar 
cobrar de ti algo além 
não respondas ri e entendas 
as pessoas exigentes 
correm atrás de si mesmas 
e demoram a aprender 
o paraíso é o presente


pá lavra e enxada 

Lívia Porto

mato e morro
morro e mato
e não é suicídio
nem assassinato

é mato verde
é morro alto
é viver a vida 
longe do asfalto


Respingos

Líria Porto 

e quando a chuva caía
eu ia com a enxurrada
ia beirando a calçada
descia junto com a flor
e ria a risada d'água
aquela alegria d'água
brincava que era a flor
mas depois sentia frio
lembrava-me então do rio
da flor que o rio levou*
e os meus olhos choviam
eu era como a enxurrada
fui ficando poça d'água
que o tempo choveu
chorou



No poema “Respingos”, os versos “lembrava-me então do rio/da flor que o rio levou”, parecem trazer uma outra voz, a de Gonçalves Dias, em seu poema “Não me deixes, não!” – mania de professora de literatura, em que persistem sempre versos já lidos? –, os versos de agora sem a vibração explicitamente trágica, claro, característica do Romantismo, que era o estilo de época daquele escritor. Se no poema de Líria Porto – pontuação contida, ao contrário do outro – esse eu poético, parece definir-se por um outro tom, pois “ria a risada d'água” e sentia “aquela alegria d'água”, a princípio, tornado assimilação total com a poça d'água – lágrimas, enfim –, que o tempo chorou, aproxima-se, por via indireta, um pouco mais do lamento romântico anterior. Ao final da apresentação dos textos da poeta, transcrevo o texto do escritor romântico – ver o asterisco –, que é bonito e vale a pena ser lido.


Mas a poética de Líria Porto também paga seu tributo à presença masculina. O primeiro desses dois textos escolhidos – até por uma possível sugestão do título – pode divisar, na leitura, um tema homossexual. Essa leitura, contudo, demonstraria bastante obviedade e pobreza significativa. 
Um segundo patamar de leitura vai em outro sentido e visualiza o apagamento da visão estereotipada de gênero. Esse impulso iconoclasta começaria desde o título, pois, diferentemente da primeira interpretação dada ao título, descobre ali um jogo brincalhão de polissemia, pois chama para o texto a realidade dura dos termos contábeis e, por outro lado, introduz a eterna e clichê oposição “atividade”, normalmente atribuída a homens e “passividade”, característica imputada a mulheres. O corpo do texto, no entanto, desconstrói completamente essa visão culturalmente sedimentada, atribuindo a um ele a suavidade, a doçura, e ao eu supostamente feminino a secura oposta. A troca de papéis termina igualmente abençoada. 

ativos e passivos

Líria Porto

falo seco de arranco coisa assim de capiau
ele não - é sedoso nas palavras tem veludo na voz
gestos de moça

apesar da diferença damos-nos bem
ele faz papel de dama
eu viro homem

No segundo poema, onde é introduzido o elemento masculino, a sensualidade transita todo o texto – não fosse o tema o dançar um tango! – e se desenvolve numa oposição: se a expressão “rastrear o cheiro” tem muito do instinto animal, de cio, a exortação de “com elegância beber-lhe o espírito” instaura o traço humano no ato lúdico. 

passionais 

Líria Porto

para se dançar um tango
é preciso mais que técnica 
música luzes

há que se rastrear o cheiro o olhar
a pele as pernas a sombra do parceiro
e com elegância beber-lhe o espírito


No terceiro poema, essa presença masculina entra colateralmente como comparação: o tema do texto é o raio de sol. Mas quem chega ao final da leitura, aos três últimos versos, não tem tanta certeza de que o tema é esse. Volta ao princípio do poema – mesmo o título com seu significado de “desviar-se do bom caminho” já parece ter um novo valor – e refaz a leitura de um outro modo, desconfiando de que, na verdade, o sol entra no tema apenas de penetra.


descarrilamento 

Líria Porto

um raio de sol 
esquiva-se entre as galhas da mangueira 
engraça-se pelas folhas novas 
tenras cor-de-rosa 

encabula-se esconde-se 
depois reaparece 
feliz aprumado 
igual homem casado 
ao chegar em casa 
após o serão 



Impossível não se encontrar em Líria Porto o tema constante em todos os poetas, que se supõe sobe à garganta e vaza pelos dedos, sem poder ser evitado: o discorrer sobre o próprio ato poético. E esse ato é dor, é lavra penosa.

esqueleto 

Líria Porto

escrevo
depois faço a poda

só sobram
os ossos descarnados
do poema


dor

Líria Porto

escrevo num soco
única palavra
tem ela três letras
depois da pancada

e esse grunhido
não faz um poema
é ele o gemido
da minha pena


poeminha

um barquinho na enxurrada
e a poesia
          nada


O domínio da linguagem, do fazer lírico, como se constatou, é marcante na criação de Líria Porto e os efeitos conseguidos são poesia viva.


estrelada

Líria Porto

a noite mastiga o escuro
e cospe as sementes


o passarinho

Líria Porto

não cobra um tostão
pela serenata
de todas as manhãs


definitivo

Líria Porto

foi triste
quanto partiste
levaste a estrada.



*Não me deixes!

Gonçalves Dias 

Debruçada nas águas dum regato
A flor dizia em vão
À corrente, onde bela se mirava:
"Ai, não me deixes, não!
"Comigo fica ou leva-me contigo
Dos mares à amplidão;
Límpido ou turvo, te amarei constante;
Mas não me deixes, não!"

E a corrente passava; novas águas
Após as outras vão;
E a flor sempre a dizer curva na fonte:
"Ai, não me deixes, não!"

