Pesquisar este blog

domingo, 27 de junho de 2010

"Coisa de mulher" - Literatura, já 16/Palavras sobre palavras 18

Eliane F.C.Lima

Minha postagem de hoje foi feita tendo como tema a expressão “coisa de mulher”. Logo de cara, devo dizer que ela ecoa o tal “universo feminino”, que traduz apenas a intensidade de um universo cultural, esse verdadeiro, que circunscreve ainda a mulher. Vou passar a palavra, no entanto, a várias poetas. Em seus textos, um “eu” de mulher que fala de si, enfocando de diversas formas, essa questão.


Tal qual um macho

Adélia Prado

Comi em frente da televisão
sem usar faca
e repeti o prato
como os caminhoneiros que falam de boca cheia
e vi um programa até o fim.
Até altas da madrugada
fiquei vendo as moças rebolantes
locutores boçais dizerem
segura meu microfone, gracinha.
Depois fui dormir e sonhei,
voava perseguida por soldados
um voo medroso
temendo me embaraçar na rede elétrica.
Acordei com decepção e ânsias,
macho verdadeiro
sonharia com rebolâncias.

O texto de Adélia Prado tem a riqueza de caracterizar homens e mulheres sob imposições sociais e culturais. Ao penetrar nesse território de “macho verdadeiro”, ferozmente marcado ainda pela sociedade patriarcal, como vão assinalando as ações dos caminhoneiros, dos locutores, dos soldados, as palavras que sobram ao eu de mulher, que se define, são “medroso”, “temendo”, “decepção”, “ânsias”.
Até no mais recôndito do inconsciente – os sonhos – o braço de polvo dessa sociedade grava suas imposições de gênero.


Poema

Martha Medeiros

toda mulher tem um homem que se foi
um homem que a deixou por outra
um homem que a deixou por um câncer
um homem que nem mesmo a notou
um homem que a deixou por um ideal
um homem que sumiu num temporal
um homem que não passou de dois drinques
toda mulher tem um homem que se foi
um homem que foi pego em flagrante
um homem que prometeu um brilhante
um homem que saiu para jogar
toda mulher tem um homem
que esqueceu de voltar


O texto de Martha Medeiros é bem mais claro em sua assunção do tal universo feminino, que, se não é real – só será real em suas consequências socioculturais –, está presente em todas as afirmativas da mídia, agora ajudada pela internet, que ainda insiste em desfiar, minuciosamente, as “características” marcantes das mulheres – e tome de consumista, de indecisa, de superficial. É bem indesejável esse papel de vítima, ou, paradoxalmente, da vilã maligna, como Eva e Lilith. Se substituíssemos todas as palavras “mulher” e “homem”, acima, por “pessoa”, veríamos o quanto o conteúdo ficaria verdadeiro e razoável para qualquer um.
Precisamos observar, contudo, que essa verdade e razoabilidade se dariam, apenas, fora do poema. No mundo poético, há um ser feminino que se avoca as condições que o texto apresenta. E nada mais há a discutir.

Jogo de casa

Astrid Cabral

Sob telhas
centelhas fagulhas borralho
olhos d'água água na talha

Sob telhas
galhos alhos coalhos
molhos repolhos toalhas

Sob telhas
agulhas retalhos
malhas fitilhos ilhoses

Sob telhas
rodilhas presilhas
palmilhas sapatilhas

Sob telhas
mulheres abelhas
colheres talheres

Sob telhas
parelhas filhos filhas
espelhos ilhas

Sob telhas
armadilhas navalhas
batalhas partilhas mortalhas

(Advertência: o segundo e o terceiro versos de cada estrofe do poema acima estão, originalmente, colocados à direita, em relação ao verso que abre cada estrofe, em um desenho bastante peculiar. No entanto, apesar de todas as estratégias, ao se publicar a postagem, tal configuração se redefine na que está visualizada.)


