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sexta-feira, 12 de outubro de 2012

A engenhosidade poética do olhar sobre o simples

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais - RJ)

A poeta Maria Lúcia Dal Farra, nascida em Botucatu, São Paulo, tem larga experiência e publicação em estudos literários pela USP, na área de Literatura Portuguesa, como os que fez sobre Florbela Espanca e sobre Vergílio Ferreira, livro publicado sob o título O narrador ensimesmado. Atualmente continua sua prática acadêmica na Universidade Federal de Sergipe, estado para onde se mudou.
Sua visão literária é bastante abrangente, tendo escrito um ensaio – “Anotações de uma Bibliógrafa: Baudelaire e o Esoterismo” – em que estabelece ligações entre o pensamento esotérico e a poesia de autores franceses do século XIX, como o autor de As Flores do Mal, Charles Baudelaire, por exemplo.
Mas, aqui, o que se desvendará é a poeta. Tendo sido seus textos aproximados aos de João Cabral e de Adélia Prado, sua poesia tem sua marca peculiar, já estando listada entre os grandes talentos da atualidade.
Publicou, nessa área, três livros de poema: Livro de auras (1994), Livro de possuídos (2002) e o rencentíssimo Alumbramentos, de 2012.

A força e beleza de sua poesia está em, a partir de temas simples e cotidianos, enxergar neles a transcendência que só alguns descobrem e revelá-la ao leitor extasiado através de sua construção poética.

O gato

Maria L. Dal Farra

Uma palavra para o gato: ágil.
Também unha, preguiça, pupila.
O resto
é o que ele
(entre uma e outra delas)
preenche de charme delgado –
enigmático.

Adoraria poder nele apalpar o pelo
e saber de que abstração é feito.
Mas (felino) ele se enrosca incisivo
no vão do meu pensamento
e dependura-se
(em telepática acrobacia)
nas suas prerrogativas.
Só me permite escrevê-lo
a contrapelo.


Casa

Maria L. Dal Farra

Redonda, uma mesa cogita
sua memória de árvore
enquanto o nó central se amplia
pela luz vertical que a retira
da morte.

Esse arbusto cresce
e engole a lâmpada elétrica:
os galhos já resplandecem
filtrados de sol.

Do chão
o assoalho estremece
e revive
(através da cera recém-acumulada)
os momentos íntimos das coisas da casa
em seu tempo de floresta.

Boi no pasto


Maria L. Dal Farra

Boi no pasto não tem patas.
Boia as banhas ondulantes
sobre as bordas do capim
que (marítimo de ervas)
em superfície o conserva.
Está no seu elemento
e todo esterco trescala
ao verde que ele abate –
ilhas já dessa paisagem.
É o campo que se alevanta
no negro musgo do estrume
por seu turno resgatando
a larva à própria lavra.

Boi no pasto não tem peias
nem a terra lhe é fronteira.

Canto


Maria L. Dal Farra

Uma cadeira é algo
que impede o voo.
Quanto mais não seja –
tem pernas.

Um galo fazendo dela
poleiro
é um animal
aprisionado ao assunto,
à força da gravidade.

Entretanto
o encanto terrestre deste
objeto
alçado ao canto
– desperta de qualquer maneira
a manhã.
Mérito do parentesco.


Idade


Maria L. Dal Farra

A primavera agita zumbidos
de flores e de cio
enquanto o sol canta baixo
roçando meu anseio,
que flutua no pio das asas
na paina fresca da aragem.

Leveza:
é tudo quanto peço ao vento.
(Todos os poemas acima são de Livro de auras, 1994)


Alcachofra


Maria L. Dal Farra

Não é em altura que seu arbusto
se ombreia com o pinheiro:
é pela fruta.
Íntima amiga da geometria,
do pinho tão só se distancia
pela recusa à agreste armadura.
Nenhum lampejo de indiferença
machuca-lhe a vestimenta:
antes a luz emprega no fabrico da alma
tenra (que lateja),
parente do alegre bem-me-quer,
do espelhante girassol.

Pertença da floricultura e da boa
mesa, ornamenta o paladar
com a lembrança das nascentes:
não são de lâmina as escamas,
mas (degustáveis) dádivas mediterrâneas
dispostas no coração em tranca.
Apenas pequenas setas mantém
(em íntima contenda)
a provocar torneios entre língua e dentes.

– Cota de cavaleiro andante,
em que terna demanda atuas?
(Livro de possuídos, 2002)


Ao leitor, meu canibal inquieto

Maria L. Dal Farra

Cada palavra
(aqui)
se obstina em silêncio.

Contigo devoro os frutos da noite:
lua caiada em agonia
alguma chuva esparsa do lado boreal
poeira de estrelas profanando
o negro.

Só nossos dentes
brilham
feito astros.


Canção para uma camisa branca

a Ipê Dourada

Maria L. Dal Farra

A camisa subtraída ao varal
abre um furo
na roupa branca estirada.
Ali quem sabe
(à noite)
a lua devasse
(com seu holofote)
as dolorosas cortinas da ausência.

Enquanto isso
meu cabelos crescem como campos de milho
só para acolher teu espantalho.
Enquanto isso
exploro com as mãos o grosso tronco da árvore
para abraçar nele
teu torso nu.

Artes


ao Francisco José

Maria L. Dal Farra

Não distingo o que queres
e nem triunfo sobre
o enigma que nos atrai
(assim dessemelhantes).
Mas se adivinho o que há dentro do teu cenho
e se (acaso)
empreendo o que (querendo) não fazes por
consumar –
ganho (em troca)
a solidão patética de quem erra
por acertar.

O amor é isso:
cisco que tolda a vista
tão só pra se enxergar.
(Alumbramentos, 2012) 

Aguardo a quem me visita em meus blogues Poema Vivo (link) e Conto-gotas (link).







Um comentário:

Unknown disse...

Frofª Eliane:
Antes de tudo gostaria de deixar cravado aqui os agradecimentos pela tua visita ao Blog Retalhos do Modernismo - uma honra.
Ainda não tive tempo de percorrer este teu blog, mas logo ao abri-lo tive a satisfação de ler sobre a botucatuense. Eu estudei em Botucatu e fiquei feliz de saber sobre mais um literato daquela terra santa.
Estarei seguindo teu blog. Desejo muito que possamos ter contato para poder trocar idéias e, lógico, aprender muito com a tua experiência e sabedoria.
Abraços e: ESTEJA E SEJA E FIQUE FELIZ!
Luiz de Almeida - literalmeida@gmail.com