E das águas que fogem incessantes
À eterna sucessão
Dizia sempre a flor, e sempre embalde:
"Ai, não me deixes, não!"

Por fim desfalecida e a cor murchada,
Quase a lamber o chão,
Buscava inda a corrente por dizer-lhe
Que a não deixasse, não.

A corrente impiedosa a flor enleia,
Leva-a do seu torrão;
A afundar-se dizia a pobrezinha:
"Não me deixaste, não!"

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sábado, 1 de dezembro de 2012

O jogo da forma e do conteúdo: duas faces de uma mesma estética

O presente estudo foi publicado há cerca de dois anos. Trago-o aqui de volta por considerá-lo bastante representativo dos novos movimentos literários. 

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais - RJ)

Mocinhamoringa
(interior – anos 20)

Zulmira Ribeiro Tavares

Moça alegrinha na sua compostura. Corada sem e com vergonha. Um pouco de tudo. Pescoço de gargalo de moringa. Levezinha para cima. Para baixo, pesa. Dentro da sala sentada a prumo e a gosto. O mormaço assoma à janela, um lerdo sol de emplastro. Sem sombra de susto pensa as coisas proibidas e as de todas as horas no mesmo espaço da cabeça. Lá estão seus pensamentos-carneirinhos chamando o sono mas também retirando o ponto de todas as suas costuras. Por dentro de si mesma escorrega nuinha feito uma cobra d’água. Ninguém lhe bota a mão em cima dos pensamentos. Nadam e vão-se embora com ela pelo rente das corredeiras. Sua compostura e seu desatino se casam no mesmo barro e na mesma água. MORINGA NO AR PARADO NO MEIO DA SALA AO MEIO-DIA. Rútila. Morena. Com muito gluglus assomando. Barulhinho de água encanta o mais santo. Paredes porejando. Espanto pela suavidade da curva. Oleiro fez, oleiro desfez. Da porta já dá na vista. Tudo o que se arredonda e desmancha lá está posto junto. Se quebra ou trinca não tem outro dia. Madrinha Tiana precipitando-se para os fundos do quintal no sensacional dos agudíssimos: EU VI! EU VI!
(TAVARES, Z.R., O mandril. São Paulo: Brasiliense, 1988).

Breve biografia.
Zulmira R.Tavares nasceu em S.Paulo, em 1930. Recebeu o prêmio “Revelação em Literatura” da Associação Paulista de Críticos de Arte por Termos de comparação (conto, poesia, ensaio, Ed. Perspectiva, 1974).
Outras obras de ficção: O japonês dos olhos redondos (ficções, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1982); O nome do Bispo (romance, S.Paulo, Brasiliense, 1985).

Análise do texto

Eliane F.C.Lima

Fico na dúvida qual aspecto do texto de Zulmira é mais atraente: o seu conteúdo ou a magnífica linguagem que ela manipula. Na verdade, a segunda, levada às raias poéticas, acaba sendo o próprio texto.
Com o subtítulo, quem lê é convocado a usar todo o seu conhecimento contextual para imaginar uma mocinha de interior dos anos 20, as convenções sociais, as restrições impostas. Mas, burlando esses elementos que fixam comportamentos coletivos, o texto vai desenhando uma individualidade de mulher, silenciosa, mas não menos verdadeira – “Sem sombra de susto...” –, que se constrói interiormente, território não invadido, liberdade preservada: “Ninguém lhe bota a mão em cima dos pensamentos. Nadam e vão-se embora com ela pelo rente das corredeiras.”
A linguagem, na verdade, é a estrela principal do texto da escritora. Utilizando um processo essencialmente econômico, elíptico da linguagem, alcança resultados poéticos inusitados, como no trecho “...retirando o ponto de todas as suas costuras...” em que consegue uma superposição de significados: um que assinala a atividade rotineira de uma mulher da época e, outro, com um efeito fundamental para o significado geral do texto, indica a quebra dos limites impostos para essa mesma mulher, através de seus pensamentos, o que se confirma logo adiante.
Essa contenção da linguagem se verifica ainda no uso da conjunção aditiva para reduzir o discurso, somando o que pode ficar junto ou o que se opõe ou não se coaduna, como o abstrato e o concreto, obtendo, desse modo, no menos, o máximo: “Corada sem e com vergonha”; “Sem sombra de susto pensa as coisas proibidas e as de todas as horas no mesmo espaço da cabeça.”; “Sua compostura e seu desatino se casam no mesmo barro e na mesma água.”
Nesse aspecto, é importante se observar, ainda, os dois movimentos estruturais: a descrição e a narração. A primeira seria quase predominante no texto, se não valesse pela própria narração ou fosse por ela invadida, ocasionalmente: a personagem parece parada, estática, embora seja revelada sua dinâmica interior: “Corada sem e com vergonha. Um pouco de tudo. Pescoço de gargalo de moringa. Levezinha para cima. Para baixo, pesa.”; “MORINGA NO AR PARADO NO MEIO DA SALA AO MEIO-DIA. Rútila. Morena.”; “Espanto pela suavidade da curva.”; “Tudo o que se arredonda e desmancha lá está posto junto.”
Pode-se concluir que faz parte da mesma intenção produtiva do texto a colocação em maiúsculas de dois trechos, um descritivo e outro narrativo, os quais parecem resumi-lo.
No aspecto da linguagem, ainda, é a metáfora da moringa – desde o título, já se vê – que domina o texto, e que anula o burlesco ao convocar a imaginação a criar uma figura atraente de mulher pelo arredondado, pelo leve em cima e pesada embaixo e que continua a apostar no erótico da ação interior, como se conclui em “pensa as coisas proibidas” e “escorrega nuinha feito uma cobra d’água.”.
Com o concurso da idéia de água acaba-se de compor o ambiente de lascívia em que se insere a imagem da moça: “Com muito gluglus assomando. Barulhinho de água encanta o mais santo.”; “Tudo o que se arredonda e desmancha lá está posto junto.”; “Paredes porejando.” Mais do que o encontro com uma metáfora criativa, percebe-se que a moça é, essencialmente, a moringa e seu conteúdo: “Sua compostura e seu desatino se casam no mesmo barro e na mesma água.”
Mas tal desatino, descrito inicialmente em seu interior, ultrapassa as paredes da compostura: “Da porta já dá na vista.”.
E é o primeiro momento real de narração, a madrinha alardeando seu testemunho, que nos faz retornar, então, ao contexto social da mulher do interior, na segunda década do século XX: o controle do comportamento, da sexualidade e até do pensamento.

