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sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Entre o humor e a tragédia: a conquista da completude de dois mestres - Comentando... 7

Eliane F.C.Lima

Bem, parece que esta seção anda meio atrasada, se a gente observar quantos números adiante estão as outras. Mas vou comentar, hoje, minha ida ao cinema: fui assistir a “Abraços partidos”, do Almodóvar. Ainda saindo da sala de projeção, falei para uns desconhecidos que estavam cadeiras ao lado: “Ele é mesmo um mestre!”. E todos concordaram.
Deixei o cinema com o peito cheio de satisfação, aquele sentimento que a gente só tem diante de uma grande obra. E fui caminhando e tentando entender o que havia nos filmes do diretor espanhol para dar essa sensação de completude no espectador. E percebi que esse mesmo sentimento me chega, quando assisto aos filmes do Chaplin.
Era exatamente isso. Alguns aspectos de seus filmes fazem os dois estarem muito próximos.
Primeiro, a necessidade que têm de tomar como objeto de seus focos, quase sempre, as pessoas simples, de toda hora.
Depois, as situações inusitadas em que essas mesmas pessoas, às vezes, se encontram. E o bom é que se percebe que a vida é mesmo assim: as coisas não transcorrem dentro do planejado e do bom senso, como se pretende.
Ainda – e talvez isso seja o mais forte – a capacidade de transitar, que ambos têm, sem o menor pudor ou dificuldade, entre a tragédia e o humor, indo de um ao outro na dose e no momento certos.
E essa tragicidade humana que traz para suas obras passa longe do piegas, no diretor atual, tal qual se deu em Chaplin. As emoções de tristeza que provoca no peito alheio são todas simples, sadias, bem-vindas, necessárias. Envolvem e evocam sentimentos humanos que andam meio esquecidos e que é preciso, com urgência, trazer de volta.
Lembro de um sobrinho meu, quatro a cinco anos, para quem exibi “O garoto”, do Chaplin. Viu tudo muito quietinho e compenetrado. Terminado o filme, foi para a varanda. Encontrei-o lá chorando.
Quando a mãe chegou, contei a ela. Nós duas concordamos que o filme e as lágrimas tinham sido bons. O que havia sido despertado nele e descido rosto abaixo eram os sentimentos mais puros e benéficos. Ideal para uma criança, um adulto futuro.
Depois do Almodóvar, fui pela rua com minha humanidade renovada.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

A viagem lírica de Ju Rigoni - Literatura, já / Palavras sobre palavras 10

Ao produzir seus textos, quem faz poesia liga-se à sua época. Mas, nessa estrada que pertence a uma coletividade e a um determinado tempo, vai deixando suas pegadas, marcas indeléveis. E tais sinais são como impressões digitais, pistas pessoais: só seus. Reveladores. De posse do material cultural a que tem acesso, do qual destaca-se a língua para o escritor, vai tecendo suas tramas literárias individuais, seu rastro poético, que marcará e enriquecerá o material cultural inicial.
Hoje apresento Ju Rigoni, poeta e responsável pelo espaço poético denominado Fundo de Mim II (clique aqui e vá até lá para ver tudo), além de mais outros, ali indicados, inclusive o Fundo de Mim, de onde são tirados os dois últimos textos. Posto seus poemas, prova inconteste de que a cultura literária da humanidade está viva, e faço rápidos comentários sobre suas singularidades, no primeiro.

Da viagem e seus extravios...

Ju Rigoni

Fosse adeus ou até logo,
toda partida era aborto.

E parto...
Eu, dando à luz a louca
que me delicia
e mata...

Eu, a janela,...
a porta,...
o porto...
A curiosidade
que transmuda...

Em toda partida
morri um pouco...

Afogada nos sorrisos
banhados em lágrimas,
apartei e apertei corações,
atei e desatei laços...
Toda partida me repartia
em desiguais pedaços,
houvesse, ou não,
a estação,
os beijos,
os abraços...

Partia
e me repartia
na saudade
que me consumia...
antes mesmo
do tempo de sentir
saudade.

Partia e partia-me
no repartir sacrifícios...
Sem avaliar
princípios ou fins,
dividia-me
entre o fim e o princípio...

Misturava tintas
de cores pálidas
sem qualquer talento
para combiná-las...
Transparecia...

Eu e minhas artes...

Bicho-carpinteiro,
praga,
tentando entalhar a vida...
Madeira-de-dar-em-doido...

