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domingo, 24 de março de 2013

O texto artístico: um coro polifônico de uma só voz

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais - RJ)
Tenho trabalhado ultimamente com os conceitos de Bakhtin, filósofo russo, que, ao se debruçar sobre a linguagem, acabou penetrando em outros aspectos do saber humano, como a literatura, a linguística, entre outros.
O Círculo de Bakhtin, liderado por Mikhail Bakhitin (1895-1975), era formado por um grupo de estudiosos russos, filósofos e linguistas, liderados por quem dá nome ao grupo, no princípio do século XX, e que tinha como principal entendimento o fato de ver a linguagem e a literatura como o concurso de interações dialogais.
Para melhor entendimento dos vários conceitos que foram plasmados para a posteridade e aproveitados por outros campos de estudos, como a Análise do Discurso, por exemplo, os que mais foram apropriados pelo discurso do público, em geral, são apresentados em forma de verbetes facilmente apreensíveis. De início, deve-se chamar a atenção para o fato de que eles estão essencialmente entrelaçados e se completam.

VOZ: é a presença de alguém que fala no texto. A noção de “fala”, nesse caso, não deve ser confundida com o ato corriqueiro e cotidiano. Em alguns textos, uma determinada voz pode vir bastante dissolvida e só uma leitura arguta a percebe no meio de outra voz predominante. Nesse caso, então, quando houver mais de uma voz, haverá POLIFONIA.


Arguiam-no de avareza, e cuido que tinham razão; mas a avareza é apenas a exageração de uma virtude e as virtudes devem ser como os orçamentos: melhor é o saldo que o deficit.

(Machado de Assis, romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, cap. CXXIII)


No trecho acima, há uma voz dominante, a voz do narrador (Voz 1), identificável a partir daquele “cuido”, em primeira pessoa e que domina o trecho até o final. Porém o verbo em terceira pessoa “Arguiam” plasma um outro sujeito indeterminado, uma voz alheia ao narrador (Voz 2), que diz que a personagem em questão – o pronome “no” remete a uma terceira personagem, que é o objeto da análise do narrador – era avara. Nesse caso, têm-se duas vozes presentes (Voz 1 e Voz 2) e o trecho é marcado pela POLIFONIA. É importante se observar que as duas vozes são discordantes, pois a noção de avareza (da Voz 2) é discutida e recolocada pela Voz 1. A inconsistência, porém, do argumento da Voz 1 faz a pessoa leitora começar a desconfiar da ironia ali presente.

POLIFONIA

Como se viu acima, a polifonia baseia-se na presença das diversas vozes que dialogam entre si num mesmo texto. O concurso dessas variadas vozes pode ser de concordância ou de discordância, como no exemplo dado. Quando se faz uma citação, por exemplo, quase sempre se convoca a fala do citado como uma opinião esclaredora, com a qual se concorda.
Estudos atuais têm identificado, mais minuciosamente, a presença de vozes não claras, que  configuram a polifonia. Em uma frase como “O candidato seria incompetente”, identificam-se duas vozes: uma que é responsável pela frase, mas que escolhe usar o verbo no futuro do pretérito, emitindo a opinião – pela qual ele não se responsabiliza – de uma outra voz que afirmava, sem dúvida, que o candidato “era” incompetente.

DIALOGISMO

O mesmo trecho machadiano acima pode ser dado como exemplo desse conceito, pois ali há duas vozes, que dialogam entre si, colocando, inclusive opiniões opostas sobre o que é avareza e sobre a personagem. A noção de dialogismo tem grande peso no estudo de Bakhtin, pois é, em seu entendimento, inclusive, elemento formador da identidade do indivíduo.
Em relação ao texto, o estudioso afirma que cada novo texto é construído sobre a interação com textos anteriores e se projeta, dialogicamente, não só em relação a seus destinatários, mas aos textos futuros. Essa noção fica bem clara se atentarmos para o fato de que, na noção de dialogismo, está a base para o estágio atual do conhecimento: cada novo passo que a humanidade dá sempre parte de todas as outras descobertas que se acumulam em obras anteriores, quer para desenvolvê-las, quer para retificá-las.