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sexta-feira, 12 de outubro de 2012

A engenhosidade poética do olhar sobre o simples

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais - RJ)

A poeta Maria Lúcia Dal Farra, nascida em Botucatu, São Paulo, tem larga experiência e publicação em estudos literários pela USP, na área de Literatura Portuguesa, como os que fez sobre Florbela Espanca e sobre Vergílio Ferreira, livro publicado sob o título O narrador ensimesmado. Atualmente continua sua prática acadêmica na Universidade Federal de Sergipe, estado para onde se mudou.
Sua visão literária é bastante abrangente, tendo escrito um ensaio – “Anotações de uma Bibliógrafa: Baudelaire e o Esoterismo” – em que estabelece ligações entre o pensamento esotérico e a poesia de autores franceses do século XIX, como o autor de As Flores do Mal, Charles Baudelaire, por exemplo.
Mas, aqui, o que se desvendará é a poeta. Tendo sido seus textos aproximados aos de João Cabral e de Adélia Prado, sua poesia tem sua marca peculiar, já estando listada entre os grandes talentos da atualidade.
Publicou, nessa área, três livros de poema: Livro de auras (1994), Livro de possuídos (2002) e o rencentíssimo Alumbramentos, de 2012.

A força e beleza de sua poesia está em, a partir de temas simples e cotidianos, enxergar neles a transcendência que só alguns descobrem e revelá-la ao leitor extasiado através de sua construção poética.

O gato

Maria L. Dal Farra

Uma palavra para o gato: ágil.
Também unha, preguiça, pupila.
O resto
é o que ele
(entre uma e outra delas)
preenche de charme delgado –
enigmático.

Adoraria poder nele apalpar o pelo
e saber de que abstração é feito.
Mas (felino) ele se enrosca incisivo
no vão do meu pensamento
e dependura-se
(em telepática acrobacia)
nas suas prerrogativas.
Só me permite escrevê-lo
a contrapelo.


Casa

Maria L. Dal Farra

Redonda, uma mesa cogita
sua memória de árvore
enquanto o nó central se amplia
pela luz vertical que a retira
da morte.

Esse arbusto cresce
e engole a lâmpada elétrica:
os galhos já resplandecem
filtrados de sol.

Do chão
o assoalho estremece
e revive
(através da cera recém-acumulada)
os momentos íntimos das coisas da casa
em seu tempo de floresta.

Boi no pasto


Maria L. Dal Farra

Boi no pasto não tem patas.
Boia as banhas ondulantes
sobre as bordas do capim
que (marítimo de ervas)
em superfície o conserva.
Está no seu elemento
e todo esterco trescala
ao verde que ele abate –
ilhas já dessa paisagem.
É o campo que se alevanta
no negro musgo do estrume
por seu turno resgatando
a larva à própria lavra.

Boi no pasto não tem peias
nem a terra lhe é fronteira.

Canto


Maria L. Dal Farra

Uma cadeira é algo
que impede o voo.
Quanto mais não seja –
tem pernas.

Um galo fazendo dela
poleiro
é um animal
aprisionado ao assunto,
à força da gravidade.

Entretanto
o encanto terrestre deste
objeto
alçado ao canto
– desperta de qualquer maneira
a manhã.
Mérito do parentesco.


Idade


Maria L. Dal Farra

A primavera agita zumbidos
de flores e de cio
enquanto o sol canta baixo
roçando meu anseio,
que flutua no pio das asas
na paina fresca da aragem.

Leveza:
é tudo quanto peço ao vento.
(Todos os poemas acima são de Livro de auras, 1994)


Alcachofra


Maria L. Dal Farra

Não é em altura que seu arbusto
se ombreia com o pinheiro:
é pela fruta.
Íntima amiga da geometria,
do pinho tão só se distancia
pela recusa à agreste armadura.
Nenhum lampejo de indiferença
machuca-lhe a vestimenta:
antes a luz emprega no fabrico da alma
tenra (que lateja),
parente do alegre bem-me-quer,
do espelhante girassol.

Pertença da floricultura e da boa
mesa, ornamenta o paladar
com a lembrança das nascentes:
não são de lâmina as escamas,
mas (degustáveis) dádivas mediterrâneas
dispostas no coração em tranca.
Apenas pequenas setas mantém
(em íntima contenda)
a provocar torneios entre língua e dentes.

– Cota de cavaleiro andante,
em que terna demanda atuas?
(Livro de possuídos, 2002)


Ao leitor, meu canibal inquieto

Maria L. Dal Farra

Cada palavra
(aqui)
se obstina em silêncio.

Contigo devoro os frutos da noite:
lua caiada em agonia
alguma chuva esparsa do lado boreal
poeira de estrelas profanando
o negro.

Só nossos dentes
brilham
feito astros.


Canção para uma camisa branca

a Ipê Dourada

Maria L. Dal Farra

A camisa subtraída ao varal
abre um furo
na roupa branca estirada.
Ali quem sabe
(à noite)
a lua devasse
(com seu holofote)
as dolorosas cortinas da ausência.