Partia
para renascer,
preparar-me,
e partir, de novo...

E às vezes penso
que partia e parto
porque, ainda que haja dor,
partir nunca foi o último,
e, sim, o primeiro ato, -
do espetáculo que desafia.

Entre partidas
e chegadas,
desenho cenários,
ensaio,
leio e releio
o texto que não se decora.

E vou indo,...
indo,
indo,...
cultivando infinitos
no meu minifúndio,
aprendendo o mel
e o fel
deste meu hemisfério,
e assim, - quem sabe? -,
desvendando o mistério
que me habita...

Cedo ou tarde,
(tomara, bem mais tarde)
a indesejada linha de chegada...
que é partida,
e que não se reparte.

O inevitável eu
comigo...

Vou chamar a atenção para alguns aspectos que a língua possui e que o escritor pode usar com sabedoria e engenho.
Se o verbo “parto” no presente, no terceiro verso, não suscitaria no leitor a dúvida da homonínia – identidade fonética e/ou gráfica entre palavras de significado e origem distintos –, ligado, que está à idéia de partida na estrofe anterior, a culminância dessa mesma estrofe na palavra “aborto” – partida como interrupção de um processo – cria uma armadilha poética: esse novo vocábulo, a par de resumir as idéias da estância primeira, traz para a segunda a presença do homônimo “parto” substantivo”, o eu lírico reforçando a dúvida, provocativamente, com seu “Eu, dando à luz a louca/que me delicia/ e mata... “ e retomado bem à frente com “... e parto/porque, ainda que haja dor,... “; o leitor, preso em um jogo, o qual revela e esconde, esconde e revela...
Mas a criação artística não tem nenhum compromisso com a clareza ou com a precisão, somente o de provocar no texto as várias possibilidades. É justamente essa imprecisão significativa que faz a poesia ser poesia. O poeta coloca todas as alternativas; o leitor segue aquelas que lhe convém ou é capaz de vislumbrar.
No entanto isso não é apenas um jogo de palavras, malabarismos verbais: promove a pluripotencialidade dos significados dos vários termos mobilizados. E, se a agulha dessa bússola oscila, traz para o texto a gama completa das longitudes e latitudes significativas intercorrentes. Esse é o jogo: diz-se muito, diz-se pouco, diz-se nada, diz-se tudo.
Outro aspecto bastante vigoroso em poesia, e de que a poeta se vale, é a paronímia – palavras que têm som semelhante ao de outras, mas que independem significativamente. Em “...apartei e apertei corações,...”, a utilização lúdica tem um efeito especial: se as duas palavras se entrelaçam fonicamente, no campo do significado, contudo, elas acabam criando uma oposição, embora respeitadas suas especificidades.
Seria um pecado, entretanto, não chamar a atenção para os versos “... cultivando infinitos/ no meu minifúndio,...” e não atentar para o apelo sonoro da repetição de fonemas vocálicos de articulação próxima como /i/ e /u/ e consonânticos como /v/ e /f/, de um lado, e /m/ e /n/, de outro: será intencional? Será coincidência? Será pura intuição poética? De qualquer maneira, a beleza lírica dos dois versos, conseguida com o estranhamento do emprego do verbo “cultivar” para “infinitos” e do paradoxo que existe na ligação entre o último termo e “minifúndio”, vai muito além de seu efeito sonoro: trazer o infinito para dentro de si ou transformar seu interior em um infinito.
A língua tem virtualidades, que estão esperando para serem convocadas por qualquer usuário. O poeta, que sempre pressente isso, pleno de licenciosidade, libertário e libertino, abusa da língua, desvenda-lhe as entranhas, desnuda-a para sua plena satisfação. Dele e do leitor, cúmplice reincidente.
Para quem deseja mais de Ju Rigone, posto outros dois poemas e deixo-os aos cuidados do leitor, sua pura fruição.