No texto de Astrid, percebo uma questão que transcende ao puramente feminino. Embora a maioria dos versos apresentem substantivos que representam objetos que fizeram parte da vida das mulheres, durante muito tempo, vejo, igualmente todos eles relacionados à ideia de “casa”, que está representada na metonímia “sob telhas”. E surge, então, outra questão: a casa, como vida privada, sempre esteve ligada à condição da mulher, opondo-se à rua – trabalho, diversão, negócios, liberdade –, enfim, ligada a “público” e a homem.
No entanto também posso enxergar nesse “sob telhas” e casa uma referência a relacionamento conjugal ou familiar, o que envolveria, na mesma igualdade, mulheres e homens. Para essa segunda possibilidade, a última estrofe marcaria, como culminância - “armadilhas”, “batalhas” - um sentimento forte de negatividade e crítica frente ao tema, ao que se passaria, “sob telhas”: o jogo de casa.

Pacifista

Helena Ortiz

o esforço para me livrar
dos "homens da minha vida"
foi uma longa e tormentosa
trajetória

agora tenho um gato e somos
razoavelmente neuróticos
todavia
cada coisa respira em seu lugar

O texto de Helena Ortiz, embora tenha como título o vocábulo “Pacifista”, que me soa como uma fina ironia, é extremamente contundente em seu aspecto de renúncia definitiva, embora mantenha, um quê de bonomia ao longo de seus oito versos. Aquele “razoavelmente neuróticos”, porém, deixa escapulir algo de doído em “cada coisa” que “respira em seu lugar.

Termino com Cora Coralina, pseudônimo de Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas (1889 – 1985).

Todas as Vidas

Cora Coralina

Vive dentro de mim
uma cabocla velha
de mau-olhado,
acocorada ao pé
do borralho,
olhando para o fogo.
Benze quebranto.
Bota feitiço...
Ogum. Orixá.
Macumba, terreiro.
Ogã, pai-de-santo...
Vive dentro de mim
a lavadeira
do Rio Vermelho.
Seu cheiro gostoso
d'água e sabão.
Rodilha de pano.
Trouxa de roupa,
pedra de anil.
Sua coroa verde
de São-caetano.
Vive dentro de mim
a mulher cozinheira.
Pimenta e cebola.
Quitute bem feito.
Panela de barro.
Taipa de lenha.
Cozinha antiga
toda pretinha.
Bem cacheada de picumã.
Pedra pontuda.
Cumbuco de coco.
Pisando alho-sal.
Vive dentro de mim
a mulher do povo.
Bem proletária.
Bem linguaruda,
desabusada,
sem preconceitos,
de casca-grossa,
de chinelinha,
e filharada.
Vive dentro de mim
a mulher roceira.
- Enxerto de terra,
Trabalhadeira.
Madrugadeira.
Analfabeta.
De pé no chão.
Bem parideira.
Bem criadeira.
Seus doze filhos,
Seus vinte netos.
Vive dentro de mim
a mulher da vida.
Minha irmãzinha...
tão desprezada,
tão murmurada...
Fingindo ser alegre
seu triste fado.
Todas as vidas
dentro de mim:
Na minha vida -
a vida mera
das obscuras!

Em “Todas as vidas”, o eu poético assume a velha questão da pluralidade dos seres. E o reconhecimento dessas antinomias em si se faz exatamente naqueles aspectos em que a discrição, a humildade, a “vida mera”, como diz, anulam a vaidade, a qual a sociedade de consumo teima em apontar nas mulheres. E esse traço – a ligação com o simples – é o tema central do texto abaixo.

Eu Voltarei

Cora Coralina

Meu companheiro de vida será um homem corajoso
[de trabalho,

servidor do próximo,
honesto e simples, de pensamentos limpos.

Seremos padeiros e teremos padarias.
Muitos filhos à nossa volta.
Cada nascer de um filho
será marcado com o plantio de uma árvore simbólica.
A árvore de Paulo, a árvore de Manoel,
a árvore de Ruth, a árvore de Roseta.

Seremos alegres e estaremos sempre a cantar.
Nossas panificadoras terão feixes de trigo enfeitando
[suas portas,

teremos uma fazenda e um Horto Florestal.
Plantaremos o mogno, o jacarandá,
o pau-ferro, o pau-brasil, a aroeira, o cedro.
Plantarei árvores para as gerações futuras.

