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sábado, 26 de novembro de 2011

Astrid Cabral e a poética do espanto

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais - RJ)
 
A poeta Astrid Cabral Félix de Sousa já teve alguns de seus poemas analisados neste blogue (aqui e aqui). No dia de hoje, a postagem focaliza a escritora, apenas, com pequena biobibliografia.
Astrid Cabral nasceu em Manaus, Amazonas, em 25-09-1936. Na adolescência, veio para o Rio de Janeiro, diplomando-se em Letras Neolatinas na UFRJ, embora tenha lecionado, nessa área, na Universidade de Brasília. Por concurso no Itamaraty foi Oficial de Chancelaria do Ministério das Relações Exteriores em cidades brasileiras, além de Beirute e Chicago.

Obras
Poemas
Ponto de cruz (1979); Torna-viagem (1981); Lição de Alice (1986); Visgo da terra (1986); Rês desgarrada (1994); De déu em déu (1998); Intramuros (1998); Rasos d’água (2003).

Ficção
Alameda (contos - 1963)

Nos textos da escritora aqui transcritos, dentre diversos outros aspectos destacáveis em sua obra como um todo, podemos perceber um sentimento de melancolia e assombro diante do percurso humano pela vida, que se derrama em dois temas que acompanham o caminho da literatura, de uma forma geral: a reflexão sobre a condição humana e a condição subjetiva de um eu lírico que se autoanalisa. Na beleza da construção poética dos textos a seguir podemos distinguir esse primeiro enfoque.

Herança

Astrid Cabral

Bênçãos e maldições vêm de, bem longe
embaladas em ovos, sangue e esperma
em arquivos que jazem sob a terra
lacrados chaves já perdidas no ontem.
Os vivos farejamos crus mistérios
e giramos perguntas parafusos
que mal roçam a cútis dos arcanos:
o olhar terá nascido no jurássico?
o tom de tez e voz será adâmico?
de quem decorre esta imprevista
herança
de sermos o que, bem ou mal nós
somos?
Família, amor, jogo de sexo e espelhos
por onde assim perplexos nos lançamos
ou, dizendo melhor, lançados fomos.

A silepse de pessoa (desvio de concordância que consiste em relacionar um elemento da frase ao que está implícito e não ao que está explícito), em “Os vivos farejamos crus mistérios”, consegue esse efeito de reunir toda uma espécie de seres – os vivos – a um indivíduo determinado – um eu entre nós –, fazendo-os todos “perplexos” diante da inexorabilidade de uma herança, de um destino – “será adâmico?” – incontrolável: “lançados fomos”.

Metamorfose

Astrid Cabral

Ainda nos chamam
pelos mesmos nomes.
Acaso seremos os mesmos
ou é a cegueira alheia?
Éramos formosos
afortunados donos
de sesmarias de sonhos.
Tínhamos frescor de frondes
ímpetos de fontes e fogos
destemor de duelos, dúvidas
que não machucavam quase.
Éramos potros selvagens
farejando precipícios
pelas pastagens do mundo.

No curral ainda nos sobra
a noção do tesouro perdido
e essa ração de memória
é a esmola que nos cabe.

Em “Metamorfose”, pode-se identificar, ainda, a mesma emoção diante do condicionamento inelutável da vida humana, que condena os sonhos, que apaga as esperanças. Se no poema anterior o sentimento era de perplexidade, no segundo, tudo se transforma em um “tesouro perdido”.

Resíduos

Astrid Cabral

Varre-se a alma
mas entre as gretas
sempre resta
estática poeira.

Jamais devolverás, memória,
a juventude em carne e osso.
O que nos sobra além de fotos
é carne mumificada sem sangue
sem esperança e sem alvoroço.

Dias de sol
e fomos espigas.
Hoje não somos
mais que sabugos.
Onde os grãos?

O poema “Resíduos” retoma o texto anterior, resume-lhe a primeira estrofe nos versos “Dias de sol/ e fomos espigas.”, mas parece negar a última esperança alimentada na última estrofe daquele: “Jamais devolverás, memória,/a juventude em carne e osso.”
No poema “Calamidade”, transcrito abaixo, embora haja uma aparente concretude e cotidianidade no título e no tema – “contidos em urbanas paisagens/eles encharcavam/ não só os chinelos de lama” –, volta a sensação de assombro em “a alma também de espanto”, diante das perenes e cíclicas circunstâncias humanas, mesmo esquecidas por todos. “Antepassados/das chuvas dilúvio” torna a retratar o mesmo ser humano do princípio, jurássico, adâmico.


