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sábado, 5 de dezembro de 2015

Os fenômenos fundamentais da Criação Literária - parte I

(Imagem da Internet)
Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais - Rio de Janeiro)
Conforme anunciei, vou começar a postar alguns comentários sobre a teoria de Käte Hamburger (1896/1992), filóloga, filósofa e teórica literária alemã – primeira mulher a ganhar um grau de pós-doutorado em estudos literários alemães –, desenvolvida no livro A lógica da criação literária, 2.ed, de 2013, da Editora Perspectiva. Minha tentativa será exemplificar com escritores da Literatura Brasileira, para maior entendimento e aproveitamento. Para maiores informações sobre a estudiosa, remeto ao link (Atenção: este link pode levar a um site com cookie./Please: this link can lead to a site with cookie). 
Para conhecer os critérios da linguagem poética, a autora reconhece uma “lógica da criação literária” e opta pelo estudo desse caminho, visitando, indiretamente, uma lógica da poiesis aristotélica, destacando-a da estética da Arte Literária, diferentemente do que sói acontecer com os teóricos dessa área. Vale a pena ler seus trechos abaixo.  


A lógica da Arte Literária tem por objeto a relação da obra com a linguagem , mas relação diferente daquela compreendida pelas teorias acima [a Lógica, a Filosofia, a Teoria do pensamento etc]. Não considera a linguagem em sua função descritiva e expressiva nem por conseguinte o fato mais ou menos trivial de que a Literatura é a arte da linguagem no sentido verbal. É antes desenvolvida a partir da circunstância de que a linguagem como material configurativo da criação literária é ao mesmo tempo o veículo através do qual se realiza a vida humana propriamente dita. (VIII) 

 
A lógica ou lógica linguística da criação literária (…) pode ser designada com maior precisão como teoria da linguagem, que tem por objetivo examinar se e até que ponto a linguagem que produz as formas literárias (afirmação que por ora aceitamos) é funcionalmente diferente da linguagem usual de pensamento e de comunicação. (VIII)


A lógica literária deve ser compreendida, portanto, no sentido de teoria linguística, sendo que esta teoria linguística será desenvolvida a seguir como teoria do enunciado (...)(IX). 


 
Esse afastamento que Käte faz da “estética”, optando pelo estudo da estrutura “lógica”, da regularidade da criação literária, fica claro quando a autora mostra que as leis lógicas de tal criação são absolutas, ou seja, a linguagem origina literatura tanto numa obra como O Otelo, de Shakespeare, como num conto ruim, por exemplo, sem se prender ao sentido estético. As leis lógicas são objeto do conhecimento e desconhecem a noção de positivo ou negativo. Nisso se afastam das leis estéticas, que, ao contrário, são relativas. São conceitos de valor.

O tema fundamental da “lógica” estudada pela teórica alemã é a tensão conceitual entre “criação literária” e “realidade”, que sempre serviu de base às considerações da Teoria Literária. A novidade é que, no livro em questão, “realidade” aparecerá apenas em seu sentido de confronto ou relação com a ficção: de um lado, o modo da realidade da vida humana e, de outro, o modo criado e representado pela Literatura, o “conteúdo” das obras literárias.

Começa aqui um dado interessante do texto em questão: Käte Hamburger, inicialmente, chama a atenção para o fato de que essa tensão “criação literária X “realidade” aponta na direção da literatura narrativa (romance, conto etc) e dramática (teatro), não incluindo o gênero lírico. A justificativa está no estudo de Aristóteles, a sua Poética. Ao contrário do que modernamente se entende, para o filósofo grego, o gênero lírico, a que costumamos chamar de “poesia”, não pertenceria à poieses, mas a outro domínio das obras literárias.

O argumento está em que Aristóteles usava, com identidade de sentido, os termos poiesis e mimeses, uso idêntico, segundo a autora, na obra de Auerbach, Mimesis. Para o grego, a palavra mimesis não significaria apenas “imitação” da realidade, mas a introdução de personagens com seus caracteres, paixões e ações: o escritor deveria falar o menos possível e dar voz livre às personagens, que assumiriam, por si mesmas, suas falas. Isso seria mimesis: o autor narraria de maneira mimética, quando os deixasse falar por si.

Como já se antecipa, o gênero lírico não se utiliza de personagens e que falam prioritariamente por si. A natureza de tal gênero, segundo ela, seria bem outra.

Então já se deve registrar aqui uma primeira conclusão: uma forma literária – literatura ficcional ou mimética, entenda-se –, que faz agentes que falam por si, ou seja, seres fictícios vivendo no modo da mimesis e não da realidade (diferentemente da “lírica”), está no sistema global da Arte Literária. Essa diferença entre narrativa-drama X lírica tem significado para a estrutura lógica do sistema literário.

