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domingo, 22 de janeiro de 2012

Poesia e língua, o enlace literário em Valéria Tarelho

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais - RJ)

A paulista Valéria Aparecida Tarelho (1962) formou-se em Direito, mas, para sorte nossa, foi tomada pela poesia e passou a se dedicar a ela. Embora tenha começado a escrever em 2002, já tem um campo bastante fértil na Rede, participando dos índices de sites de peso, como o Germina Literatura (aqui), Escritoras Suicidas (aqui), Usina de Letras (aqui).

Além dos sites acima citados, seus poemas podem ser encontrados em Blocos On-line (aqui). Agradeço a tais espaços literários muito do que pude coletar.
Listo como principais sites de Valéria Tarelho, na Internet, Textura (link), Impura Poesia (link), só dela, bem como Proseares, com Sidnei Olívio (link), Poema Dia (aqui) e Poema Curta-metragem (aqui), cuja autoria divide com outros.

Vamos a seus poemas, que são o verdadeiro testemunho de uma escritora. Difícil escolha foi a minha, diante do material que “colhi” – como se fazem às flores – nos vários endereços da Rede, aos quais fui. Em cada um dos textos uma faceta nova se revelou. Depois da análise, porém, o depoimento dado por eles revela uma escritora que conhece profundamente sua língua instrumental. Valéria Tarelho é uma tapeceira que usa esses seus fios linguísticos como ninguém, conhece-lhes a textura, cada cor, a conveniência de cada uso. E o resultado tem sempre um duplo efeito: a revelação de um conteúdo pertinente, envolvido por uma forma que, em última análise, é a verdadeira natureza da poesia.

Parto

Valéria Tarelho

É hora
de içar as velas
e vê-las
(a) mar adentro
(gr) ávidas

O poema acima começa a desvendar o que foi dito sobre “uma escritora que conhece profundamente sua língua instrumental. Apropriando-se dos recursos que as escolas literárias têm desenvolvido por sua vida à fora – o jogo do timbre fechado/aberto e da rima rica de “velas”/“vê-las”, que fez a felicidade dos parnasianos, por exemplo –, foi muito mais além: aproveitando-se da possibilidade lúdica da alternância entre “mar” e “amar”, reforça o segundo termo ao trazer para o texto o vocábulo “grávidas”, que ultrapassa a apenas rima com “ávidas” e, sobrepondo as duas, cria uma terceira e cambiante promessa significativa. É importante, então, visualizar a beleza da imagem dessas velas rotundas pelo vento. O achado da construção é que há dois textos contidos em um só.

Vai idade

Valéria Tarelho

do espelho
ao espólio
é um piscar
de olhos

Deve-se chamar atenção, no poema anterior, além da exploração da proximidade de som e escrita entre palavras, para o fato de que o título, como em vários outros textos da poeta, inicia o campo significativo do poema. É importante se observar que, por um efeito paronímico com o título – semelhança na pronúncia/escrita entre palavras com significados diferentes –, o vocábulo “vaidade” acaba sendo trazido para o texto e seus significados, imbricados, antecipam a entrada do primeiro verso. O resultado é inesperado.

Causas naturais

Valéria Tarelho

overdose
de vaidade
na veia
:
a velha
meia-verdade
morreu
inteira

O título leva o leitor por um caminho que é abruptamente interrompido pela introdução da palavra “overdose”, obstaculizando-o com uma ideia de sentido contrário. Mas a ideia contida nesse sintagma “overdose, na veia”, de tanta intimidade com um leitor urbano, contemporâneo, acostumado aos já chavões midiáticos, se esvazia completamente dessa atualidade de mundo moderno e caótico em seus costumes e usos, para fazer apelo ao mais velho atributo humano, que deve ter vindo com o primeiro ser pensante e que o acompanhará à eternidade: a vaidade, que é, portanto, uma causa tão natural a esse ser. A beleza da poesia está, então, nessa inteligência criativa: do termo comum extrai-se o inédito, o surpreendente. Do momentâneo, a reflexão sobre o que é eterno no ser humano.

