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terça-feira, 7 de abril de 2015

"O QUINZE": testemunho da seca, da exploração social e da ultrapassagem dos limites ficcionais de uma mulher - PARTE II

O romance O quinze, de Rachel de Queiroz, tem como tema a seca, mas traz também duas personagens principais – os primos Conceição e Vicente –, que, por assim dizer, conduzem tal enredo. Todas as outras personagens estão a elas ligadas, de uma forma ou de outra. Pertencem os dois, diferentemente do colono retirante, a estrato social privilegiado, pois proprietários de fazenda.
Conceição é professora e, apesar de ter a avó que a criou, morando na fazenda, vive na cidade, onde trabalha. É delineada como diferente das mulheres de sua classe e de seu tempo, pois é culta, lê livros não normalmente dirigidos a moças solteiras e se interessa pela análise de questões sociais e pelas pessoas desvalidas pela sorte. Seu perfil literário apresenta, assim, alguém especial em relação ao conjunto das demais personagens.


Todos os anos, nas férias da escola, Conceição vinha passar uns meses com a vó (que a criara desde que lhe morrera a mãe), no Logradouro, a velha fazenda da família, perto do Quixadá.
Ali tinha a moça o seu quarto, os seus livros, e, principalmente, o velho coração amigo de Mãe Nácia.
Chegava sempre cansada, emagrecida pelos dez meses de professorado; e voltava mais gorda com o leite ingerido à força, reposta de corpo e espírito graças ao carinho cuidadoso da avó.
Conceição tinha vinte e dois anos e não falava em casar. As suas poucas tentativas de namoro tinham-se ido embora com os dezoito anos e o tempo de normalista; dizia alegremente que nascera solteirona.
Ouvindo isso, a avó encolhia os ombros e sentenciava que mulher que não casa é um aleijão...
– Esta menina tem umas ideias!
Estaria com a razão a avó? Porque, de fato, Conceição talvez tivesse umas ideias; escrevia um livro sobre pedagogia, rabiscara dois sonetos, e às vezes lhe acontecia citar o Nordau ou o Renan da biblioteca do avô.
Chegara até a se arriscar em leituras socialistas, e justamente dessas leituras é que lhe saíam as piores das tais ideias, estranhas e absurdas à avó. (p.5)

 
Vicente riu, abanando a cabeça. Depois perguntou já sério:
– Foi por causa da doença que veio só?
Ela riu de novo:
– Só? Eu sempre ando só! Tinha que ver, de cada vez que fosse à escola, arranjar companhia...
– Pois eu pensei que não se usava uma moça andar só, na cidade.
Dona Inácia ajuntou:
– Agora é assim... eu também estranhei... (p.47-48)

 
Conceição estava na escola.
Saía de casa às dez horas e findava a aula às duas. Da escola ia para o Campo de Concentração, auxiliar na entrega dos socorros.
E só chegava de tardinha, fatigada, com os olhos doloridos de tanta miséria vista, contando cenas tristes que também empanavam de água os óculos da avó. (p.45)

 
– Por que Conceição não aparece?
– Está na escola; isto é, a estas horas deve estar no Campo de Concentração.
– Fazendo o quê?
– Ela faz parte do grupo de senhoras que distribuem comida e roupa aos flagelados. (p.47)

 
Dona Inácia tomou o volume das mãos da neta e olhou o título:
– E esses livros prestam para moça ler, Conceição? No meu tempo, moça só lia romance que o padre mandava...
Conceição riu de novo:
– Isso não é romance, Mãe Nácia. Você não está vendo? É um livro sério, de estudo...
– De que trata? Você sabe que eu não entendo francês...
Conceição, ante aquela ouvinte inesperada, tentou fazer uma síntese do tema da obra, procurando ingenuamente encaminhar a avó para suas tais ideias:
– Trata da questão feminina, da situação da mulher na sociedade, dos direitos maternais, do problema... (p. 80)


 
O primo Vicente também se apresenta como uma individualidade em relação às demais personagens. Ao contrário do irmão Paulo, com carreira universitária, sustentado pelos pais em seus estudos e divertimentos na cidade, Vicente entrega-se ao trabalho extenuante, gerindo os colonos, enfrentando a seca para fazer a fazenda render e sustentar os pais e o luxo do irmão, que, formado, lá fica. Forte e bonito, tímido e sério, diferentemente de muitos outros donos de terra, luta para manter seus rebanhos e seus empregados, reconhecendo sua penúria e direitos.