Como se disse a princípio, a estudiosa alemã escolhe estabelecer os critérios da linguagem poética:


Mas, conforme já o estabelecemos como um problema na introdução, é de fato o material linguístico da criação literária que estabelece finalmente o conceito de realidade e ficção e, através disso, o conceito e o sistema da criação literária em si. (p. 6)

 
Käte propõe que se estude e estabeleça a diferença entre a linguagem da criação literária e a linguagem da realidade para que surja a estrutura que denunciará de que maneira a ficção se distingue da realidade. É aí que se estabelece a tensão conceitual entre criação literária e realidade. Isso propicia tanto a iluminação da fenomenologia da criação literária quanto a da própria realidade.

Então, há um dado a que se deve prestar uma atenção fundamental neste momento e daqui para a frente: como a teórica deseja estabelecer a estrutura da linguagem poética – entendida, veja bem, como da ficção e do drama – começa a examinar os critérios da linguagem não poética – da linguagem comprometida com a realidade –, ou seja, o sistema enunciador da linguagem, conforme declara na página 22:



toda enunciação é uma expressão da realidade, obtendo-se um fundamento para determinar exatamente a relação da linguagem, e, com ela, da criação literária, com a realidade.



Acrescenta adiante “que não é a noção de realidade em si, mas a do enunciado de realidade que fornece o critério decisivo para a classificação dos gêneros literários. (p. 29 – grifo meu).

Em nossa próxima postagem, fixaremos algumas noções, como a de enunciado, a de enunciação, a de sujeito-de-enunciação e de objeto-de-enunciação, todas referentes a esse primeiro conceito de realidade. 



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sexta-feira, 23 de outubro de 2015

FUTURA POSTAGEM

     Caros amigos,
Não tem havido muitas postagens, nos últimos meses, neste espaço. Isso se deve, unicamente, ao estudo a que tenho me dedicado de uma nova teórica literária, que desenvolve aspectos interessantes e inovadores nessa área. Pretendo usar o resultado de sua teoria em futura postagem. Abraços a todos. Agradeço a continuação da visita.

quinta-feira, 11 de junho de 2015

O inédito no recorrente, um dos traços da trama criativa de Marina Colasanti – PARTE II

Eliane F.C.Lima

Novo processo pode ser surpreendido no livro de contos citado na postagem anterior, de Marina Colasanti. Aliás, outros autores já se aproveitaram desse aspecto como ponto de partida. Leiamos o conto primeiramente.

A busca da razão

Sofreu muito com a adolescência.
Jovem, ainda se queixava.
Depois, todos os dias subia numa cadeira, agarrava uma argola presa ao teto e, pendurado, deixava-se ficar.
Até a tarde em que se desprendeu esborrachando-se no chão: estava maduro. 
(COLASANTI, Marina, p. 65)


O que chama logo a atenção é o título, que mantém, indiscutivelmente, um diálogo com o romance de Jean-Paul Sarte (1905-1980), filósofo francês existencialista, livro publicado em 1945, denominado A idade da razão, primeiro volume da trilogia Os Caminhos da Liberdade.  A idade da razão seriam aqueles anos em que se atinge a maturidade, provavelmente nunca antes dos quarenta anos.
Mas aqui há que se chamar a atenção para dois conceitos importantes no que se refere ao uso das palavras e expressões: seu sentido denotativo e conotativo. Utilizemos, novamente, o excelente espaço on-line E-Dicionário de termos literários, de Carlos Ceia, para as definições de denotação e conotação.

Se denotação pode ter uma definição simples, podemos dizer que se trata do uso da palavra em seu sentido usual ou literal. O valor referencial ou denotativo da linguagem ocorre, portanto, quando lhe atribuem o sentido dos dicionários, quando designa determinado objeto, referindo-se à realidade palpável. (Alessandra Vieira – link )


A conotação remete para as ideias e as associações que se acrescentam ao sentido original de uma palavra ou expressão, para as completar ou precisar a sua correcta aplicação num dado contexto. Por outras palavras, tudo aquilo que podemos atribuir a uma palavra para além do seu sentido imediato e dentro de uma certa lógica discursiva entra no domínio da conotação. (link )