Ponto de Interrogação

Ju Rigoni

Este nariz virgulado,
esta boca entre parênteses,
e… aqui!,
entre as sobrancelhas,
dois pontos de exclamação.
No pescoço travessões -,
um para cada frase.
E com quantas reticências
o sol premiou esta face!
Há pontuação: há palavras, -
há erros e acertos há,
que este rosto é pedra bruta,
não conhece perfeição.
As memórias são tantas…
Nele perdeu-se a própria saga.
Mas ainda há vagas
para angústias de todo trato, -
hífens, asteriscos, aspas…
Destacando consoantes
há vogais
no acentuado semblante,
- grave,
cincunflexo til,
agudo trema,
crase…
E à violência de um ponto
que deveria ser final,
uma sucessão de parágrafos…

(O rosto bem junto ao espelho,
e ainda assim não me vejo,
quem é esta que me olha
como quem está de partida?
Quem sou eu?,
é a pergunta
que me segue pela vida…)


Bem-Me-Vi

o espírito encharcado…
A chuva cai com força
aqui, dentro de mim;
aqui, onde não me conheço;
aqui, onde tudo é segredo…
Mas, lá fora, o vento é brando,
e esta manhã tão azul
não combina com meu pranto.
Tento me abandonar,
sair de dentro de mim,
e caminho devagar,
bem devagarzinho,
para não espantar
esse passarinho
que parece fazer ninho
na árvore que eu plantei.
“Bem-te-vi”, ele revela.
Bem-me-viu esse amiguinho
que decide ser vizinho
num momento tão difícil…
Sento-me ao chão da varanda
olhando para o jardim
e pra esse bichinho tão frágil,
de corpo tão delicado,
de canto tão encantado,
que quase me rouba um sorriso!
Meu Deus! Como posso eu,
em meio à tamanha tristeza,
vislumbrar suavidade,
descobrir tanta beleza?…
Como ouso render-me
ao hiato inevitável
que ao meu pai aponta o chão
e a mim a minha árvore
plena de vida com asas?…
Tudo que me consome,
tudo que me corrói,
em beleza ou fúria,
sabe de cor a natureza.
Eu só sei do mistério.
Eu só sei do que eu não sei…
E eu não sei do nunca mais.
Este céu,
este gorjeio,
as ondas quebrando mansinho,
sem parar,
sem parar,
sem parar…
De janeiro a dezembro
aquele novembro que, eu sei!, voltará…
Pé-ante-pé… Levezinho,
como as folhas dançam na brisa.
A saudade é passarinho
fazendo ninho
na minha ibirapitanga…
(Para Amyl, meu pai. 1913-2001)




sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Estudo de "Musa Impassível" - estratégias linguísticas - Literatura de ontem 9

