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quinta-feira, 21 de abril de 2011

A função da linguagem poética

Eliane F.C.Lima

As considerações que aqui se apresentam têm como objeto as funções poética e emotiva (subjetiva) da linguagem. Ao se falar em funções da linguagem é impossível não se citar o linguista russo Roman Jakobson (1896-1982), do Círculo Linguístico de Moscou, e seu texto Linguística e Poética, compilação de uma conferência de 1956, em que o estudioso comparava a linguagem quotidiana e a linguagem da poesia. Eram estabelecidos ali seis fatores identificados por Jakobson como constituidores do processo comunicativo: o enunciador, o receptor, o código, a mensagem, o contexto (o referente do meio externo), o canal ou meio. Dependendo do enfoque de um desses elementos no ato de linguagem, segundo ele, uma de seis funções predominava sobre as demais, sendo que, seguidamente, se possa reconhecer a presença de várias em um só momento de comunicação. Para maior aprofundamento, remeto ao trabalho do Prof. Dr. Antônio J. S. Brandão (aqui).
Muitas críticas têm sido colocadas atualmente, principalmente depois dos estudos que levaram à Teoria do Discurso e que mostram a complexidade muito maior em jogo em um desses atos. Embora, como se argumenta, não haja apenas um receptor, na maioria das vezes, e um mesmo código utilizado por enunciador/receptor tenha variações imensas, individualmente, imagino que o elemento de partida para as conclusões do linguista sejam sempre o enunciador, o qual prevê sempre um interlocutor ideal, aparadas todas as arestas.
Neste trabalho, serão levadas em conta, especificamente, a função emotiva ou expressiva da linguagem, centrada no emissor/sujeito da mensagem, como tradutora de seus sentimentos e emoções e todos os elementos linguísticos que a revelam em comparação com a função poética (não confundi-la com o conceito popular de poesia como sinônimo de poema), que é o enfoque sobre a mensagem propriamente dita, um trabalho elaborador da mensagem em si e interessado, em primeiro lugar, nela mesma.
A primeira preocupação aqui será salientar que a função poética, na literatura, raramente vem sozinha e, frequentemente, está acompanhada da função emotiva. Através do estudo de dois poemas, de estilos e épocas diferentes, veremos o crescimento óbvio de uma sobre a outra.
Primeiro é preciso dizer que o discurso subjetivo – presença clara do eu enunciador – é o grande traço da função emotiva. Essa presença é evidenciada por pronomes pessoais e possessivos e por verbos na primeira pessoa. Também todos os vocábulos que conotem emoção são um traço desse ego emocionado que se derrama no poema. O estilo de época do Romantismo tem como um dos principais ditames de sua doutrina a presença dominante da função emotiva.

Texto I: Adeus, meus sonhos!

Álvares de Azevedo (poeta do Romantismo - 1831-1852)

Adeus, meus sonhos, eu pranteio e morro!
Não levo da existência uma saudade!
E tanta vida que meu peito enchia
Morreu na minha triste mocidade!

Misérrimo! votei meus pobres dias

À sina doida de um amor sem fruto...
E minh’alma na treva agora dorme
Como um olhar que a morte envolve em luto.

Que me resta, meu Deus?!... morra comigo

A estrela de meus cândidos amores,
Já que não levo no meu peito morto
Um punhado sequer de murchas flores!
(Lira dos vinte anos)


Saliento, no texto, de início, o predomínio da função emotiva gritante em todos os pronomes e verbos em primeira pessoa, destacando-os em negrito, para marcar esse sujeito que não se vexa de se declarar no texto e cuja presença não é poupada. É a si que ele investiga: “amor sem fruto” ou “cândidos amores” são apenas um quase irrelevante motivo para o “dizer-se”.
Atente-se para as expressões – sonhos, triste (mocidade), misérrimo, pobres (dias), (sina) doida, cândidos (amores), (peito) morto, murchas (flores) – que claramente traduzem a emoção conscientemente não contida. É preciso se atentar ainda para o uso reiterado dos pontos de exclamação como recurso para enfatizar a exacerbação de tal emoção.
A função poética, no entanto, está fortemente presente também. É um texto artístico, no qual a função emotiva acontece. As escolhas feitas na elaboração desse discurso, como uma intenção conscientemente artística, caracterizam essa segunda função agora comentada. Vamos aos detalhes:
1.O texto é um poema dividido em três quadras. Cada verso é um decassílabo. A preocupação de se conseguir as dez sílabas foi responsável pela apócope em “E minh’alma na treva agora dorme”. Imagino que essa deva ser uma das causas, ainda, da preferência de “pranteio” (três sílabas) em lugar de “choro” (duas sílabas), além da invulgaridade maior do primeiro em relação ao último termo.
2. A estrutura das estrofes: o primeiro e o terceiro versos, em todas elas não são rimados. A ideia de morte, traduzida em uma palavra com o mesmo radical (morro, morreu – primeira estrofe; morte – segunda estrofe; morra, morto – terceira estrofe), aparece, enfaticamente, em todas as estrofes. Há uma antítese dominante no texto que é “tanta vida que meu peito enchia” X “no meu peito morto”, que resume, praticamente, toda a intenção do texto.