INTERDISCURSIVIDADE

Esse conceito se refere à presença de um discurso anterior, formador de um outro texto, em discurso posterior de outro texto. Dessa forma, pode-se já atentar para o fato de que, ao trazer um discurso anterior, se estabelece uma polifonia, pela anexação daquela voz discursiva anterior ao novo discurso e se cria, por esse fato, um envolvimento dialógico entre essas duas vozes. São analisados dois textos abaixo.



23.

eu não sou nada disso
que você está pensando

por isso venha com calma
que eu conheço este tipo

quer acertar na mosca
acaba errando de sopa

(Martha Medeiros, em Poesia reunida.)



No poema de Martha Medeiros, há um eu lírico que elabora um discurso poético. Mas há a concorrência de pelo menos outras três vozes, que podem ser identificadas. Ao iniciar o primeiro verso com uma negação, esse sujeito lírico recusa todo um discurso mental, implícito naquele “disso” e naquele “está pensando”, o qual um ser intratextual, nomeado como “você”, faz sobre ele. O texto então já começa sua estrutura sobre a polifonia.
Na última estrofe, dois acontecimentos linguísticos trazem para o discurso desse eu poético os discursos, por assim dizer, extratextos. O primeiro, diz respeito à expressão clichê “acertar na mosca”, expressão idiomática da língua portuguesa, que, ao ser empregada no poema, traz para o texto um aspecto que vai além do uso dos vocábulos comuns, traz um discurso pronto, fossilizado, de domínio público.
Uma das características marcantes dos textos da escritora é sua relação com seu tempo. Essa marca exige do locutário – aquela pessoa que recebe a mensagem do poema – um conhecimento, pelo menos, da contemporaneidade cultural, para identificar na última estrofe a voz que se pronunica na canção “Mosca na sopa, de Raul Seixas.”: “Eu sou a mosca/Que pousou em sua sopa/Eu sou a mosca/Que pintou pra lhe abusar.” Então o emprego daquela expressão coletiva – “acertar na mosca” –  tem, ainda, uma intenção segunda, qual seja, a ligação entre “mosca” e “sopa”. Desse modo, o poema apresenta uma interdiscursividade entre o eu lírico e o sujeito discursivo daquela canção. O recurso, pleno de humor crítico, pretende fixar uma oposição entre “acertar” X “errando” e atingir aquele “você”, desautorizadamente pensante, com seu injuriante discurso. No poema, esse eu poético, além de aderir à voz que enuncia na letra da música, trazendo-a para seu próprio texto, estende a seu próprio discurso a espontaneidade e humor que caracterizam a
canção, usando-os a seu favor e intenção.
Mas há um outro caso bastante especial de interdiscursividade na literatura brasileira. É o diálogo que se estabelece entre o discursos de dois sujeitos líricos, em textos diferentes de Manuel Bandeira. Em tais poemas, a peculiaridade interdiscursiva é de tal natureza que permite a quem lê imaginar ser o sujeito lírico o mesmo, não porque a autoria comum seja a causa desse fato, mas por ser o símbolo amoroso dos dois a mesma figura “porquinho-da-índia”.


Porquinho-da-índia

         Manuel Bandeira

Quando eu tinha seis anos
Ganhei um porquinho-da-índia.
Que dor de coração me dava
Porque o bichinho só queria estar debaixo do fogão!
Levava ele pra sala
Pra os lugares mais bonitos mais limpinhos
Ele não gostava:
Queria era estar debaixo do fogão.
Não fazia caso nenhum das minhas ternurinhas...

– O meu porquinho-da-índia foi a minha primeira namorada.

(Manuel Bandeira, em Estrela da vida inteira.)


Madrigal tão engraçadinho

Manuel Bandeira


Teresa, você é a coisa mais bonita que eu vi [até hoje na minha vida, inclusive o [porquinho-da-índia que me deram quando [eu tinha seis anos.
                                                                       (Manuel Bandeira, em Estrela da vida inteira.)



INTERTEXTUALIDADE

O termo foi plasmado por Julia kristeva, membro atuante da crítica francesa, que partiu da ideia de dialogismo, conceito de Mikhail Bakhtin a propósito dos romances de Dostoiévski, donde se originou o conceito de polifonia, que tem como principal condição a diversidade de vozes concorrentes no interior de um texto.
Na intertextualidade, a par da polifonia e suas várias vozes e do dialogismo, há interdiscursividade, não se devendo confundir uma com a outra, pois, nos casos descritos anteriormente, temos a presença dessa última, sem  a colaboração daquela. Só se pode falar em intertextualidade, quando há a presença material de texto preexistente.
Um dos contos presentes na antologia Os cem menores contos brasileiros do século (Organização de Marcelino Freire, Cotia,SP: Ateliê editorial, 2004 (Coleção 5 minutinhos) pode exemplificar, ainda, a diferença entre esses dois conceitos.