Meus filhos plantarão o trigo e o milho, e serão padeiros.
Terão moinhos e serrarias e panificadoras.
Deixarei no mundo uma vasta descendência de homens
e mulheres, ligados profundamente
ao trabalho e à terra que os ensinarei a amar.

E eu morrerei tranquilamente dentro de um campo de trigo ou
milharal, ouvindo ao longe o cântico alegre dos ceifeiros.
Eu voltarei...
A pedra do meu túmulo
será enfeitada de espigas de trigo
e cereais quebrados
minha oferta póstuma às formigas
que têm suas casinhas subterra
e aos pássaros cantores
que têm seus ninhos nas altas e floridas
frondes.

Eu voltarei...

Magnífico texto, é uma celebração da terra e do respeito ao meio ambiente – de fazer inveja aos ecologistas mais radicais –, mas é, principalmente, um hino ao natural, à volta do ser – e aqui há a anulação completa da dicotomia mulher/homem – a suas raízes humanas, de novo ao simples, como no texto anterior. E o poema tem uma forte conotação de revisão do presente nesse “Eu voltarei...”, nesse apostar em um futuro e se comprometer com ele. E um futuro que, sabiamente, aponta para um passado remoto, de início da espécie, quando cada coisa valia por si mesma, destituída de atribuições sociais, culturais e econômicas.
E esse poema foi colocado aqui exatamente, porque esse enunciador poético feminino coloca, acima de todas os problemas de gênero – tornando-os, assim, inteiramente descabidos por sobrepor-lhes outras medidas –, a sua mais urgente questão: a afirmação de sua condição humana.

2 comentários:

ju rigoni disse...

Eliane,

vou falar do que me chamou a atenção em meio às jóias desse seu excelente post.

Primeiro, dizer-lhe que achei muito interessante a substituição que você faz de "homem" e "mulher" por "pessoa" quando comenta o poema da Martha Medeiros. Já o conhecia, mas não me havia estendido tanto em minha interpretação. Esse pequeno grande detalhe dá-lhe uma outra e mais importante dimensão em significados, amenizando aquele "toda mulher" que, decerto, incomoda, quando, claro, fora do poema, pensamos a questão.

"O Pacifista", da Helena Ortiz, foi onde me demorei um pouco mais por conta da escolha de palavras da poeta. Começo pensando os "homens de minha vida"...

Bem, em minha leitura incluo aí pai, filhos, amores, posto que a "trajetória" é "longa e tormentosa." Logo em seguida, dou de cara com o seguinte...

"agora tenho um gato e somos
razoavelmente neuróticos"

A palavra "gato" abre um leque de significados e não está aspeada, como "homens de minha vida", talvez, e só talvez, (porque trata-se da minha leitura), propositadamente, para gerar uma fissura, uma dúvida. Há gatos e gatos. E eles, - os selvagens e os domesticáveis -, têm em comum aquela languidez, aquela preguiça; sempre deitados (os domesticados, no sofá rsrs), sempre ronronando...

Pensei também em "neuróticos" que, do meu ponto de vista (torto) é um transtorno mental que remete aos racionais...

E aí vem o desfecho, ("cada coisa respira em seu lugar"), onde vejo a possibilidade de uma mensagem que contrapõe-se ao conceito midiático de "coisa de mulher"... Ela é capaz de fazer o que deseja sem violentar, ou violentar-se. Assumindo o relógio; preservando, sobretudo, a sua individualidade.

Muito me alonguei por aqui, mas não posso deixar de citar o último poema postado, - essa maravilha da Cora Coralina que me deixa zonza com tanta sensibilidade e beleza.

Eliane, como sempre, faça os devidos abatimentos em meus comentários. rsrs Bjs e inté!

Carmem Teresa Elias disse...

Olá, A figura feminina é fonte inesgotável de poesia...E não apenas a figura (da musa), mas a Voz feminina que manifesta a magnitude do viver... Excepcionalmente no texto de Cora Coralina, acima de toda discussão, está o valor de toda existência humana primorosamente bem destacada na construção de uma simplicidade que abarca a plenitude, tudo transmite e perpetua ...
Carmem Teresa Elias