Resumo da ata

que o novo rompa
a casca do óbvio
e o poema gema às claras

o pio arcaico que canta de galo
não me leva no bico

O uso de expressões fossilizadas – “canta de galo”, “leva no bico” – , ao serem inseridas no poema, assumem, ao contrário do que se poderia supor, um grande efeito crítico, principalmente, quando são revitalizadas por expressões novas, de igual valor judicativo, embora sem abrir mão do poético, como “pio arcaico”.
Ainda vale a pena chamar atenção para a aparente brincadeira efetuada entre “gema” e “claras” que, introduzida por “casca”, poderia conduzir a leitura por uma isotopia – nível de leitura – completamente outra. Mas o emprego do “gema” verbo – surpreendemos aqui o aproveitamento da homofonia entre substantivo/verbo –, que acaba anexando sua dramática carga semântica, ultrapassa o puro exotismo do trocadilho. A brincadeira deixa de sê-lo justificando-se como um recurso sério e poético.

Viúva negra

Valéria Tarelho

para cada boca
que me sorve
sirvo
o mesmo veneno
vario
conforme o beijo
a dose de ar
cênico

A expressão “viúva negra”, no título, largamente conhecida, prepara um pantanoso terreno de enganos, em que poderá caminhar o leitor, agravado ainda pelos termos “veneno” e “dose” e pela homofonia que se estabelece entre “ar cênico” e “arsênico”, substância reconhecidamente tóxica, desde que não seja identificada a metáfora entre veneno e beijo e o significado do “cênico”, como relativo a uma representação teatral. Desse modo, valendo-se justamente de todo um campo semântico que faz parte do repertório de qualquer leitor comum, a expressão usada no título, no desabrochar do poema, agrega o significado de assassínio das relações humanas amorosas. Ainda aqui continua valendo a observação do domínio seguro e literário, por parte da escritora, das virtualidades da língua.

Abaixo, transcrevo alguns outros poemas de Valéria Tarelho, para simples fruição de seu talento, nesse domingo, o que não é pouco.

Ego

Valéria Tarelho

eis-me aqui
diante do espelho:
um nonsense
face
&
disfarce
eis-me aqui
um contra-senso
reflexo
&
avesso
eis-me aqui
ante meus versos:
uma antítese
imagem
&
miragem
a bem da verdade
reconheço o que viso:
um oásis de vaidade
pregando no deserto
eis-me aqui:
narciso
&
eco

Ballet do adeus

Valéria Tarelho

Na ponta dos pés
em meia ponta
gotas bailarinas
descortinam os olhos
interpretando
o adágio da despedida
Essas aves-meninas
cristalinas
rodopiam suaves
girando em fouetté
no tablado da face
Agonizando
olhos marejados
pelo corpo de baile
vejo-te ao longe
partindo no lago
protagonizando
a coreografia
do último ato

Origami

Valéria Tarelho

Numa tarde qualquer
o amei
Fui o papel espelho
que ele vincou
Ficaram em mim
as marcas desse atropelo
(e de seus dedos)
Enquanto fui só amor para dar
(e medo)
Ele apenas brincou
de me dobrar…

Danúbio azul

Valéria Tarelho

blues, ouvia
de vez em quando.
choro, todos os dias.
meses atrás,
dançava tango.
olhos azuis-siameses,
há mais de ano
a (en)cantam.
em compasso de espera
pelo toque do gato,
ela marcou passo
a três por quatro.
"straussada",
val
sou.

domingo, 1 de janeiro de 2012

Um golpe de naja

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais - RJ)