           FIM DE PAPO

Antônio Carlos Secchin

Na milésima segunda noite,
Sherazade degolou o sultão.

 

No texto, fica clara a alusão a uma série de elementos do discurso dos contos que compõem a coletânea oriental As mil e uma noites, onde uma princesa, Sherazade, mulher de um sultão, narra histórias, à noite, tentando prolongar sua vida e contrariar o destino das outras esposas anteriores, as quais foram mortas no dia seguinte às núpcias. O discurso do texto de Secchin remete aos elementos mais marcantes do discurso daquela obra. Mas, além de não haver citações textuais, a subversão empreendida – milésima segunda noite, degolou o sultão – tenciona e estabelece um confronto com a obra em si.

No poema abaixo, finalmente, vamos nos deparar com o que estabelece o conceito de intertextualidade. 


  
 33.

tango ensaiado
boca pintada
só de danada
lasco um decote
profundo
rosa vermelha
batom maravilha
só de rasteira
lasco um pingente
na orelha

don't cry for me
segunda-feira
 
(Martha Medeiros, em Poesia reunida.)

    O processo de intertextualidade – identificam-se, nele, também, a polifonia, a interdiscursividade, o dialogismo com a outra obra, enfim – se apresenta pela inserção, ao final do poema, da citação materialmente presente de parte do refrão de “Don't cry for me, Argentina”, de uma canção do musical de 1978,  “Evita”, cuja música é de Andrew Lloyd Webber e letra de Tim Rice, refrão que anexa, destarte, uma segunda voz à predominante do eu textual, para enfatizar o que já havia sido inaugurado com “tango ensaiado” e com toda a descrição da primeira estrofe.
    O inesperado está, entretanto, na mudança do vocativo para “segunda-feira”, o que modifica inteiramente a significância do dito refrão – a pessoa locutária pressente de que forma vai terminar aquela preparação sensual da primeira estrofe – e anula-lhe inteiramente a dramaticidade original. Um quê de humor ainda continua a ser a marca do poema de Martha Medeiros.
Todos os elementos aqui estudados e que se configuram num recurso empreendido pelo escritor, enriquecem-lhe o texto, perpassam seu discurso  com a  riqueza do discurso do outro, mas sempre se submetem e se transformam numa nova criação.

Aguardo sua visita em Poema Vivo (link) e Conto-gotas (link).




domingo, 10 de março de 2013

A nova mulher: o "tornar-se agente" em Castro Alves

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais - RJ)
Na sexta-feira, dia 08-03-2013, foi o Dia Internacional da Mulher. Embora seja apenas um dia, serve para lembrar às mulheres, principalmente, que somos nós que devemos reger nossos destinos. Resolvi trazer um poema de Antônio Frederido de Castro Alves (1847-1871 – poeta baiano, pertencente à terceira geração romântica, mais conhecido por seus poemas abolicionistas). É feito um superficial estudo sobre suas significações, sendo esta apenas uma possibilidade de leitura.

       
O adeus de Teresa

Castro Alves

A vez primeira que eu fitei Teresa,
Como as plantas que arrasta a correnteza,
A valsa nos levou nos giros seus...
E amamos juntos... E depois na sala
“Adeus” eu disse-lhe a tremer co’a fala...

E ela, corando, murmurou-me: “adeus”.

Uma noite... entreabriu-se um reposteiro...
E da alcova saiu um cavaleiro
Inda beijando uma mulher sem véus...
Era eu... Era a pálida Teresa!
“Adeus” lhe disse conservando-a presa...

E ela entre beijos murmurou-me: “adeus!


Passaram tempos... séc’los de delírio...
Prazeres divinais... gozos do Empíreo...
... Mas um dia volvi aos lares meus.
Partindo eu disse – “Voltarei!... descansa!...”
Ela, chorando mais que uma criança, 
Ela em soluços murmurou-me: “adeus!”