Calamidade

Astrid Cabral

Águas na sala! Peixes nos quartos!
Quem entenderia?
Degredados das paisagens
contidos em urbanas grades
eles encharcavam
não só os chinelos de lama
a alma também de espanto.
Todos esquecidos
dos troncos derrubados
dos leitos rasos – antepassados
das chuvas dilúvio.

Os três últimos poemas apresentam um olhar subjetivo de um eu lírico, sua individualidade. Mas o sentimento que prevalece nesses poemas ainda é de inadequação diante da vida, ecoando, assim, a mesma inadequação ôntica retratada nos textos anteriores. O coração couraçado e “os cachorros/que uivam em horas de raiva” são a mesma defesa diante dessa realidade.

Coração couraçado

Astrid Cabral

Tempestades em oceanos
ou em copos d'água
e não peço a Deus balsas
barcaças nem praias.
Só um coração couraçado.
Desses que no lombo
das ondas vão sem tombos
o convés em festa
Iluminado.


Cave canem

Astrid Cabral

Dentro de mim há cachorros
que uivam em horas de raiva
contra as jaulas da cortesia
e as coleiras do bom senso.
Solto-os em nome da justiça
tomada de coragem homicida.
Mas sabendo que raiva mata
à míngua de tomar meus cães
vacinei-os. Ladrem mas não mordam
e caso mordam, não matem.

O último poema singulariza, finalmente, a possibilidade de metamorfose do ser humano. Nele, esse ser repete seu destino e encerra sua perplexidade.

Transitória

Astrid Cabral

Enquanto

folhas folham
árvores arvoram
e o dia irradia
sigo

figo
no ramo da tarde.



Até que a noite anoiteça
o fruto apodreça
e na terra em fome

tombe
sem alarde.

Aguardo quem visita este blogue em meus outros dois: Poema Vivo (aqui) e Conto-gotas (aqui).

domingo, 6 de novembro de 2011

O diálogo poético de Neide Archanjo e seus pares

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais - RJ)

A escritora que será apresentada hoje – Neide Archanjo (1940) –, poeta, psicóloga e advogada, embora tenha nascido em São Paulo, mora atualmente no Rio de Janeiro. Recebeu, em 2005, o prêmio de poesia da Academia Brasileira de Letras e participou de vários eventos de promoção da poesia.
Hoje, conheceremos alguns poemas seus, mas, adiante, ampliarei esse estudo, despertado pela intertextualidade – textos que remetem a outros -, pois sua obra, às vezes, leva a de outros autores.
O primeiro poema é metalinguístico, ou seja, usa uma linguagem para refletir sobre essa própria linguagem: o tema eterno da reflexão sobre o ato criativo, que surge em quase todas (os) as (os) escritoras (es).

Da poesia

Neide Archanjo

Esculpo a página a lápis
e um cheiro de bosque
então me aparece.
Que a poesia é feita de romãs
daquilo que é eterno
e de tudo que apodrece.

Os recursos utilizados são bastante peculiares. De início, o vocábulo “esculpo”, inerente a outro tipo de arte, imprime, nesse ato criativo, possibilidades outras, quase uma terceira dimensão, que chega a ser palpável. Na verdade, essa tridimensionalidade se enriquece com a ideia de “bosque” e “cheiro”, que vão além da impassibilidade de estátua, inaugurada pelo verbo inicial. Aparece a dinâmica, a vida na natureza, enfim.
A imagem “a poesia é feita de romãs” retoma essa vida da natureza, citada acima, tornando o ato literário quase um prazer sensorial.
Mas, como queria o movimento modernista, o texto indica que a poesia pode conter qualquer elemento, desvestindo-a da sacralidade que pretendiam os movimentos estéticos anteriores a 1922, aproximando a criação poética do humano: “daquilo que é eterno/e de tudo que apodrece.”

Os dois poemas seguintes de Neide Archanjo remetem, embora não explicitamente, a poemas de outros autores. Vejamos.

Neste mezzo del cammin

Neide Archanjo

Neste mezzo del cammin
carrego comigo obras e cânticos
alguns alheios outros próprios
coisas que escolhi.
Entre vogais e vocábulos
componho a biografia
construção sonora de rostos
reflexos sentimentos
tão grande tão grandes
uns rindo como gralhas
outros mansos
todos não perdidos
pressentida romã entreaberta
assim esta memória existe.
Vou como o discípulo
de um velho pintor chinês
que curvado sob o peso de pincéis
potes de laca
rolos de seda e de papel arroz
sonhava carregar montanhas rios
falcões reais
e se assim sonhava
certamente assim o fazia.