Para começar de forma radical o novo ano, vamos falar da escritora Branca Maria de Paula, que é mineira de Aimorés. Sua vida literária tem sido marcada pelas premiações, que tem recebido.
É graduada, porém, em Filosofia, tendo se especializado em Filosofia Contemporânea. Mas tem diversas atividades em outras áreas da cultura, tendo trabalhado no jornal Minas Gerais na parte literária e como fotógrafa, outra atividade sua. No cinema, tem participações como roteirista e corroteirista.
Na literatura, estreou em 1978, recebendo um prêmio na prestigiada revista “Status”, da época, embora seu conto - “Fundo Infinito” -, bem como o de Dalton Trevisan e Rubem Fonseca, tenha sido proibido e só publicado no ano seguinte, junto com os dos outros dois, em um encarte separado da revista. O texto deu nome a seu livro em 2005.
A escritora tem uma produção na literatura de poesia e uma bastante fecunda na literatura infanto-juvenil.

Se é mais divulgada sua ficção de feição erótica – a produção de uma mulher nesse campo, gera sempre curiosidade e um certo frisson, num mundo de predomínio de homens e que reserva a si essa parte da natureza humana –, não é apenas sob a sensualidade que são erigidos seus textos. E a linguagem, a forma de estruturar a narrativa, um não compromisso com a realidade palpável dão também um caráter peculiar aos contos de apelo ao carnal ou não. Vamos a alguns

Duas maneiras de ser feliz

Branca Maria de Paula

Esquizofrenizou-se às seis horas da tarde ao som da Ave-Maria, quando uns anjos lhe disseram que largasse tudo e fosse pro convento seduzir a pequena Flor-de-Liz, enquanto outros aconselharam que ela se dirigisse imediatamente ao shopping mais próximo e comprasse lingerie de cor vermelha – aquela com abertura coincidente com as aberturas de nascimento – e subisse lá pros altos da Avenida Afonso Pena que aí sim, ela estaria perto do céu.
Então Marilene deu dois passos pra frente, dois pra trás e ficou paralisada, ouvindo as vozes cada vez mais perto.

O enforcado

Branca Maria de Paula

A rua sobe em curvas pela montanha, em busca de ar fresco e horizontes abertos. Procura uma paisagem singular, distante dos prédios espremidos no miolo da cidade.
Cheia de flor e passarinho, a rua transpira sossego. Alguns gatos pulam de quintal em quintal, desafiando os muros altos.
A brisa da manhã sopra um friozinho bobo, que é melhor ignorar. Mesmo assim, o pé de madressilva estremece.
Um cão raivoso assusta os colegiais, que passam de mochila às costas.
Ninguém vê o corpo que oscila, na varanda da frente do moderno sobrado.

A deusa

Branca Maria de Paula

Comeu-o com muito gosto, estalando a língua e gemendo de prazer. Mas não o fez de maneira selvagem. Ao contrário, foi bastante cortês.
Comeu-o aos poucos, com requinte e sabedoria. Dispôs igualmente de todas as partes, sem rejeitar nenhum ossinho, por miúdo que fosse. Aproveitou tudo tudo, inclusive os dedos dos pés.
Sugou primeiro os lábios carnudos, suspirando delicado.
Quando mordiscava o lombo, gemeu alto. Ao chupar a coxa, quase perdeu a compostura.
Perdeu a compostura ao lamber as partes tenras. Sacrificou-o em grande estilo, arrancando-lhe as vísceras sem sombra de culpa ou tardio remorso. Mas o momento de gozo ela viveu ao devorar-lhe a cabeça.
Ele perdeu a pele, as carnes, ficou nu por fora e por dentro. E ela não teve dó. Arrebatara seu coração. Enfim.

O salvador

Branca Maria de Paula

Então ele me tocou e eu fiquei curada.
O véu da cegueira se rasgou e eu vi: o tisnado da pele, o veludo dos olhos. A saturação do melado: rapadura batida e rebatida, em calor absoluto. Os lábios exatos — café claro e duas pitadas de chocolate.
Lembro antílopes e tigres e esquilos.
Meu sorriso rompe o gelo, já não dói.
Meus membros vencem a crosta de gesso, já não sou uma estátua.
Abro as vidraças.
Ensaio passos de uma nova dança, ouvindo uma música que nem mesmo sei se existe.
Porque ele me assiste*.
* O verbo “assistir”, aqui, significa “acompanhar (alguém) na qualidade de ajudante ou assessor.”, conforme o dicionário Aulete digital.