Sendo assim, a palavra “maduro”, denotativamente, refere-se a legumes e frutas, quando, completado seu ciclo, estão em ponto de serem colhidos e consumidos. Conotativamente, “maduro” pode referir-se a uma ideia ou projeto, quando estão num ponto ideal de acabamento; a sentimento, quando se refere, por exemplo, a um relacionamento seguro entre duas pessoas; a uma pessoa, quando atinge uma idade  em que as decisões ou atitudes sempre se dão após uma reflexão saudável.
Ao iniciar a leitura do conto, induzida pelo título e pela presença da personagem humana, a pessoa leitora seria levada ao “maduro” conotativo, se não fosse surpreendida – e atropelada interpretativamente – pela denotação do “pendurado” e do “se desprendeu esborrachando-se no chão”, o que leva à ideia de fruto e seus atributos naturais ao termo analisado. A força literária do conto está exatamente aí, nesse jogo denotação/conotação, na interseção desses dois níveis semânticos no desenvolvimento do tema. Essa interseção, do mesmo modo que no conto analisado na postagem anterior, deixa quem lê no instável território do nonsense.
Vale a pena se observar ainda que, mais frequentemente, o recurso literário está em atribuir um campo conotativo ao denotativo, como se viu no conto “No mar sem hipocampos”. No lido acima, a escritora surpreende pela ousadia: ao final da leitura, confusamente, quem lê, percebe que a personagem cair de maduro não se daria por sensatez da idade, isto é, pelo recurso da conotação, mas pela mesma motivação de um fruto consumível, qual seja, um fato marcado pela denotação. Tal conclusão, porém, ainda é precipitada e não se instala, porque não se confirma: o pretenso uso, marcado pela denotação, por ser atribuído a um ser humano, acaba sendo surpreendido como  uma verdadeira acrobacia conotativa de criação literária.

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domingo, 31 de maio de 2015

O inédito no recorrente, um dos traços da trama criativa de Marina Colasanti - parte I

Eliane F.C.Lima
 
Hoje pretendo comentar um aspecto que considero bastante relevante: de onde quem escreve pode partir para criar um texto literário. Conforme comentário meu em outra postagem, já tínhamos percebido que o ponto de partida de Machado de Assis, em Dom Casmurro, era o Otelo, de Shakespeare, inclusive, a citação ao texto anterior sendo frequente no próprio romance.
Esse olhar sobre algo pré-existente à obra, ao qual me referirei agora, é apenas uma possibilidade para a/o artista da palavra, claro. Não se deve tomar como norma e se passar a procurar sempre uma pré-existência como gênese de um texto literário. Tal procedimento, entretanto, pode ser identificado, com frequência, no livro Contos de amor rasgados – Rio de Janeiro, editora Rocco, 1986 –, de Marina Colasanti, e deve ser entendido, apenas, como uma característica de tal obra, sem generalizações sobre a autora nem sobre a literatura como um todo. Deve ser percebido, além disso, que esse “recorrente”, ou seja, o material que é chamado aqui de “pré-existente” e do qual parte a escritora para criar o seu “inédito”, tem naturezas as mais diversas, as quais serão analisadas em momentos diferentes.
Nesta parte I, iremos fazer uma leitura de dois contos, onde se podem identificar, como ponto de partida, duas expressões que são corriqueiras, fazem parte do senso comum e não trazem em si nada de extraordinário. Extraordinário, porém, serão os textos que Marina constrói e o efeito que obtém.


Melhor um mágico na mão do que dois voando

Discretamente maquilado, sorri o pálido rosto do mágico debaixo dos refletores, enquanto no alto a mão volteia, se espalma, e em gesto de quase dança mergulha seca na cartola.
Mas algo parece retê-la lá dentro. Esforça-se o mágico, puxa, joga para trás o peso do corpo. Tenta sorrir para o público. E já o antebraço afunda na cartola, some o cotovelo. Ainda luta cravando a outra mão no tampo da mesinha. Depois os pés. Inútil. O ombro é tragado no vórtice das abas, nem se salvam o pescoço esticado, a cabeça. Diante da platéia expectante que acredita tratar-se de um novo truque, todo o corpo desaparece pouco a pouco, num último adejar das caudas do fraque.
No fundo de cetim preto, triunfa o coelho. Pela primeira vez, conseguiu botar um mágico na cartola.

(COLASANTI, Marina, p. 149)

O título do conto já nos remete à anterioridade do ditado “Mais vale um pássaro na mão do que dois voando”.  Mas o texto em si parte de antigo e conhecidíssimo truque dos mágicos de tirarem coelhos de suas cartolas. Nada de excepcional. O final, no entanto, inverte a lógica da ação. Como se perceberá, essa é uma das técnicas dos contos da obra. É o uso novo sobre o velho, digamos assim, que surpreende quem lê: a subversão torna-se o literário. Podemos ir além e surpreender uma vingança (gostará um coelho de ficar preso em uma cartola e ser retirado pelas orelhas?) do “explorado”, chamemos desse modo. Vê-se que aquele “melhor” do título, mais do que uma escolha do narrador, já é um atributo subjetivo do “vingador” antecipando o que virá no conto. O final de um outro conto – “Com a chegada da primavera”, p. 79 – é também bastante enfático e esclarecedor nesse aspecto:

Aproximou-se o homem com seu canivete e, escolhendo as mais bonitas, degolou-lhes o caule, empunhando o buquê que levaria para enfeitar alguma casa. Não teve tempo de fazê-lo. Antes que deixasse o jardim, as flores o
arrancaram, daninho.