O termo “neste”, junto a “mezzo del cammin” (em italiano, “meio do caminho”) nos faz pressentir que há um outro, o que se torna quase uma certeza, quando lemos adiante “carrego comigo obras e cânticos/ alguns alheios...”: Dante Alighieri, poeta italiano autor de A divina comédia, começa sua obra com “Nel mezzo del cammin di nostra vida...”. Estar no meio do caminho, da vida, supõe-se, é ter um passado – “assim esta memória existe” – e se imaginar um futuro - “Vou como o discípulo/de um velho pintor chinês”. E, como o “velho pintor chinês”, sonhar e fazer.
Um outro poeta, do final do século XIX, Olavo Bilac, já usara o mesmo verso dantesco, para, num inspiradíssimo soneto, assinalar um período da vida de dois amantes.

Nel mezzo del cammin...

Olavo Bilac

Cheguei. Chegaste. Vinhas fatigada
E triste, e triste e fatigado eu vinha.
Tinhas a alma de sonhos povoada,
E a alma de sonhos povoada eu tinha...

E paramos de súbito na estrada
Da vida: longos anos, presa à minha
A tua mão, a vista deslumbrada
Tive da luz que teu olhar continha.

Hoje, segues de novo... Na partida
Nem o pranto os teus olhos umedece,
Nem te comove a dor da despedida.

E eu, solitário, volto a face, e tremo,
Vendo o teu vulto que desaparece
Na extrema curva do caminho extremo

Abaixo serão postados dois poemas. Um, de Manuel Bandeira, antecederá o da poeta aqui focalizada, pois a sua leitura alarga e aprofunda o entendimento e o alcance poético do texto da escritora, que vem depois.

Profundamente

Manuel Bandeira

Quando ontem adormeci
Na noite de São João
Havia alegria e rumor
Estrondos de bombas luzes de Bengala
Vozes, cantigas e risos
Ao pé das fogueiras acesas.

No meio da noite despertei
Não ouvi mais vozes nem risos
Apenas balões
Passavam, errantes

Silenciosamente
Apenas de vez em quando
O ruído de um bonde
Cortava o silêncio
Como um túnel.
Onde estavam os que há pouco
Dançavam
Cantavam
E riam
Ao pé das fogueiras acesas?

— Estavam todos dormindo
Estavam todos deitados
Dormindo
Profundamente.
*
Quando eu tinha seis anos
Não pude ver o fim da festa de São João
Porque adormeci

Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo
Minha avó
Meu avô
Totônio Rodrigues
Tomásia
Rosa
Onde estão todos eles?

— Estão todos dormindo
Estão todos deitados
Dormindo
Profundamente.


Profundamente

Neide Archanjo

Estão todos sentados esta noite.
Estão todos sentados.

A velha mesa respira
mas nadas se aquieta.

Estão todos sentados
mortos e sentados.

E este amor não basta
para carpir os beijos os nomes
os retratos.

(O vocábulo “nadas” está grafado de acordo com todas as cópias encontradas na internet. Não havia uma cópia impressa em mãos. Imagina-se que seja uma oposição intencional a “todos”. Não se pode justificar, segundo a gramatica, entretanto, o verbo “aquieta” no singular.)

Vejo, inclusive, que o conhecimento do texto do poeta justifica o uso do advérbio “profundamente” no título do segundo poema, que, me parece meio vazio gramaticalmente ali. No texto de Bandeira, o advérbio em questão desempenha seu papel gramatical tradicional ao se referir ao verbo “dormindo”, em dois momentos, porém alterando-lhe o sentido, na última estrofe, pois lhe acrescenta a conotação de morte.
Se, no texto da poeta, a palavra “mortos” não deixa dúvidas, o jogo que faz com “sentados” em oposição ao “deitados”, no texto de Bandeira, só se esclarece, quando quem lê se depara, finalmente, com “retratos”. Então, no texto segundo, todos os que estão sentados no retrato também estão “dormindo profundamente” “esta noite”. Há, portanto, uma ligação bastante forte entre os dois textos.
Em 1998, a poeta lança um CD com suas poesias lidas onde há a participação da cantora Maria Bethânia, que empresta sua voz especialmente forte e linda ao texto da outra. Veja o vídeo abaixo. Agradeço ao site YOUTUBE (aqui).




OBRAS:

Primeiros ofícios da memória (1964); O poeta itinerante (1968); Poesia na praça (1970); Quixote tango e foxtrote (1975); Escavações (1980); As marinhas (1984); Poesia 1964 a 1984 (1987); Tudo é sempre agora (1994 – indicado ao prêmio Jabuti); Pequeno oratório do poeta para o anjo (1997); CD coleção Poesia falada, v. VI, “Neide Archanjo por Neide Archanjo”, com participação de Maria Bethânia (1998); Epifanias (1999).



Aguardo sua visita em meus blogues Poema Vivo (aqui) e Conto-gotas (aqui).