Enquanto isso
meu cabelos crescem como campos de milho
só para acolher teu espantalho.
Enquanto isso
exploro com as mãos o grosso tronco da árvore
para abraçar nele
teu torso nu.

Artes


ao Francisco José

Maria L. Dal Farra

Não distingo o que queres
e nem triunfo sobre
o enigma que nos atrai
(assim dessemelhantes).
Mas se adivinho o que há dentro do teu cenho
e se (acaso)
empreendo o que (querendo) não fazes por
consumar –
ganho (em troca)
a solidão patética de quem erra
por acertar.

O amor é isso:
cisco que tolda a vista
tão só pra se enxergar.
(Alumbramentos, 2012) 

Aguardo a quem me visita em meus blogues Poema Vivo (link) e Conto-gotas (link).







domingo, 9 de setembro de 2012

Mulheres de mantilha: resolução e ação em "Memórias de um sargento de milícias".

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais - RJ)

Em artigo anterior, falei sobre as personagens femininas de Machado de Assis. Ali, salientei o fato de que essas têm as mesmas ambições e desejo de glória das personagens masculinas, segundo a visão crítica do escritor sobre a humanidade, tolida sua ação efetiva, nesse sentido, apenas por sua condição social, afinal vivem no século XIX. 
Hoje vou analisar, ainda que superficialmente, as personagens femininas de Manuel Antônio de Almeida, em  Memórias de um sargento de milícias (daqui para a frente nomeado como MSM). É bom lembrar que tal escritor foi um dos principais responsáveis pelo encaminhamento de Machado na carreira literária. Identifico, no protetor – a ironia, a visão pouco otimista da sociedade, a tendência ao realismo, o descortinamento metalinguístico da enunciação –, alguns traços que fizeram a glória do escritor protegido.  Seu romance foi dado ao público em folhetim – esse processo era comum na época – e anonimamente – de 1852 a 1853 –, publicado em livro em 1854, ainda sob pseudônimo, só aparecendo seu nome, finalmente, em publicação póstuma em 1863.
Começa-se por ressaltar a reflexão que o presente artigo fará: as personagens femininas do escritor de MSM terão um comportamento muito mais ousado e ativo do que as de Machado. E esse dado, à primeira vista, parece sui generis, visto que o romance de Manuel A. Almeida antecede a produção ficcional realista do outro escritor em quase vinte anos e tem como enfoque temporal o “tempo de el rei” D. João VI, ou seja, início do século XIX.
Mas há um aspecto extremamente relevante que separa os dois e pode justificar as atitudes de tais personagens estudadas: a diferença na condição social das mulheres ficcionais de um e de outro. Se em Machado, esses seres literários são, quase em sua maioria, mulheres de alta burguesia, sustentadas por seus maridos e que têm de manter essa situação como condição sociocultural inegociável, as personagens femininas de Almeida, inseridas no enredo que enfoca o povo, são mulheres da mais baixa condição, representantes-tipo dessa camada, que lutam, portanto, por sua sobrevivência. Deve-se atentar para o fato de que, até na vida real, as mulheres de tais estratos sociais já trabalhavam, desde sempre, fora de suas casas em busca de seu próprio sustento, como lavadeiras, domésticas etc. Salta aos olhos a importância que as mulheres têm, no romance, como responsáveis pelo encaminhamento e como base do enredo:

Foi ter com a comadre, a quem já conhecia, e a encarregou de o avisar apenas sentisse que a Maria sofria qualquer necessidade. (p.43*)

Eis aqui porque o Leonardo [pai] se dirigiu no seu segundo apuro ao velho tenente-coronel por intermédio da comadre, e porque  este prometeu empenhar-se por ele, o que com efeito tratou e cumprir. (p.43)


Uma das principais é a “comadre”, a parteira – atente-se aí para sua atividade profissional –, que, tendo feito o parto da personagem título, o Leonardo, e o batizado posteriormente, que sempre é chamada para intervir e efetivamente sai para resolver os problemas em favor de seus protegidos. E essa interferência não é ocasional. É marcante.

… mandou por um colega chamar a comadre, e a encarregou da missão de ir ter com ele, missão que ela aceitou de bom grado, e que desempenhou, segundo vimos, satisfatoriamente. (p. 35)

O compadre começou a banzar sobre o caso, e um dia veio-lhe a ideia: era preciso pôr a comadre ao corrente do que se passava, e interessá-la no negócio; ela era bem capaz, se quisesse, de arcar com José Manuel, e pô-lo fora de combate... (p. 97)


Todas essas mulheres literárias têm personalidade forte, de resultados indiscutíveis, sendo, muitas vezes, temidas até pelos próprios elementos masculinos. Observemo-las em ação:

Chegou o dia de batizar-se o rapaz: foi madrinha a parteira; sobre o padrinho houve dúvidas: o Leonardo [pai do outro] queria que fosse o Sr. Juiz; porém teve de ceder a instâncias da Maria e da comadre, que queriam que fosse o barbeiro de defronte, que afinal foi adotado. (p. 7)

A Maria [mãe do Leonardo], como se já esperasse por aquilo, sorriu-se como envergonhada do gracejo, e deu-lhe também em ar de disfarce um tremendo beliscão nas costas da mão esquerda. Era isto uma declaração em forma, segundo os usos da terra: levaram o resto do dia de namoro cerrado... (p. 7)

A Maria recuou dois passos e pôs-se em guarda, pois também não era das que se receava por qualquer coisa.
- Tira-te lá, ó Leonardo! (p. 10)