– Por falar em deixar morrer... O compadre já soube que a Dona Maroca das Aroeiras deu ordem pra, se não chover até o dia de São José, abrir as porteiras do curral? E o pessoal dela que ganhe o mundo... Não tem mais serviço pra ninguém.
Escandalizado, indignado, Vicente saltou de junto da jurema onde se encostava:
…............................................................................................................ –  E se a rama faltar, então se pensa noutra coisa. Também não vou abandonar meus cabras numa desgraça dessas... Quem comeu a carne tem de roer os ossos... (p.6)
 
Quem lê a trama naturalmente se depara com a aproximação de Conceição e Vicente, atraídos pela afinidade de seus temperamentos independentes e de seu entendimento sobre a injustiça das disparidades sociais. Aquela dessemelhança de cada um dos dois em relação às demais personagens torna-se a semelhança que os aproxima.

Havia de ser quase um sonho ter, por toda a vida, aquela carinhosa inteligência a acompanhá-lo. E seduzia-o mais que tudo a novidade, o gosto de desconhecido que lhe traria a conquista de Conceição, sempre considerada superior no meio das outras, e que se destacava entre elas como um lustro de seda dentro de um confuso montão de trapos de chita. (p.27-28)

Conceição e Vicente são marcados positivamente em relação a todas as demais personagens e a sedução entre ambos reforça esse dado, o que faz com que a pessoa leitora acabe sendo cooptada pelos dois protagonistas e por todos os valores que carregam. Mesmo que não intencionalmente, o caráter e as ações das duas personagens – bem como suas palavras, evidentemente,  como reflexo desses dois aspectos – passam a ser assinalados por um sinal de exemplo afirmativo.
Porém, por uma informação não de todo confirmada no texto, Conceição, por uma questão de ciúme, desconfia da fidelidade de Vicente e os dois acabam se afastando. O ideal para quem faz a leitura e já se embebeu da positividade daqueles dois caracteres seria que as duas personalidades especiais se completassem. Mas as escolhas da escritora são as escolhas da escritora. Desde a primeira página do romance se vê que o tema não é suave e que não é um texto romântico, semelhante aos do século XIX, bem longe disso. Assim como a seca vem mudar todo planejamento e a esperança daqueles que trabalham a terra, assim também os acidentes sentimentais, os enganos afastam aqueles que deveriam ficar juntos.


O bonde chegou.
Ainda sob a impressão da conversa com a Chiquinha Boa, a moça pensava em Vicente. E novamente sofreu o sentimento de desilusão e despeito que a magoara quando a mulher falava.
“Sim, senhor! Vivia de prosear com as caboclas e até falavam muito dele com a Zefa do Zé Bernardo!”
E ela, que o supunha indiferente e distante, e imaginava que, aos olhos dele, todo o resto das mulheres deste mundo se esbatia numa massa confusa e indesejada...
Que julgara ter sido ela quem lhe acordara o interesse arisco e desdenhoso do coração!...
“Uma cabra, uma cunhã à toa, de cabelo pixaim e dente podre!...” (p. 37)