Texto II: A mulher e a casa

João Cabral de Melo Neto

Tua sedução é menos
de mulher do que de casa:
pois vem de como é por dentro
ou por detrás da fachada.

Mesmo quando ela possui
tua plácida elegância,
esse teu reboco claro,
riso franco de varandas,

uma casa não é nunca
só para ser contemplada;
melhor: somente por dentro
é possível contemplá-la.

Seduz pelo que é dentro,
ou será, quando se abra;
pelo que pode ser dentro
de suas paredes fechadas;

pelo que dentro fizeram
com seus vazios, com o nada;
pelos espaços de dentro,
não pelo que dentro guarda;

pelos espaços de dentro:
seus recintos, suas áreas,
organizando-se dentro
em corredores e salas,

os quais sugerindo ao homem
estâncias aconchegadas,
paredes bem revestidas
ou recessos bons de cavas,

exercem sobre esse homem
efeito igual ao que causas:
a vontade de corrê-la
por dentro, de visitá-la.
(J. C. M. Neto – Antologia poética – 4. ed. Rio de Janeiro, J. Olympio, 1978)

O texto modernista de J. Cabral tem especificidades que o tornam bem diferente de um texto romântico, acrescentadas as características do estilo pessoal de tão raro poeta: o controle emocional do discurso, bem entendido, é uma de suas marcas. Então a subjetividade que é o traço fundamental da função emotiva vem aqui quase completamente diluída. Observe-se que os versos “os quais sugerindo ao homem” e “exercem sobre esse homem”, nas duas últimas estrofes, respectivamente, transferem o sentimento de um “eu” enunciador – atente-se para “exercem sobre esse homem/efeito” e “a vontade de” na última estrofe” – para um ser nomeado em terceira pessoa, o que lhe confere uma pretensa objetividade e distanciamento. Porém o “efeito” que exercem, ou seja, “a vontade de”, deixam escapar uma emoção que a custo se contém. “Eu” e “homem” não serão, assim, a mesma pessoa poética?
Examinados, entretanto, todos os adjetivos que vão sendo atribuídos aos diversos aspectos da casa – plácida (elegância); (riso) franco; (estâncias) aconchegadas; (paredes) bem revestidas; (recessos) bons – verifica-se que eles não são simplesmente descritivos, mas carregados de valores afetivos e avaliativos do próprio eu que os enuncia, o que é um claro sintoma do subjetivismo.
Os termos “sedução” e “seduz”, por seu significado, deixam no leitor, igualmente, o entendimento de que há uma relação nada objetiva entre o detentor do discurso poético e a casa enfocada.
Os detalhes acima revelam um “eu” que se pretendia escondido e a função emotiva, finalmente, se mostra, embora sem a relevância do poema de Álvares de Azevedo. Ela se apresenta, como quis o enunciador, em um patamar bem abaixo da função poética.
Pode-se começar a argumentar que o próprio desejo de elaborar um texto artístico contido, sem o extravasamento romântico, já é um dos efeitos da função poética, que tem como intenção dominar os efeitos estéticos no ato criativo.
Os aspectos formais do texto, claramente, revelam ainda tal função: um poema dividido em oito quadras, com versos heptassílabos, sem rimas.
O grande trunfo do poema, que revela de forma cabal a destreza estética, sinal dessa função poética, entretanto, é a metáfora da casa como representação do objeto amoroso. Se à primeira vista a concretude e frieza de uma casa causa um estranhamento e desincentiva a imaginação idealizadora de uma mulher, essa mesma metáfora, vai sendo, aos poucos entendida: contra toda a cultura ocidental, diminui a importância da aparência física da mulher em detrimento do que ela é em seu interior. A estratégia textual é conseguida, principalmente, pela repetição intencional do termo “dentro”, que aparece oito vezes ao longo do poema, em algumas estrofes duas vezes.
É impossível deixar de assinalar a metáfora sensacional de “riso franco de varandas”. Desse modo, percebe-se que a utilização de um recurso poético só depende do engenho da/do poeta. Os modernistas já diziam que qualquer “palavra é palavra poética” e a língua não tem preconceitos dentro de seu léxico, não sendo qualquer vocábulo o filho preferido. É a/o artista que, reunindo-os, faz deles um universo poético.