Apenas se achou ela [a mãe da Maria] em frente do capitão (era este o posto que tinha nesse tempo o velho) foi-se chegando para ele com ar resoluto e enfurecido. O capitão recuou instintivamente um passo. (p. 41)

- Se me diz meia palavra... perco-lhe o respeito... eu nunca lhe dei confiança; e apesar de ser a senhora lá o que quer que é de meu pai... perco-lhe o respeito...
- Você sempre mostra que tem raça de saloio, disse Chiquinha empertigando-se e sem recuar um passo. (p.128)


Como era rica, D. Maria alimentava este vício largamente; as suas demandas eram o alimento da sua vida; acordada pensava nelas, dormindo sonhava com elas; raras vezes conversava em outra coisa, e apenas achava uma tangente caía logo no assunto predileto; pelo longo hábito que tinha da matéria, entendia do riscado a palmo, e não  havia procurador que a enganasse; sabia todos aqueles termos jurídicos e toda a marcha do processo de modo tal, que ninguém lhe dava nisso a palma. (p.77)

Já se vê que esta vida era trabalhosa e demandava sérios cuidados; porém a comadre  dispunha de uma grande soma de atividade: e apesar de gastar muito tempo nos deveres do ofício e na igreja, sempre lhe sobrara algum para empregar em outras coisas. Como dissemos, ela havia tomado a peito a causa dos amores de Leonardo com Luizinha, e jurara pôr José Manuel, o novo candidato, fora da chapa. (p. 111)

Era a tal vizinha uma dessas mulheres que se chamam de faca e calhau, valentona, presunçosa, e que se gabava de não ter papas na língua... (p. 47)

Vidinha, tendo a princípio trocado com os primos algumas indiretas a respeito da prisão de Leonardo [o futuro sargento de milícias], julgara conveniente deixar-se de panos quentes, e fora direto a eles, como se diz, com quatro pedras na mão, atribuindo-lhes o que acabava de suceder. (p. 159)

Ninguém houve que a pudesse desviar do seu propósito: ela foi tomando a mantilha e dispondo-se a sair; rogos, choros, nada a pôde conter. (p.170)

Por mais arrogante que fosse a voz do toma-largura, e por mais ameaçadora que fosse a sua figura quase hercúlea, Vidinha não recuou um passo, não desfez uma ruga da testa, antes pareceu mostrar que a sua presença ali favorecia suas intenções; tanto que dirigindo-se a ele o foi logo apostrofando também pela seguinte maneira:
- É Vm. um homem que eu não sei para que traz barbas nessa cara... (p.173)


Outro aspecto que deve ser levantado, mas que ainda assim me parece ser outra face dessa mesma moeda, qual seja o sentimento de decisão e independência dessas mulheres do povo retratadas no romance, é a liberdade que algumas delas têm em relação ao amor, ignorando os ditames morais e sociais da época. Vê-se isso desde a atuação da Maria, mãe do segundo Leonardo, personagem que justificará o título do romance, que já desembarca do navio de onde viera de Portugal “sentindo os enjoos”, resultado “da pisadela e do beliscão” travados com o Leonardo-Pataca, o futuro pai.
Vários são os exemplos a serem destacados, os quais vão explicando a expressão da época “estar de moça”:

- Pois tu casaste?
- Não... mas que tem isso?
- Ah!... estás de moça! (p.132)

Saibam pois que a família era composta de duas irmãs, ambas viúvas, ou que pelo menos diziam sê-lo... (p.135)

Uma delas já os leitores conhecem; é Vidinha, a cantora de modinhas; era solteira como uma de suas irmãs; a última era também solteira, porém não como estas duas. (p. 135)

Pois a vida de Luizinha, depois de casada, representava com fidelidade a vida do maior número das moças que então se casavam: era por isso que as Vidinhas não eram raras... (p.192)


Vidinha era uma rapariga que tinha tanto de bonita como de movediça e leve: um soprozinho, por brando que fosse,a fazia voar, outro de igual natureza a fazia revoar, e voava e revoava na direção de quantos sopros por ela passassem; isto quer dizer, em linguagem chã e despida dos trejeitos da retórica, que ela era uma formidável namoradeira, como hoje se diz, para não dizer lambeta, como se dizia naquele tempo. (p. 146)

Quase sempre senhoras de seu próprio destino – e muitas vezes do destino alheio, como se viu em inúmeros exemplos transcritos –, essa marca de decisão vem simbolizada na ação de “vestir a mantilha”, vestimenta retratada no texto almediano como de extremo mau gosto, e que acompanha a comadre em todas as suas peripécias decisórias.

A mulher de mantilha é nossa conhecida, porque nem mais nem menos é a comadre; e o negócio que aí a levou também nos interessa, pois que se trata da soltura do pobre Leonardo. (p.34)

D. Maria aprontou-se, meteu-se na sua cadeirinha; a comadre tomou a mantilha, e partiram para a Prainha. (p.196)

Maria-Regalada vestiu-se à pressa, tomou a sua mantilha, e ao lado da cadeirinha em que ia D. Maria partiram para a casa do major. (p.197)


Para finalizar, um exemplo emblemático desse  ato, que, mais do que os outros citados anteriormente, deixa claro o quanto essa peça do vestuário feminino de então revestia de autoridade aquela que a portava:

… Vidinha parou um instante, concentrou-se, meditou, e depois, como tomando uma grande resolução:
- Minha mãe, disse dirigindo-se a uma das velhas, quero a sua mantilha...
- Filha de Deus, acudiu a velha, que desatino é esse? onde é que ides agora de mantilha?...
- Eu cá sei onde vou... quero a sua mantilha... tenho dito... quero a sua mantilha... (p.170)


Recomendo a leitura do livro, que, sendo de uma atualidade a toda a prova em seu sentido crítico dos costumes, proporciona a quem lê momentos de extrema hilaridade e de boas gargalhadas.