Volte à postagem anterior e leia o soneto "Musa impassível". Resolvi retomar o assunto do segmento anterior para fazer uns esclarecimentos teóricos que considero importantes e que foram apenas mencionados ali. Quero explicar exatamente o “impassível”, anexado à “Musa”, no soneto de Francisca Júlia e o que significa para o Parnasianismo, o estilo de época da escritora.
Primeiro é necessário esclarecer o termo “Musa”: remete a uma das nove divindades da mitologia clássica grega e latina, filhas de Zeus e Mnemósine (deusa da memória), que protegiam as letras, as artes liberais e as ciências.
A presença da musa no poema indica sempre a alusão à inspiração dos poetas, daquele ser pretensamente exterior, que dominaria a criação poética. Claro que esse é apenas um efeito literário.
No soneto citado, ao descrever todas as características de “sua” musa, ao desejá-la impassível, ou seja, imune às paixões e aos outros sentimentos daí advindos, o sujeito lírico fala de si mesmo, de sua maneira de pensar e agir diante do fato poético: contenção da emoção, absoluto domínio de si diante da criação, um trabalho incessante na busca da perfeição textual, tentativa de se evitar o subjetivismo, isto é, a marca forte de seu eu, o que era uma busca incessante do Parnasianismo. Enfim, sufocamento da inspiração pura e simples em proveito do trabalho intelectual. A própria assunção dessa personagem mitológica, que remete à inspiração, é um paradoxo, portanto.
Mas, à luz da Teoria do discurso, vemos que, como todos os outros poetas do parnasianismo, Francisca Júlia esteve longe dessa impassibilidade. Dominique Maingueneau em seu Termos-chave da análise do discurso (1.ª reimpressão, Belo Horizonte: UFMG, 2000), no verbete “subjetividade” diz que “é praticamente impossível encontrar um texto que não deixe aflorar a presença do sujeito falante” (p. 133). Saliente-se que, no caso, ele se refere a qualquer texto, não só ao poético. Começa-se a descobrir que o eu não aparece apenas explicitamente no texto, nos pronomes de primeira pessoa, nos adjetivos que traduzem seus estados de alma, no sentimentalismo, como faziam, por exemplo, os românticos.
Maingueneau vai estudar “as marcas” dessa subjetividade, quer dizer, desse eu que, sem querer, acaba se revelando. Por exemplo: se num texto aparece a expressão “casa grande”, temos aí uma propriedade de um objeto. Mas se encontramos “casa magnífica”, temos, mais do que uma propriedade do objeto, mas um julgamento de valor, uma reação emocional do enunciador, que podia estar pretendendo fazer uma descrição objetiva e contida. Sem querer, há a clara presença desse eu.
O estudioso faz uma análise teórico minuciosa, mas aqui citarei apenas o que são as “tomadas de posição” do sujeito lírico do soneto em questão, mostrando que ele não é desapaixonado nem impassível. Parecendo falar de um elemento exterior a si, a criação literária, e exortando à contenção emocional, o que esse ser enunciador faz é jogar-se inteiramente em suas escolhas linguísticas. Aliás, a própria noção de “escolha” – preferência, predileção – já está a assinalar a presença de um eu arbitrário. Ao empregar determinado verbo ou adjetivo, o sujeito enunciativo mostra inteiramente suas preferências ou avaliações sobre o que fala.
Ele nega qualquer gesto de dor ou lágrima para seu eu, que ele nomeia como musa, tentando evitar o sentimentalismo. Mas ao empregar o verbo “afeie” para semblante, em lugar, por exemplo, de “modifique”, a emoção já guiou sua opção.
Prosseguindo, esse enunciador deseja uma série de procedimentos poéticos que “cante aos ouvidos d’alma”. Bem, a escolha de todos esses elementos, desde o próprio verbo cantar, é de uma subjetividade extrema. Imaginar-se ouvidos d’alma não tem nada de objetivo ou impassível. Observemos as expressões adjetivas de “sincero luto”, “cândido semblante”, “sobrecenho austero”, que, somadas à atribuição “d’ouro” para hemistíquio – metade de um verso – são pessoais, são afetivas e, nesse caso, completamente emocionais.
A última estrofe termina por completar o derramamento sentimental naqueles “bárbaros ruídos”. Se o enunciador poderia escolher o adjetivo sinônimo “rude”, que já seria avaliativo, e portanto subjetivo, imagine-se a opção por “bárbaros”, que, além de ter o mesmo significado, ainda agrega uma séria de dados culturais e históricos (aconselho a consulta a um bom dicionário e a leitura de todo o verbete).
A estrofe, a partir daí, se fecha em duas construções que podem ser vistas, no mínimo, como duas comparações para “versos”: “áspero rumor de um calhau que se quebra” e “surdo rumor de mármores partidos”. Na primeira, o leitor se depara com uma sinestesia, que é a construção de uma expressão que apela a dois sentidos diferentes: “áspero” remete ao tato e “rumor” à audição.
Ora, utilizar figuras de linguagem é abrir mão da linguagem objetiva de um discurso que se quer impassível, em prol da via poética, que é polissêmica e aponta vários caminhos, não só para o leitor, como para o próprio sujeito enunciador. Quem fala através da linguagem figurada quer tudo, menos fugir à emoção.

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

A emoção transbordante de uma musa impassível da literatura - Literatura de ontem 9

Francisca Júlia da Silva (1871-1920) era uma escritora paulista, de índole poética parnasiana, cujo nome, em suas primeiras publicações, foi entendido, segundo o preconceito da época, como um pseudônimo de autor masculino, como já ocorrera com Narcisa Amália, escritora romântica. Negava-se que uma mulher pudesse fazer literatura e bem. João Ribeiro, que mais tarde prefaciou sua primeira obra, de tanto que passou a admirá-la – Mármores –, assumiu para si um pseudônimo também e começou a criticar as obras publicadas, convencido de que eram de Raimundo Correia.
A escritora fez um enorme sucesso de público, chegando a ser comparada à tríade masculina parnasiana que dominava a cena literária da época – Olavo Bilac, Raimundo Correia e Alberto de Oliveira –, o que, se conclui, era um feito e tanto. O próprio Bilac teceu elogios a ela.
Teve tanto prestigio que, ao morrer, recebeu em sua tumba uma estátua feita por Vítor Brecheret, o famoso escultor modernista, a Musa Impassível, nome que remetia a um de seus sonetos mais famosos. Por sua beleza, a estátua que foi redescoberta em 1992, foi substituída por uma de bronze e a original foi levada para a Pinacoteca do Estado de São Paulo, em 13-12-2006, para ser visitada pelo público.