Como se vê, o ditado “Um dia é da caça, outro do caçador” – ditados são exemplos concretos da sabedoria coletiva anterior a qualquer texto – pode ter uma realização literária.

O segundo conto também parte de uma ação corriqueira e que acompanha o ser humano, desde o primitivo: pescar peixes. Mas a escritora consegue criar um texto atual, que, mais do que ficcional, tem um forte apelo poético.

No mar sem hipocampos

Assim que anoiteceu, saiu para pescar. Peixes não, estrelas.
Afastou-se da casa, atravessou um campo até o seu limite.
Na linha do horizonte, sentado à beira do céu, abriu a caixa das frases poéticas que havia trazido como iscas. Escolheu a mais sonora, prendeu-a firmemente na rebarba luzidia.
Depois, pondo-se de cabeça para baixo, lançou a linha no imenso azul, deixando desenrolar todo o molinete.
E paciente, enquanto a Lua avançava sem mover ondas, começou a longa espera de que uma estrela viesse morder o seu anzol.
(COLASANTI, Marina, p.159)


De início, podemos observar o título novamente. O termo “hipocampo” substitui a palavra “peixes”, que seria o esperado. Então, a quebra do “que seria o esperado” já começa a instaurar o nonsense, que é a grande marca dos textos abordados e domina o acima do mesmo modo. E não é só o significado do hipocampo natural – cavalo-marinho – que devemos procurar: hipocampo é também uma personagem fantástica mitológica, metade cavalo, metade peixe, o que nos remete ao gênero “maravilhoso” da literatura. O espaço on-line E-Dicionário de termos literários (link), de Carlos
Ceia, em texto de Isabel Mascarenhas, nos dá uma descrição.

MARAVILHOSO

Género da literatura do (sobre)natural teorizado por Tzvetan Todorov em Introduction à la littérature fantastique (1970). Segundo este autor, o maravilhoso é o género onde se incluem as obras nas quais não é possível qualquer explicação racional para os fenómenos (sobre)naturais. O herói e o leitor implícito de uma narrativa maravilhosa aceitam sem surpresa novas leis da natureza. A definição do género maravilhoso é determinada na relação que Todorov estabelece com os géneros que lhe são próximos, isto é, o género fantástico em que o herói e o leitor mantém a hesitação entre uma explicação natural e (sobre)natural dos fenómenos ao longo da narrativa e o género estranho onde é fornecida uma explicação racional dos fenómenos insólitos, mantendo-se desse modo intactas as leis da natureza. Seguindo o critério dicotómico racionalidade/irracionalidade, os três géneros distribuem-se esquematicamente em género estranho/fantástico/maravilhoso.

Vemos, logo, que esse “mar sem hipocampos” é o céu e mesmo não sendo marcado por tais seres naturais e/ou mitológicos, através da ação da personagem que pesca, mantém seu aspecto de maravilhoso: as expressões “pescar”,  “iscas”,  “linha”,  “molinete”, “ondas”,  “morder o seu anzol” são alteradas em sua “normalidade” por outras, que, relacionadas a elas, pertencem a outro campo semântico 
“estrelas”, “sentado à beira do céu” e, acompanhadas de outras expressões “frases poéticas”, “a mais sonora”, “de cabeça para baixo”, “a Lua avançava sem mover ondas” –, inauguram outra isotopia.*
A poeticidade do texto, então, está no fato de que, para pescar estrelas, é necessário frases poéticas como iscas. Não menos, a humanidade da pessoa leitora. 


* Para outro nível de interpretação e leitura.

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terça-feira, 7 de abril de 2015

"O QUINZE": testemunho da seca, da exploração social e da ultrapassagem dos limites ficcionais de uma mulher - PARTE II

O romance O quinze, de Rachel de Queiroz, tem como tema a seca, mas traz também duas personagens principais – os primos Conceição e Vicente –, que, por assim dizer, conduzem tal enredo. Todas as outras personagens estão a elas ligadas, de uma forma ou de outra. Pertencem os dois, diferentemente do colono retirante, a estrato social privilegiado, pois proprietários de fazenda.
Conceição é professora e, apesar de ter a avó que a criou, morando na fazenda, vive na cidade, onde trabalha. É delineada como diferente das mulheres de sua classe e de seu tempo, pois é culta, lê livros não normalmente dirigidos a moças solteiras e se interessa pela análise de questões sociais e pelas pessoas desvalidas pela sorte. Seu perfil literário apresenta, assim, alguém especial em relação ao conjunto das demais personagens.