* A edição aqui usada é a edição crítica de Cecília de Lara, de 1978. 


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quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Os anjos da anunciação: a predestinação da poesia

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais - RJ)
No comentário de hoje, um poema de Cida Pedrosa – “Poema da anunciação”, abaixo transcrito  –, a quem analisei há algumas postagens atrás, trouxe-me o conhecido texto de Drummond, “Poema de sete faces”, e todo o repertório de outros poetas, que, assinalados com a força do verso “Quando nasci, um anjo... “, fizeram suas próprias construções poéticas. 

O  substantivo “anjo... “ marcado pelo atributo “torto/desses que vivem na sombra” estende sua negatividade ao eu poético, não só no texto de Drummond, mas a outros desses textos, que, atualizando ou popularizando esses atributos – “um anjo louco muito louco”, em Torquato Neto; “Quando nasci veio um anjo safado/O chato dum querubim”, em Chico Buarque –, lhes prevê um futuro difícil: “Meu Deus, por que me abandonaste/se sabias que eu não era Deus/se sabias que eu era fraco.”
Diferentemente, nas escritoras, a marca do anjo é um pouco modificada, incluindo o destino desse eu lírico que se pronuncia. Em Adélia, o “anjo esbelto,
/desses que tocam trombeta”, diferentemente do primeiro, que se oculta na sombra, se anuncia ruidosamente, o que já leva quem lê a prever um futuro menos oneroso: carregar bandeira é lutar pelo próprio destino ou pelo destino coletivo. Se os versos  “Cargo muito pesado pra mulher,/esta espécie ainda envergonhada.” podem supor uma inferioridade feminina, a inauguração de linhagens, a fundação de reinos, a negação da amargura, da maldição restrita ao homem, assinalam a diferença do ser mulher, colocando-a em um  lugar diferente e especial.
Em Cida Pedrosa, a presença e o poder de sina desse predestinador é inteiramente negada, cabendo ao eu o direito – e o dever! – de inventar o seu próprio destino.

Poema de sete faces


C.Drummond de Andrade


Quando nasci, um anjo torto

desses que vivem na sombra

disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.


As casas espiam os homens

que correm atrás de mulheres.

A tarde talvez fosse azul,

não houvesse tantos desejos.


O bonde passa cheio de pernas:

pernas brancas pretas amarelas.

Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.

Porém meus olhos

não perguntam nada.


O homem atrás do bigode

é sério, simples e forte.

Quase não conversa.

Tem poucos, raros amigos

o homem atrás dos óculos e do bigode,


Meu Deus, por que me abandonaste

se sabias que eu não era Deus

se sabias que eu era fraco.


Mundo mundo vasto mundo,

se eu me chamasse Raimundo

seria uma rima, não seria uma solução.

Mundo mundo vasto mundo,

mais vasto é meu coração.


Eu não devia te dizer

mas essa lua

mas esse conhaque

botam a gente comovido como o diabo.

(
In Alguma poesia - 1930)

 
Let's play that


Torquato Neto (recebeu música de Jards Macalé)
                  
Quando eu nasci
um anjo louco muito louco

veio ler a minha mão

não era um anjo barroco

era um anjo muito louco, torto

com asas de avião

 
eis que esse anjo me disse
apertando minha mão

com um sorriso entre dentes

vai bicho desafinar

o coro dos contentes

vai bicho desafinar

o coro dos contentes


(CD
Torquato Neto - Todo Dia É Dia D - 2002)


Até o fim


Chico Buarque de Hollanda


Quando nasci veio um anjo safado

O chato dum querubim

E decretou que eu tava predestinado

A ser errado assim

Já de saída a minha estrada entortou

Mas vou até o fim

 
Inda garoto deixei de ir à escola
Cassaram meu boletim

Não sou ladrão, eu não sou bom de bola

Nem posso ouvir clarim

Um bom futuro é o que jamais me esperou

Mas vou até o fim

 
Eu bem que tenho ensaiado um progresso
Virei cantor de festim

Mamãe contou que eu faço um bruto sucesso

Em Quixeramobim

Não sei como o maracatu começou

Mas vou até o fim


Por conta de umas questões paralelas

Quebraram meu bandolim

Não querem mais ouvir as minhas mazelas

E a minha voz chinfrim

Criei barriga, minha mula empacou

Mas vou até o fim

 
Não tem cigarro, acabou minha renda
Deu praga no meu capim

Minha mulher fugiu com o dono da venda

O que será de mim?

Eu já nem lembro pr'onde mesmo que vou

Mas vou até o fim

 
Como já disse, era um anjo safado
O chato dum querubim

Que decretou que eu tava predestinado

A ser todo ruim

Já de saída a minha estrada entortou

Mas vou até o fim

(
In LP Chico Buarque - 1978)

Com licença poética

                   
Adélia Prado

Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não tão feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
— dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável.
Eu sou.