Foto 1
Foto 2












Foto 1: Musa impassível - Vítor Brecheret - Estátua original transplantada.
Foto 2: Estátua de bronze, agora, no túmulo (Fonte, site do escultor Vítor Brecheret - clique aqui).

Embora seja afiliada ao Parnasianismo (conferir características no poema Musa Impassível I), que pretendia a perfeição da forma e a contenção das emoções na criação – daí o “musa impassível” –, o que de início já contraria o fazer poético, em suas últimas obras vislumbram-se características do Simbolismo, principalmente no sentimento místico.
Mas a biografia da poeta continua atraente, pois sua morte remete para um romantismo explícito, feição da escola literária anterior à sua prática literária: tendo seu marido, por quem era apaixonada, morrido no dia 31 de outubro, de tuberculose, a escritora, após o velório, toma uma dose grande de calmantes e morre no início do dia seguinte.
OBRAS : 1895 - Mármores; 1899 - Livro da Infância; 1903 - Esfinges; 1908 - A Feitiçaria Sob o Ponto de Vista Científico (discurso); 1912 - Alma Infantil (com Júlio César da Silva, poeta e irmão); 1921 - Esfinges - 2a ed. (ampliada); 1962 - Poesias (organizadas por Péricles Eugênio da Silva Ramos).

Musa impassível I

Francisca Júlia
Musa! um gesto sequer de dor ou de sincero
Luto jamais te afeie o cândido semblante!
Diante de um Jó, conserva o mesmo orgulho, e diante
De um morto, o mesmo olhar e sobrecenho austero.

Em teus olhos não quero a lágrima; não quero
Em tua boca o suave e idílico descante.
Celebra ora um fantasma angüiforme de Dante;
Ora o vulto marcial de um guerreiro de Homero.

Dá-me o hemistíquio d'ouro, a imagem atrativa;
A rima cujo som, de uma harmonia crebra,
Cante aos ouvidos d'alma; a estrofe limpa e viva;

Versos que lembrem, com seus bárbaros ruídos,
Ora o áspero rumor de um calhau que se quebra,
Ora o surdo rumor de mármores partidos.

Mármores (1895) - Remeto ao interessante site da USP, Brasiliana, onde se encontra a reprodução desta obra da época, clicando aqui.

No poema abaixo, é interessante notar a feminilização de uma personagem mitológica quase sempre apresentada no sexo oposto.

Dança de centauras

Francisca Júlia

Patas dianteiras no ar, bocas livres dos freios,
Nuas, em grita, em ludo, entrecruzando as lanças,
Ei-las, garbosas vêm, na evolução das danças
Rudes, pompeando à luz a brancura dos seios.
A noite escuta, fulge o luar, gemem as franças;
Mil centauras a rir, em lutas e torneios,
Galopam livres, vão e vêm, os peitos cheios
De ar, o cabelo solto ao léu das auras mansas.

Empalidece o luar, a noite cai, madruga...
A dança hípica pára e logo atroa o espaço
O galope infernal das centauras em fuga:

É que, longe, ao clarão do luar que empalidece,
Enorme, aceso o olhar, bravo, do heróico braço
Pendente a clava argiva, Hércules aparece...

No último poema postado, já se percebe a preocupação mística e, além da pretensa frieza parnasiana, a emoção vindo à tona.

À Santa Teresa

Francisca Júlia

Reza de manso... Toda de roxo,
A vista no teto presa,
Como que imita a tristeza
Daquele círio tremulo e frouxo...

E assim, mostrando todo o desgosto
Que sobre sua alma pesa,
Ela reza, reza, reza,
As mãos erguidas, pálido o rosto...

O rosto pálido, as mãos erguidas,
O olhar choroso e profundo...
Parece estar no Outro-Mundo
De outros mistérios e de outras vidas.

Implora a Cristo, seu Casto Esposo,
Numa prece ou num transporte,
O termo final da Morte,
Para descanso, para repouso...
(...)

Reza de manso, reza de manso,
Implorando ao Casto Esposo
A morte, para repouso,
Para sossego, para descanso

D'alma e do corpo que se consomem,
Num desânimo profundo,
Ante as misérias do Mundo,
Ante as misérias tão baixas do Homem !

Quanta tristeza, quanto desgosto,
Mostra na alma aberta e franca,
Quando fica, branca, branca,
As mãos erguidas, pálido o rosto...

O rosto pálido, as mãos erguidas,
O olhar choroso e profundo,
Parece estar no Outro-Mundo
De outros mistérios e de outras vidas...