Golpe de naja

Branca Maria de Paula

Eu nem perguntaria o nome dele.
Iria para um canto qualquer, um vão de escada e, na pressa, talvez fizesse em pedaços a camisa azul.
Minhas mãos aflitas procurariam o caminho e abririam o zíper enquanto eu esfregaria minhas tetas no corpo trêmulo e meteria a perna atrevida entre as pernas do homem, revolucionando os quadris.
Era o que eu pensava naquele carnaval, sentada com os outros em torno da imensa távola redonda, enquanto o macho ao lado, um perfeito estranho, corria a mão pela minha coxa e me lambia a cara com sua língua fogosa.
Não quis ver-lhe o rosto, não me virei, nada fiz. Apenas imaginava a cena e seus desdobramentos. O golpe de naja, o salto primitivo.
Então, num sobressalto, acordei.

No meio da palha

Branca Maria de Paula

Então ele me disse muito sério eu sou o lobo, mas eu não acreditei e fui logo chegando perto, chegando perto. E ele gritou não se aproxime, é perigoso e eu disse quem sabe sou eu, tem muito lobo falso por aí, deixa ver.
Mas eu sou o lobo sim, repetiu mostrando as garras.
Que nada, existe um monte de unhas postiças e rabos e orelhas, tudo de mentira. Quero ver de perto, respondi, sempre caminhando na direção dele e insistindo por favor, deixa ver se é de verdade, eu queria tanto encontrar um lobo – sabe como? – daquele que me comesse de roupa e tudo, de repente, entende? Assim, sem eu esperar. E que tivesse uns olhos grandes pra me enxergar de verdade, umas orelhas grandes pra me escutar de verdade e uma boca que pudesse me engolir inteira e uma língua que me lambesse toda como se eu fosse assim um pirulito e me derretesse como se eu fosse um sorvete até me deixar quentinha, molinha, sem conseguir fazer nada, nem mesmo gritar pedindo socorro, só gemesse baixinho na hora do susto. Um lobo assim vale a pena conhecer.
Que me esperasse atrás da moita e de mim fizesse gato e sapato, sem apelação.
Nem reclamar eu ia. Um lobo de braços grandes, pernas fortes, enorme, e que me colocasse na palma da mão. E que me mordesse sem dó, que me comesse sem piedade. Ah, isso anda tão difícil, nem sei se ainda acontece nos dias de hoje. O mundo mudou muito mesmo. Que me comesse aos bocados, soltando grunhidos de prazer pra floresta toda escutar e estremecer de inveja.
Fui falando assim, falando e me aproximando e notei que as orelhas dele tremiam, que o rabo murchou de repente e que baixou o focinho quando parei na frente dele. E também baixou as pálpebras, envergonhado, quando insisti em olhar ele nos olhos. Tentou ainda um gesto pra me deter. Abriu a boca, mas não conseguiu articular nenhum som. Deu foi um discreto passo pra trás, parecendo assustado.
Então resolvi mudar de tática. Estendi a mão e num gesto rápido arranquei-lhe as patas, as orelhas e o rabo. Comi aquele cordeirinho ali mesmo, no meio da palha, a poucos passos da casa da vovó.

xxxx

Quando da leitura, é interessante se atentar para o ponto de vista de mulher que os textos mantém, subvertendo, quase sempre a perspectiva tradicional de alguns temas: a clara inversão de valores do conto “No meio da palha” ou de “Uma deusa” – repare-se no verbo “comer” tão caro ao vocabulário masculino – inaugura um novo olhar sobre eles. Mais do que contos eróticos esses são contos de sublevação contra uma condição humana.

Obras individuais e de literatura para adultos
A mulher proibida – contos – 1980
Fundo infinito – contos eróticos - 2005