(In Poesia Reunida - 1991)


Poema da anunciação


Cida Pedrosa


(entre drummond, adélia e chico)


quando nasci

os anjos da anunciação
não me disseram nada

então saí por aí

a inventar destinos
de vez em quando
a consertar a cara

(
In Miúdos - 2011)

Convido para meus blogues Poema Vivo (link) e Conto-gotas (link).








quarta-feira, 4 de julho de 2012

A humanidade da personagem feminina machadiana

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais - RJ)

Quando se trabalha muito tempo com Literatura Brasileira, sempre se ouve, com frequência, a mesma observação sobre o tratamento dado por Machado de Assis a suas personagens femininas. Há uns quinze anos atrás, durante uma palestra sobre ele, veio o inevitável questionamento da plateia a quem falava na ocasião: “Por que o escritor retratava todas as suas mulheres ficcionais como latentemente traidoras e infiéis a seus maridos?”. A colocação tinha como escopo demonstrar que o escritor realista tinha uma visão diminuidora e negativa a respeito das mulheres assim representadas. Fosse eu a palestrante, faria as ponderações que agora faço aqui.
De início, devo dizer que a afirmativa implícita não é verdadeira. Posso, de memória, citar pelo menos quatro dessas figuras bastante relevantes, que são absolutamente poupadas pela pena machadiana. Em Memórias póstumas de Brás Cubas, Eugênia é uma moça coxa, como ali se diz, mas cuja personalidade a separa da visão que o escritor tem de toda a humanidade e que, em tempo, será aqui elucidada: é verdadeira, direta, honesta e de uma força moral que a coloca acima de qualquer outro ser. Mesmo em estado de sofrimento e pobreza extrema, sua dignidade é sequer arranhada.
Em Quincas Borba, encontramos Maria Benedita – personagem retratada com ares de honestidade e franqueza e que amará seu marido Carlos Maria com adoração de deus – e Fernanda – mãe amorosa e esposa exemplar, cujo comportamento ético ultrapassa esse limite domiciliar. A boníssima Dona Carmo, de Memorial de Aires – para mim um dos melhores romances do Machado
vem completar esse quarteto excepcional. E esse salvaguardar acaba contemplando o lado feminino da questão, pois nenhuma personagem masculina recebe daquele seu criador complacência semelhante.
Porque a obra ficcional de Machado, aí incluindo seus contos, retrata sua visão de mundo: o ser humano paga qualquer preço por reconhecimento e glória, vive em função da opinião alheia, precisa dela como precisa de ar. Todas as ações humanas, mesmo as mais inocentes ou aparentemente filantrópicas, escondem por baixo, uma intenção secreta dessa finalidade. Para atingi-la, qualquer obstáculo, mesmo à custa do sofrimento de algum semelhante, deve ser eliminado. A filosofia do Humanitas, que a personagem Quincas Borba desenvolve para Brás Cubas e para Rubião, nos dois romances citados acima, seria a teoria que toda essa obra ficcional exemplifica com seus enredos.
Ora, pertencendo as personagens femininas a essa humanidade – poupá-las seria apartá-las da raça humana –, teriam de seguir o mesmo comportamento. Como as mulheres do século XIX, época da obra focalizada, tinham suas vidas restritas ao ambiente doméstico, como apenas filhas, mães ou esposas, sem a ação social exercida pelos homens através de seus empregos, negócios, política, tal condição humana, repleta de negatividade, só poderia ser exercida dentro dos limites a elas impostos. Seu desejo de glória vem sempre adstrito a seus atributos físicos – ser a figura feminina central de um baile, ser amada, mesmo que não por seu marido – ou dependente das ações de seus parceiros. A personagem Virgília, de Memórias, é um exemplo clássico desse fato:

Dutra veio dizer-me, um dia, que esperasse outra aragem, porque a candidatura de Lobo Neves era apoiada por grandes influências. Cedi; tal foi o começo da minha derrota. Uma semana depois, Virgília perguntou ao Lobo Neves, a sorrir, quando seria ministro.
- Pela minha vontade, já; pelas dos outros, daqui a um ano.

Virgília replicou:
- Promete que algum dia me fará baronesa?
- Marquesa, porque eu serei marquês.
Desde então fiquei perdido. Virgília comparou a águia e o pavão, e elegeu a águia, deixando o pavão com seu espanto, o seu despeito, e três ou quatro beijos que lhe dera.
 


Naquele romance, embora a protagonista feminina seja retratada com todos os desvios de caráter que espanta a quem lê, o próprio Brás Cubas, o personagem/narrador, livre das amarradas sociais da vida, pois narra sua vida após a morte, retrata até mesmo a si com a mesma crueldade analítica que faz à sua parceira, bem como a todas as demais personagens femininas ou masculinas. Todos os traços de sua personalidade humana, que vem, impiedosamente reiterada em todos os capítulos dos  outros romances machadianos, a partir daí, aquinhoados também nos contos, são igualmente divididos entre os seres de ficção desse escritor,  sua crítica ferina e irônica, independente de classe social ou gênero.
Imagino que à lembrança da pessoa que acompanha esse sucinto estudo venha logo o nome de Capitu, a mais famosa personagem feminina do escritor. Seu desenho psicológico é realmente impressionante. José Dias, outra personagem, a caracteriza em uma das passagens do texto, como “olhos de cigana oblíqua e dissimulada”. Tal perfil retratado torna-se mais grave à medida que não há, envolvido no comportamento da personagem, nenhum desejo de glória ou motivação outra, a não ser a questão da infidelidade de esposa. Mas desejo remeter a minhas observações feitas em artigo anterior, no qual saliento a pouca credibilidade da palavra do suposto marido traído, justamente por ser ele que faz a narração e o traçado do perfil negativo da mulher, fazendo da leitora ingênua/leitor ingênuo a principal testemunha de suas palavras. O que Capitu realmente era jamais vivente algum ficará sabendo. A maldosa malícia – perdoem-me a redundância! – é da personagem  Bentinho – o marido ciumento –, não de Machado, responsável pela construção da figura masculina, não da figura feminina, que caberia ao outro.
Para a comprovação dos argumentos aqui expostos – e deleite intelectual e estético! –, recomendo a leitura da obra desse escritor – romances e contos –, sobremaneira a partir do romance de 1881.