Todos os anos, nas férias da escola, Conceição vinha passar uns meses com a vó (que a criara desde que lhe morrera a mãe), no Logradouro, a velha fazenda da família, perto do Quixadá.
Ali tinha a moça o seu quarto, os seus livros, e, principalmente, o velho coração amigo de Mãe Nácia.
Chegava sempre cansada, emagrecida pelos dez meses de professorado; e voltava mais gorda com o leite ingerido à força, reposta de corpo e espírito graças ao carinho cuidadoso da avó.
Conceição tinha vinte e dois anos e não falava em casar. As suas poucas tentativas de namoro tinham-se ido embora com os dezoito anos e o tempo de normalista; dizia alegremente que nascera solteirona.
Ouvindo isso, a avó encolhia os ombros e sentenciava que mulher que não casa é um aleijão...
– Esta menina tem umas ideias!
Estaria com a razão a avó? Porque, de fato, Conceição talvez tivesse umas ideias; escrevia um livro sobre pedagogia, rabiscara dois sonetos, e às vezes lhe acontecia citar o Nordau ou o Renan da biblioteca do avô.
Chegara até a se arriscar em leituras socialistas, e justamente dessas leituras é que lhe saíam as piores das tais ideias, estranhas e absurdas à avó. (p.5)

 
Vicente riu, abanando a cabeça. Depois perguntou já sério:
– Foi por causa da doença que veio só?
Ela riu de novo:
– Só? Eu sempre ando só! Tinha que ver, de cada vez que fosse à escola, arranjar companhia...
– Pois eu pensei que não se usava uma moça andar só, na cidade.
Dona Inácia ajuntou:
– Agora é assim... eu também estranhei... (p.47-48)

 
Conceição estava na escola.
Saía de casa às dez horas e findava a aula às duas. Da escola ia para o Campo de Concentração, auxiliar na entrega dos socorros.
E só chegava de tardinha, fatigada, com os olhos doloridos de tanta miséria vista, contando cenas tristes que também empanavam de água os óculos da avó. (p.45)

 
– Por que Conceição não aparece?
– Está na escola; isto é, a estas horas deve estar no Campo de Concentração.
– Fazendo o quê?
– Ela faz parte do grupo de senhoras que distribuem comida e roupa aos flagelados. (p.47)

 
Dona Inácia tomou o volume das mãos da neta e olhou o título:
– E esses livros prestam para moça ler, Conceição? No meu tempo, moça só lia romance que o padre mandava...
Conceição riu de novo:
– Isso não é romance, Mãe Nácia. Você não está vendo? É um livro sério, de estudo...
– De que trata? Você sabe que eu não entendo francês...
Conceição, ante aquela ouvinte inesperada, tentou fazer uma síntese do tema da obra, procurando ingenuamente encaminhar a avó para suas tais ideias:
– Trata da questão feminina, da situação da mulher na sociedade, dos direitos maternais, do problema... (p. 80)


 
O primo Vicente também se apresenta como uma individualidade em relação às demais personagens. Ao contrário do irmão Paulo, com carreira universitária, sustentado pelos pais em seus estudos e divertimentos na cidade, Vicente entrega-se ao trabalho extenuante, gerindo os colonos, enfrentando a seca para fazer a fazenda render e sustentar os pais e o luxo do irmão, que, formado, lá fica. Forte e bonito, tímido e sério, diferentemente de muitos outros donos de terra, luta para manter seus rebanhos e seus empregados, reconhecendo sua penúria e direitos.


– Por falar em deixar morrer... O compadre já soube que a Dona Maroca das Aroeiras deu ordem pra, se não chover até o dia de São José, abrir as porteiras do curral? E o pessoal dela que ganhe o mundo... Não tem mais serviço pra ninguém.
Escandalizado, indignado, Vicente saltou de junto da jurema onde se encostava:
…............................................................................................................ –  E se a rama faltar, então se pensa noutra coisa. Também não vou abandonar meus cabras numa desgraça dessas... Quem comeu a carne tem de roer os ossos... (p.6)
 
Quem lê a trama naturalmente se depara com a aproximação de Conceição e Vicente, atraídos pela afinidade de seus temperamentos independentes e de seu entendimento sobre a injustiça das disparidades sociais. Aquela dessemelhança de cada um dos dois em relação às demais personagens torna-se a semelhança que os aproxima.

Havia de ser quase um sonho ter, por toda a vida, aquela carinhosa inteligência a acompanhá-lo. E seduzia-o mais que tudo a novidade, o gosto de desconhecido que lhe traria a conquista de Conceição, sempre considerada superior no meio das outras, e que se destacava entre elas como um lustro de seda dentro de um confuso montão de trapos de chita. (p.27-28)

