Pesquisar este blog

domingo, 6 de junho de 2010

Palavras sobre palavras 17

Eliane F.C.Lima

Hoje vou voltar ao conto de Adriana Falcão, analisado em “Literatura, já 13/ Palavras sobre palavras 15”, incentivada pelos comentários ali postados por dois visitantes, que me deram, felizmente, um excelente retorno. Aproveito-me desse texto, ainda, para fixar conceitos, novamente.

Começo citando cinco trechos da introdução de Luís Costa Lima, do livro A literatura e o leitor: textos de estética da recepção - Hans Robert Jauss... et al (2 ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2001), coordenado e traduzido por ele:

... também os textos – e não só os ficcionais – tampouco são figuras plenas, mas, ao contrário, enunciados com vazios, que exigem do leitor o seu preenchimento. Este se realiza mediante a projeção do leitor. A comunicação entre o texto e o leitor fracassará quando tais projeções se impuserem independentes do texto, fomentadas que serão pela própria fantasia ou pelas expectativas estereotipadas do leitor. (pág. 23 – grifo meu, ao usar o azul)

Não é que a regra não se aplique aos [textos] pragmáticos, sucede, contudo, que na situação pragmática as expectativas do leitor podem ser chamadas de homogêneas quanto à intenção autoral. (pág. 23- grifo meu em azul)

A partir daí, poderemos acrescentar: o próprio do texto literário é concentrar-se nos vazios comuns a todas as relações humanas, explorá-los, torná-los sistemáticos. (pág. 24)
Afirmar pois que o texto ficcional se localiza por depositar seu centro de gravidade nos vazios, significa que nele a indeterminação se apresenta em máximo grau, muitas vezes próximo da desorganização entrópica. (pág. 24)
Antes da discussão: Iser1 enfatiza a necessidade de o texto ficcional conter “complexos de controle”, que orientem o processo da comunicação. O próprio desses complexos é tanto orientar a leitura... (pág. 24 - grifo meu, ao usar o azul)

______________
1.Referência a Iser Wolfgang, um dos papas da Estética da Recepção e um dos autores analisados por L.C.Lima


Vamos reencontrar o conto:

Adriana Falcão

Ali, deitada, divagou:
se fosse eu,
teria escolhido lírios.

Vou parafrasear o texto duas vezes:
Ali, deitada na cama (na rede), divagou: se fosse eu, em vez dessas flores que vejo no vaso sobre a mesinha (na jardineira da janela, no jardim), teria escolhido lírios.

Minha ação foi preencher os “vazios” (não escritos, como se notou pelo poema original) que estão no texto da poeta e cuja ausência, justamente, provocam a possibilidade de todas as interpretações. Mas se observe que esses vazios foram preenchidos por mim, limitando-me a uma “situação pragmática”. Eu diria que tal interpretação, dada a obviedade com que se lê o texto e que se transmite, desse modo, à escritora, poderia ser classificada como em grau 1, por assim dizer, por corresponder às “expectativas estereotipadas” de um leitor (de jeito nenhum há intenção de se atribuir uma nota, mas mostrar como se pode ir fugindo ao estereótipo).
Chamo a atenção, ainda, para o fato de que o se escrever esses não escritos foi possibilitado pelos “complexos de controle” (as dicas), que o texto fornece, ou seja, os vocábulos “deitada” e “lírios”, que remete a flores. O uso do “se” e do verbo no futuro do pretérito, instaurando a condicionalidade ou o direito a outra possibilidade (“em vez de”), permite ao leitor inferir que ali estavam outras flores, que não lírios. A palavra “divagou” também se tornou um forte “complexo de controle” para outra leitora, a qual imaginou uma situação em que esse eu lírico, através da memória, fosse transportado para o passado, para uma situação vivida. Desse modo, o grau interpretativo aumentou, por fugir do puramente estereótipo. Mas, como não tenho como averiguar em que consiste essa “situação vivida”, seria leviano de minha parte avaliar a intensidade do grau de interpretação.
Se completássemos os vazios do texto de Adriana, agora, com “deitada no chão do jardim” e com “em vez dessas flores plantadas e que me cercam”, já teríamos uma interpretação bem mais ousada do que a primeira sugerida e que teria exigido muito mais do leitor. Mas, ainda assim, o “chão do jardim” estaria muito circunscrito a essa ideia clichê de flores, que teria limitado a constituição de tal significado.
Valho-me da definição de um comentador, que disse que uma leitura minha seria a mais ousada e surreal - esse fato teria exigido, portanto, de mim e dele, como leitora e leitor, o maior afastamento possível ao pragmático e esterotipado - para chegar a uma última possibilidade, a qual eu assumo como a melhor. E minha interpretação só se deveu ao fato do conhecimento que tenho da prática literária atual e do engenho de Adriana Falcão, orientando-me, assim, para a criação, essa sim, mais audaciosa e longe da escrita prática e do lugar-comum.
E, ainda assim, segui esses “complexos de controle”. A palavra “deitada”, além das possibilidades anteriores, levou-me, ainda, à idéia de caixão, lugar derradeiro onde alguém se deita. E tinha sua probabilidade confirmada, mais até do que com “cama” ou “rede”, por formar com a ideia de flores um conjunto perfeito em termos de atribuição de sentido.
Mas, poeticamente, esse conjunto, como chamei acima, trazia muito mais para o texto: um narrador morto, que divaga, escolhe, opina – olhe o surreal aí –; instauração de um clima de ironia fina e crítica, jogada como quem não quer nada, meio sonsamente.
Quero, no entanto, para aprofundar um conceito anterior, valer-me de um outro poema, de Murilo Mendes (1901 – 1975). Tendo começado sua produção poética com os procedimentos dos modernistas, esse poeta, em sua fase madura, incorporou os elementos do Surrealismo, como técnica de construção e como assunção do caos, característico da imaginação fundada pelo sonho e pelo inconsciente.
Um desses procedimentos é, justamente, fugir das “expectativas estereotipadas”, aquilo que em Análise do Discurso se denomina expectativa de sentido, para, quebrando o que seria lógico, iniciar um novo e inesperado caminho. Usei diversas vezes esse poema em minhas aulas, a propósito de começar o ensino da estética surrealista. Minha estratégia era copiar no quadro o poema, retirando algumas passagens (ver os trechos ressaltados) e pedindo que completassem com o que seria esperável. No segundo verso, saía, invariavelmente, “Dá de comer às galinhas” e, no quinto da segunda estrofe, “Desvia o curso dos rios". Isso, porque a expectativa de sentido, sentido tradicional, tinha criado esses chavões, por assim dizer. A surpresa de alunas e alunos era ver o poema original.