Atenção: a foto acima anexada foi copiada do blogue O dolicocefalo (link)

Aguardo a quem gosta de literatura em meus blogues Poema Vivo (link) e  Conto-gotas (link). 

quarta-feira, 6 de junho de 2012

O espírito do tango - Cida Pedrosa e a poesia

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais - RJ)

A poeta Cida Pedrosa é pernambucana (Bodocó, 1963), além de advogada e divulgadora cultural, como se comprova pela coordenação do Movimento de Escritores Independentes de Pernambuco e organização do Concurso de Recitação do Festival Recifense de Literatura – Recitata –, além de editar a Interpoética (Convida-se aqui a assistir, em vídeo, a entrevista de Cida Pedrosa), site criado junto com Sennor Ramos e considerado o maior acervo on-line de poesia pernambucana. Está on-line, ainda, no espaço  Escritoras suicidas.

Obras

Restos do fim (1982); O cavaleiro da epifania (1986); Cântaro (2000); Gume (2005); As filhas de lilith (2009); Miúdos (2011).

Sobre algumas poesias selecionadas, podem ser feitos algumas observações, ainda que superficiais. A primeira delas seria sobre o aproveitamento poético da condição feminina: abordado sobre uma visão contemporânea da mulher, suas circunstâncias históricas atuais, pode ser reconhecido nos dois poemas seguintes.
No primeiro, pode-se chamar a atenção para a citação final, que aproveita a crença religiosa sobre a recompensa posterior do sacrifício e heroísmo masculino dos radicais terroristas, enfatiza e valoriza, em face dele, a ação da mulher, imbuída apenas de consciência política.

Sihem


sob a burca negra
o olhar sem véu
espreita a hora certa

o vai-e-vem dos homens
e o apito do trem
conta o compasso
do coração que já parou

amarras de pólvora
em volta do corpo
e o fogo da redenção
a sacolejar na partida

sihem não deixa filhos
um corpo para o desejo
nem sequer rostos aflitos
à sua espera
sobe aos céus sem recompensa

o profeta
não predestinou 40 virgens
para festejar sua chegada

Milena

gosto quando milena fala
dos homens
que comeu durante a noite

é a única voz soante
nesta cantina de repartição

onde todos contam:
do filho drogado do preço do pão
do sapato carmim, exposto na vitrine
da rua sicrano de tal do bairro
de casa amarela
onde você pode comprar
e começar a pagar apenas em abril

sem a voz de milena
o café desce amargo

Cinema aos domingos

a moça espera o rapaz na porta do cinema
o transeunte passa, olha a moça
sorri por entre dentes

a sessão começa e a moça espera o rapaz
o transeunte passa, olha a moça
um olhar por entre olhos

a sessão termina e a moça espera o rapaz
o transeunte passa, olha a moça
um olhar por entre pernas

o vendedor de confeitos se retira
a moça não mais espera o rapaz

o transeunte passa, os dois se olham
um olhar por entre coxas

o rapaz espera a moça na calçada do cinema


Nos dois textos transcritos abaixo, o enunciado poético traz o mundo contemporâneo, com suas questões cotidianas que vão moldando e intensificando as velhas questões humanas.

Morte sob carbono

a floresta (dentro
da sala)
espia o homem
que se apoia na caneta

nomes números nódoas

as velhas esperam
o ventilador gira
o café esfria o bigode do funcionário

– papel poeira pesares –
– idades vãs –

entre
um documento e outro
um carimbo e outro
uma certidão e outra
as velhas
acertam um grampo na alma
e pactuam um prazo com a morte

Céu de confeiteiro

uma fatia de céu
é dada
nesta noite de maio

quinhão que cabe ao homem
que da janela espera

a urbe apita
e o calor
se faz bruma e precipício

uma fatia de céu
é dada
aos amantes da varanda

quinhão que cabe ao amor
em tempos de luas magras 


Mas a eterna sondagem intimista, ponta de lança do discurso da poesia, não se  recusa a surgir em Cida Pedrosa. Mesmo que, como acontece em “Urbe”, a localização espacial e interferência externa – o rio Capibare, que atravessa recife – venha lançar seus tentáculos nesse eu subjetivo e interior.


Urbe  

hoje na minha boca
não cabem girassóis

cabe um poemapodre
cheiro de mangue capibaribe

um poemaponte
galeria esgoto chuvas de abril

um poemacidade
fumaça ferrugem fuligem

hoje na minha boca
cabe apenas o poema

o poema hóspede da agonia


Absoluto 


quando o tempo do branco chegar
não terei gaiolas
gatos siameses
ou cachorro poodle
com coleira de marfim

com certeza
direi poemas indecentes
falarei de revoluções inacabadas
de lugares que mapeei com minha alma


A festa


hoje é dia de festa
mesmo que a dor
(intransferível)
se acomode na poltrona
e faça sala aos convidados

hoje é dia de festa
mesmo que a morte ronde
diga poemas de augusto
e comemore a vida

definitivamente
hoje é dia de festa
mesmo que olhos de neblina
não mais te vejam
e  a dor se infiltre
em teus cabelos



O bar


aqui
no fim do dia
rumino a alma
e espeto a dor
com o palito de azeitona


No último texto abaixo, a revelação final e indubitável de um eu lírico que, sem vexames, se revela por inteiro.


Diferença

meu amor ouve fado
não rodopia
apenas baila e espreita.

eu gosto de tango.

minha mãe sempre diz:
seus olhos são trágicos.

Como Manuel Bandeira, que usou o tango como símbolo máximo do sofrimento humano em seu poema “Pneumotórax” ("- O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado./- Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?/- Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino."), o eu lírico traduz com o mesmo recurso a diferença entre dois seres: a tragicidade.

Convido a quem me visita a ir até meus blogues Poema Vivo (link) e Conto-gotas (link).