Conceição e Vicente são marcados positivamente em relação a todas as demais personagens e a sedução entre ambos reforça esse dado, o que faz com que a pessoa leitora acabe sendo cooptada pelos dois protagonistas e por todos os valores que carregam. Mesmo que não intencionalmente, o caráter e as ações das duas personagens – bem como suas palavras, evidentemente,  como reflexo desses dois aspectos – passam a ser assinalados por um sinal de exemplo afirmativo.
Porém, por uma informação não de todo confirmada no texto, Conceição, por uma questão de ciúme, desconfia da fidelidade de Vicente e os dois acabam se afastando. O ideal para quem faz a leitura e já se embebeu da positividade daqueles dois caracteres seria que as duas personalidades especiais se completassem. Mas as escolhas da escritora são as escolhas da escritora. Desde a primeira página do romance se vê que o tema não é suave e que não é um texto romântico, semelhante aos do século XIX, bem longe disso. Assim como a seca vem mudar todo planejamento e a esperança daqueles que trabalham a terra, assim também os acidentes sentimentais, os enganos afastam aqueles que deveriam ficar juntos.


O bonde chegou.
Ainda sob a impressão da conversa com a Chiquinha Boa, a moça pensava em Vicente. E novamente sofreu o sentimento de desilusão e despeito que a magoara quando a mulher falava.
“Sim, senhor! Vivia de prosear com as caboclas e até falavam muito dele com a Zefa do Zé Bernardo!”
E ela, que o supunha indiferente e distante, e imaginava que, aos olhos dele, todo o resto das mulheres deste mundo se esbatia numa massa confusa e indesejada...
Que julgara ter sido ela quem lhe acordara o interesse arisco e desdenhoso do coração!...
“Uma cabra, uma cunhã à toa, de cabelo pixaim e dente podre!...” (p. 37)


Mas voltou, sacudindo os cabelos soltos, com os grampos na mão.
– A Chiquinha me contou também uma coisa engraçada... Engraçada, não... tola... Diz que estão falando muito do Vicente com a Josefa do Zé Bernardo...
A avó levantou os olhos:
– Eu já tinha ouvido dizer... Tolice de rapaz!
A moça exaltou-se, torcendo nervosamente os cabelos num coque no alto da cabeça:
– Tolice, não senhora! Então Mãe Nácia acha uma tolice um moço branco andar se sujando com negras? (p. 39)


Mas é aqui que o problema surge, não na “tolice” de Vicente, mas nas palavras de Conceição, em sua avaliação, em sua argumentação – “uma cabra”, “uma cunhã à toa”, “cabelo pixaim” – arrematada pela frase: “um moço branco andar se sujando com negras?”. Sua indignação vai além de uma cena de ciúme e o texto acaba revelando o que até então escondera: o real sentimento de superioridade da moça em relação às classes desfavorecidas que os donos de fazenda da época exploravam, um sentimento de desprezo de pessoa branca em relação ao negro, que, não por acaso, estava preso nessas mesmas classes das quais se tirava partido. Surpreendida fica a pessoa leitora com uma faceta de Conceição que não tinha sido suspeitada. Se Vicente estivesse mesmo cometendo um erro, não seria o de se sujar com negras, mas o de aproveitar-se de sua condição de superioridade econômica e de patrão para obter favores de sua colona. Sabia disso a mesma Zefa do Zé Bernardo, como se vê no trecho:

Conceição estranhou a história e não se pôde conter:
– E ele tem alguma coisa com ela?
A mulata encolheu os ombros:
– O povo ignora muito... Se tiver, pior para ela... Que moço branco não é pra bico de cabra que nem nós... (p. 36)

 
Entretanto, com a continuação da leitura, mais surpresa fica essa mesma pessoa por não ver nenhum abalo na condição de Conceição como personagem de peso estrutural da narrativa. Não terá o narrador – limitemo-nos ao narrador, figura estritamente literária – nenhuma consciência do choque em que se vê essa testemunha leitora do conteúdo do discurso preconceituoso da protagonista? E o alcance que esse discurso pode ter, estando quem lê já exemplarmente “cooptado” pela personagem, verbo que foi usado anteriormente?
Na verdade, sobre toda essa dúvida anterior, há que se trazer um dado extremamente relevante para consideração, ou seja, o ambiente sociocultural da  primeira publicação: o romance de Rachel de Queiroz saiu em 1930 e é necessário que o texto, então, seja analisado sob aquelas condições. Provavelmente para o público que recebeu o romance, à época, o discurso de Conceição não deve ter parecido paradoxal em relação a suas ideias, não deve nem ao menos ter chamado sua atenção, possivelmente sua indignação tendo sido encarada como perfeitamente natural e cabível, ao contrário da receptora/do receptor atual, imbuído já de um espírito crítico em relação às posições preconceituosas. Lembremo-nos dos livros para o público infantil de Monteiro Lobato, como Caçadas de Pedrinho, lançado em 1933, aplaudidos, então, e que hoje indignam um outro público.
A “Teoria da Recepção” ou “Estética da Recepção” reflete exatamente sobre esse fato: segundo essa teoria, as interpretações estão profundamente ligadas ao momento histórico, ou seja, na leitura de uma obra do passado, em um outro momento, há a possibilidade de surgirem novos significados para o texto, antes não revelados e que dependem da nova posição histórica de quem lê. O encontro dos horizontes de expectativas da obra (ver esclarecimentos aqui) com a da/do agente dessa nova leitura em momento histórico diferente do de sua criação vai produzindo novos sentidos.
Dessarte, o contorno da personagem Conceição pode ter mudado, por uma leitura de século XXI. Quem sabe o que lhe descobrirá – afinidade ou rejeição – outro ser leitor, nesses tempos tão contraditórios de redes sociais?