 
Quando voltei... era o palácio em festa!...
E a voz d’Ela e de um homem lá na [orquestra
Preenchiam de amor o azul dos céus.
Entrei!... Ela me olhou branca... surpresa!
Foi a última vez que eu vi Teresa!...
 
E ela arquejando murmurou-me: “adeus!”


    Quando se lê o poema do romântico Castro Alves fica evidente que é estruturado sobre uma narração – a par do lirismo predominante, é óbvio –, como base intencional para a construção do verdadeiro e maior significado,  a “narratividade”, a qual domina o texto, conforme se pode compreender através da definição de José Luiz Fiorin, em seu Elementos de análise do discurso (10.ed., São Paulo: Contexto, 2001):


Na realidade, é preciso fazer uma distinção entre narratividade e narração. Aquela [narratividade] é componente de todos os textos, enquanto esta [narração] concerne a uma determinada classe de textos. A narratividade é uma transformação situada entre dois estados sucessivos e diferentes. 

 
    Para se exemplificar concretamente a diferença entre as duas, a narração em que se desenrola todo o texto do poeta baiano, pode ser identificada, por exemplo, nos elementos temporais que vão encadeando uma história que está sendo contada sobre um eu lírico e uma mulher chamada Teresa: “A vez primeira que eu fitei Teresa”,”E depois na sala”; “Uma noite... entreabriu-se um reposteiro...”; “Passaram tempos... séc’los de delírio...”; “Quando voltei... era o palácio em festa!...”; “Foi a última vez que eu vi Teresa!...”.
    No entanto a narratividade – “a transformação situada entre dois estados sucessivos e diferentes” –, embora seja encontrada até num trecho como “Ela me olhou branca... surpresa!” (última estrofe, na qual a figura Teresa passa de um estado de alegria para um estado de negativa surpresa), pode ser avaliada como a verdadeira intenção do discurso total do eu poético, o que seria, afinal, sua configuração lírica: se, no texto, há um enfoque amoroso, o processo em que esse sentimento se dá vai numa metamorfose de sentidos opostos, pois, como o título mesmo sugere, o que era delírio e sensualidade acaba numa cena de despedida, ou em “disjunção”, como nomeia o mesmo Fiorin.
    A leitura do texto identifica duas figuras centrais, qual seja, um eu poético, reconhecível em todos os pronomes de primeira pessoa, e Teresa, o centro amoroso das atenções desse sujeito lírico.
    Um olhar perscrutador, entretanto, identifica um desdobramento na figura desse eu poético. Há, na verdade, duas presenças: um eu enunciador, que olha de um lugar e um tempo diferentes, e narra um fato, como seu objeto, e um outro, que, nomeado até em terceira pessoa, passa a fazer parte desse objeto narrado: “Uma noite... entreabriu-se um reposteiro.../E da alcova saiu um cavaleiro/Inda beijando uma mulher sem véus...”.
    O mais importante, porém, é a presença do termo “adeus”, que percorre todo o poema, marcando uma partida, cuja iniciativa vem sempre do eu lírico, o elemento masculino da relação, que, assim, estabelece, com  suas ausências, a interrupção ou a retomada do evento amoroso. À Teresa, o elemento feminino, só cabe a resposta resignada à ação do sexo oposto.
    Mas uma mudança no estado de ânimo da figura feminina, levada pelo aprofundamento do sentimento amoroso, em relação às partidas do amado, embora não percebida por ele, então, vai sendo sutilmente revelada por esse sujeito lírico que volve seu olhar, já criticamente, do presente para o passado: “E ela, corando, murmurou-me: 'adeus'” (após a primeira estrofe); “E ela entre beijos murmurou-me: 'adeus!'” (após a segunda); “Ela, chorando mais que uma criança,/Ela em soluços murmurou-me: 'adeus!'” (após a terceira).  
    O desfecho do texto, todavia, marca uma mudança radical no aspecto desnivelado dessa relação e na atitude da figura Teresa frente a ela: o  adeus definitivo protagonizado pela mulher, o movimento  no sentido de definir seu próprio destino.
    O título “O adeus de Teresa”, enfático, anula as atitudes do sujeito masculino, diminuindo-o frente à figura feminina, marcada pela importância desse “tornar-se agente”.

Convido a quem me visita a ir também a meus blogues Conto-gotas (link) e Poema Vivo (link).