Metade pássaro
Murilo Mendes

A mulher do fim do mundo
Dá de comer às roseiras,
Dá de beber às estátuas,
Dá de sonhar aos poetas.

A mulher do fim do mundo
Chama a luz com um assobio,
Faz a virgem virar pedra,
Cura a tempestade,
Desvia o curso dos sonhos,
Escreve cartas ao rio,
Me puxa do sono eterno
Para os seus braços que cantam.

Em seguida, uma grande brincadeira era proposta. Eu pegava um poema parnasiano e pedia que eles retirassem trechos e completassem, conforme a lição de Murilo Mendes. Obtínhamos resultados surpreendentes e poéticos de textos surrealistas.
Proponho a quem me visita, agora, que ilumine o texto e o copie para um documento do Word. Vá retirando trechos e os substituindo de forma que alterem o sentido lógico, por assim dizer, que o poema parnasiano, cuja pretensão era ser realista, tentava manter. Surpreenda-se ao ver o efeito final. Vale trabalhar mais nele, depois, se desejar. Orgulhe-se de sua obra posteriormente. Não se esqueça de agradecer ao Raimundo Correia a “colher de chá.”

A cavalgada
Raimundo Correia
A lua banha a solitária estrada...
Silêncio!... Mas além, confuso e brando,
O som longínquo vem-se aproximando
Do galopar de estranha cavalgada.
São fidalgos que voltam da caçada;
Vêm alegres, vêm rindo, vêm cantando.
E as trompas a soar vão agitando
O remanso da noite embalsamada...
E o bosque estala, move-se, estremece...
Da cavalgada o estrépito que aumenta
Perde-se após no centro da montanha...
E o silêncio outra vez soturno desce...
E límpida, sem mácula, alvacenta
A lua a estrada solitária banha...

Solicito, finalmente, aos visitantes deste blogue que guardem os conceitos que foram destacados aqui, pois eles serão frequentemente solicitados. E que me perdoem o efeito extravagante dos destaques na cor azul, pois o uso do negrito se mostrou inócuo.

2 comentários:

Tuca Zamagna disse...

Pra variar, mais um belo artigo, mestra. E obrigado pela citação elogiosa. E, mais ainda, por acabar desaguando em Murilo Mendes, um dos meus poetas prediletos. Estou há tempos querendo fazer uma postagem reunindo ele e Jorge de Lima - ambos na fase surrealista, claro. Venho adiando porque não consigo encontrar nenhuma imagem razoável de algum quadro surrealista do Jorge. Fui na mostra sobre as colagens do livro dele "A arte em pânico", na CEF, mas não me deixaram fotografar as obras - maravilhosas, por sinal. Se souber onde eu possa achar, me avise.
Bjs

Marise Ribeiro disse...

Querida Eliane, estava um tanto atrasada com a leitura deste blog, mas a espera valeu a pena. São ensinamentos e análises dignos de uma Doutora em Literatura e, eu, sua discípula, só tenho a lhe agradecer pelas postagens esclarecedoras e enriquecedoras.
Meu carinho,
Marise