QUEIROZ, Rachel. Obra reunida. V.I (O quinze, João Miguel, Caminho de pedras). Rio de Janeiro: José Olympio, 1989.

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sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

"O QUINZE": testemunho da seca, da exploração social e da ultrapassagem dos limites ficcionais de uma mulher - PARTE I

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais – RJ)


Com a seca que o Sudeste vem enfrentado, neste ano de 2015 – o país tem ignorado o sofrimento do Nordeste todos esses anos –, me veio à lembrança o romance O Quinze (publicado em 1930), de Rachel de Queiroz (1910 - Ceará - 2003 - Rio de Janeiro), a primeira mulher a ser eleita para a Academia Brasileira de Letras, em 1977. O tema subjacente, através da ficção, é a terrível seca de 1915 que fez com que milhares de nordestinos, abandonados à própria sorte por aqueles que os exploravam durante o resto do tempo, tivessem de abandonar suas casas – a maioria trabalhava como colono em terras de pequenos proprietários ou latifundiários – e fugir para a capital, onde havia alguma ajuda do governo. Praticamente isolados em guetos (remeto para o link, onde há notícia mais detalhada sobre isso.), muitos continuavam a passar a fome e a morte, as quais enfrentaram na fuga, sob o sol abrasante. A bagaceira, de José Américo de Almeida (publicado em 1928) trata do mesmo tema, bem como, mais tarde, Vidas secas (1938), de Graciliano Ramos.

O romance da escritora, escrito aos 19 anos, foi recebido com aplausos, mas uma sociedade ainda muito mais machista do que hoje, gostou do texto e, por isso, duvidou da autoria de mulher. A autora fugia dos temas intimistas que as escritoras de então perseguiam. O próprio Graciliano Ramos confessa que, quando leu, imaginou que fosse “pseudônimo de sujeito barbado.”

A explicação literal e sem rodeios estaria nas palavras de outro analista, Augusto Frederico Schmidt, que elogiando o romance diz:


Nada há no livro de D. Rachel de Queiroz que lembre, nem de longe, o pernosticismo, a futilidade, a falsidade da nossa literatura feminina. É o livro de uma criatura simples, grave e forte, para quem a vida existe.


Numa penada só, elogia a escritora, mas ofende todo um segmento enorme da sociedade, o das mulheres e de suas representantes escritoras. Observe-se que, seu critério e definição de “vida” passa, exclusivamente, pela maneira masculina de ver o mundo, o mais não “existe”. Como bom representante da sociedade patriarcal que é, para Schmidt, é o universo feminino que não existe.
Adiante, é possível se surpreender, sem possibilidade de dupla interpretação de seu pensamento, que conceito tem sobre uma mulher, pois vai bastante além de refletir sobre escritoras:



Vê-se bem que a Autora ficou dentro da sua experiência – contentou-se com o que podia fazer –, não foi além das suas possibilidades psicológicas e por isso foi feliz.



É revoltante o encontro de quem lê com as expressões “ficou dentro”, “contentou-se”, “podia”, “não foi além”: o elogio à escritora se deve, justamente, por ela não ter pretendido ultrapassar os limites que a sociedade rigidamente estabelecia para as mulheres e que ele aplaude com veemência. E esse homem é um formador de opinião, cuja publicação saiu em “As novidades literárias, artísticas e científicas”, publicação da época. A avaliação dele a respeito das mulheres é tão depreciativa que, sem muito esforço, pode-se pressentir que ele exorta escritoras – lembremo-nos do que ele achava sobre a literatura feminina de uma maneira geral – a não irem além de “sua experiência “ – de mulher? – e de “suas possibilidades psicológicas” – as mulheres seriam limitadas nesse quesito!

Por outro lado, embora, segundo ele, a autora se prendesse a seus limites psicológicos – ela deve ter percebido que “não passava de uma mulher”, segundo a letra da canção de Martinho da Vila (recomendo a leitura da letra e crítica sobre ela no link.) –, seu tema não é o mesmo da literatura intimista e subjetiva das escritoras de então, fase fundamental e compreensível no começo da assunção das mulheres da reflexão sobre si mesmas. Segundo ele, ela pega um tema masculino – a reflexão sobre a vida social, ou seja, fora dos limites femininos do domus (da casa) –, daí o estranhamento de Graciliano, que “existe” na “vida”, mas o trata sem a arrogância que, de acordo com Schmidt, uma mulher não deve ter. Que diria ele hoje sobre um romance como O matador, de Patrícia Melo?