Mas voltou, sacudindo os cabelos soltos, com os grampos na mão.
– A Chiquinha me contou também uma coisa engraçada... Engraçada, não... tola... Diz que estão falando muito do Vicente com a Josefa do Zé Bernardo...
A avó levantou os olhos:
– Eu já tinha ouvido dizer... Tolice de rapaz!
A moça exaltou-se, torcendo nervosamente os cabelos num coque no alto da cabeça:
– Tolice, não senhora! Então Mãe Nácia acha uma tolice um moço branco andar se sujando com negras? (p. 39)


Mas é aqui que o problema surge, não na “tolice” de Vicente, mas nas palavras de Conceição, em sua avaliação, em sua argumentação – “uma cabra”, “uma cunhã à toa”, “cabelo pixaim” – arrematada pela frase: “um moço branco andar se sujando com negras?”. Sua indignação vai além de uma cena de ciúme e o texto acaba revelando o que até então escondera: o real sentimento de superioridade da moça em relação às classes desfavorecidas que os donos de fazenda da época exploravam, um sentimento de desprezo de pessoa branca em relação ao negro, que, não por acaso, estava preso nessas mesmas classes das quais se tirava partido. Surpreendida fica a pessoa leitora com uma faceta de Conceição que não tinha sido suspeitada. Se Vicente estivesse mesmo cometendo um erro, não seria o de se sujar com negras, mas o de aproveitar-se de sua condição de superioridade econômica e de patrão para obter favores de sua colona. Sabia disso a mesma Zefa do Zé Bernardo, como se vê no trecho:

Conceição estranhou a história e não se pôde conter:
– E ele tem alguma coisa com ela?
A mulata encolheu os ombros:
– O povo ignora muito... Se tiver, pior para ela... Que moço branco não é pra bico de cabra que nem nós... (p. 36)

 
Entretanto, com a continuação da leitura, mais surpresa fica essa mesma pessoa por não ver nenhum abalo na condição de Conceição como personagem de peso estrutural da narrativa. Não terá o narrador – limitemo-nos ao narrador, figura estritamente literária – nenhuma consciência do choque em que se vê essa testemunha leitora do conteúdo do discurso preconceituoso da protagonista? E o alcance que esse discurso pode ter, estando quem lê já exemplarmente “cooptado” pela personagem, verbo que foi usado anteriormente?
Na verdade, sobre toda essa dúvida anterior, há que se trazer um dado extremamente relevante para consideração, ou seja, o ambiente sociocultural da  primeira publicação: o romance de Rachel de Queiroz saiu em 1930 e é necessário que o texto, então, seja analisado sob aquelas condições. Provavelmente para o público que recebeu o romance, à época, o discurso de Conceição não deve ter parecido paradoxal em relação a suas ideias, não deve nem ao menos ter chamado sua atenção, possivelmente sua indignação tendo sido encarada como perfeitamente natural e cabível, ao contrário da receptora/do receptor atual, imbuído já de um espírito crítico em relação às posições preconceituosas. Lembremo-nos dos livros para o público infantil de Monteiro Lobato, como Caçadas de Pedrinho, lançado em 1933, aplaudidos, então, e que hoje indignam um outro público.
A “Teoria da Recepção” ou “Estética da Recepção” reflete exatamente sobre esse fato: segundo essa teoria, as interpretações estão profundamente ligadas ao momento histórico, ou seja, na leitura de uma obra do passado, em um outro momento, há a possibilidade de surgirem novos significados para o texto, antes não revelados e que dependem da nova posição histórica de quem lê. O encontro dos horizontes de expectativas da obra (ver esclarecimentos aqui) com a da/do agente dessa nova leitura em momento histórico diferente do de sua criação vai produzindo novos sentidos.
Dessarte, o contorno da personagem Conceição pode ter mudado, por uma leitura de século XXI. Quem sabe o que lhe descobrirá – afinidade ou rejeição – outro ser leitor, nesses tempos tão contraditórios de redes sociais?



QUEIROZ, Rachel. Obra reunida. V.I (O quinze, João Miguel, Caminho de pedras). Rio de Janeiro: José Olympio, 1989.

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