Na próxima postagem, iremos refletir sobre certos aspectos do texto da escritora.



Visite também meus blogues Poema Vivo (link) e Conto gotas (link).

domingo, 4 de janeiro de 2015

Os diversos caminhos do discurso da poesia: Murilo Mendes

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais - RJ)

Murilo Mendes (1901- Juiz de Fora/ 1975 – Portugal) foi um poeta brasileiro. Participou do Movimento Modernista.
Passou muitos anos de sua vida pela Europa, divulgando a cultura e a literatura brasileiras. Embora possam ser identificadas em sua poesia várias tendências, percebe-se em grande parte delas muitos traços do surrealismo. Recomendo a visita, neste mesmo blogue, a duas postagens que contém poemas e reflexões sobre o poeta (link1 e link2). Vamos ler uma poesia sua agora e refletir sobre  ela.

Solidariedade

Sou ligado pela herança do espírito e do sangue
Ao mártir, ao assassino, ao anarquista,
Sou ligado
Aos casais na terra e no ar,
Ao vendeiro da esquina,
Ao padre, ao mendigo, à mulher da vida,
Ao mecânico, ao poeta, ao soldado,
Ao santo e ao demônio,
Construídos à minha imagem e semelhança.
(MENDES, Murilo. Murilo Mendes – poesia. Rio de janeiro: Agir, 1983. Coleção “Nossos Clássicos. )

Vamos dar uma olhada no texto, analisando os elementos presentes e que serão o roteiro para nossa compreensão. Nele, entramos em contato com um ser poético que, segundo o título, se solidariza com outros seres. Tais seres, embora pertençam ao universo poético, podem ser reconhecidos também numa realidade extratexto. São não só elementos comuns – casais na terra; vendeiro na esquina; mendigo; mecânico; soldado –, mas podem pertencer a um mundo marcado por uma divisão maniqueísta entre Bem – santo; mártir; padre e quase todos os outros elementos anteriormente citados – e Mal – demônio; assassino; anarquista; mulher da vida (a qual dos dois lados pertenceria “poeta”?). Pode-se identificar em “casais no ar” uma presença nitidamente surrealista, um tributo a essa tendência forte de outros textos do autor.
Porém há mais do que solidariedade: esse sujeito poético reconhece em si uma ligação profunda – uma herança, espiritual e carnal, física, do sangue –  com tais seres. Desse modo, ele está ligado aos outros seres, tanto no Bem, quanto no Mal. Seu discurso, em resumo, leva à constatação de que, através de uma herança comum a todos, há nele, carnal e espiritualmente, esses dois atributos.  Pode-se ousar além e dizer que, mais do que uma análise de outros caracteres, é a si mesmo que o eu poético analisa, usando os demais elementos como analogia palpável de si. Esse dado é muito importante e não deve ser esquecido ou desprezado, pois será reconvocado adiante.
A palavra “herança” levanta um outro aspecto indispensável para a discussão do texto: é um “patrimônio” - no caso algo espiritual e carnal – legado ao sujeito lírico (e a todos os citados por ele) por alguém. O enunciador do discurso poético estaria, então, como involuntário beneficiário de algo transmitido a ele por um outro ser.
Essa constatação é importante, visto que se torna contraditória em relação ao último verso, o qual, fechando o poema e não estando ali por acaso, apresenta um aspecto significativo fundamental. É um claro aproveitamento de uma das mais importantes ações de Deus, no Gênesis, primeira parte da Bíblia, livro considerado sagrado por grande parte da humanidade e que faz parte do conjunto cultural e religioso do homem ocidental: “... e, (por fim) disse: Façamos o homem à nossa imagem e semelhança” (Gn, 1, 26). Observemos aqui o chamado “plural deliberativo” (nós), segundo a versão bíblica que consultei. Esse “nós”, no entanto, tem encontrado outras interpretações bem mais polêmicas, mas aqui não vem ao caso.
Desse modo, esse sujeito que enuncia o discurso acaba agregando a si uma dupla – e dúbia – função de agente divino (o doador da herança, pelo verso final, enfaticamente resumido no “minha”) e, no sentido contrário, de paciente (seu beneficiário espiritual e carnal, pelos versos anteriores) de uma ação divina, de criatura ligada a seus pares e, ao mesmo tempo, de seu criador.
E o que mais enriquece o texto é a possibilidade entrevista por quem lê de que esse criador divino faça-se confessor de sua vulnerabilidade, de sua solidariedade espiritual e carnal com suas criaturas, de sua ambivalência entre o Bem e o Mal.