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quinta-feira, 26 de novembro de 2009

O epitáfio poético de Ana Cristina César

Apesar da escritora aqui postada, prematuramente, já fazer parte do passado, pela atualidade de seu texto e pela ciranda que compõe com duas outras, bem vivas e atuantes, dou seus poemas nesta seção. Ana Cristina Cruz César (1952-1983) ou Ana C., como se autodenominava, era carioca de uma culta família de classe média. Escreveu em jornais e revistas alternativas, fez crítica literária e escreveu boa poesia. Fez parte de um grupo chamado de poesia marginal ou de mimeógrafo, dos anos 70, geração fecunda da qual fizeram parte Chacal, Cacaso, Francisco Alvim e Paulo Leminski (já postado neste blogue). Foi ela mesma que produziu e financiou seus livros de poema Cenas de abril (1979), Correspondência completa (1979) e Luvas de pelica (1980).
De poesia, podemos citar seus livros A Teus Pés (publicado pela Editora Brasiliense ainda em vida - 1982); Inéditos e Dispersos (póstumo - 1985); Novas Seletas (póstumo, organizado por Armando Freitas Filho). Ficou conhecida num livro chamado 26 poetas hoje, organizado por Heloisa Buarque de Hollanda, em 1976. Seu suicídio em 1983, surpreendeu o público. A última estrofe do poema abaixo, de autoria de Ana Cristina, parecia antecipar o fato.


Tenho uma folha branca
e limpa à minha espera:
mudo convite



tenho uma cama branca
e limpa à minha espera:
mudo convite



tenho uma vida branca
e limpa à minha espera.

O poema de Cacaso (Antônio Carlos de Brito), contemporâneo e marginal como a poeta, cuja partida também foi prematura, traduz a estupefação geral.

Ana Cristina

Cacaso

Ana Cristina cadê seus seios?
Tomei-os e lancei-os
Ana Cristina cadê seu senso?
Meu senso ficou suspenso
Ana Cristina cadê seu estro?
Meu estro eu não empresto
Ana Cristina cadê sua alma?
Nos brancos da minha palma
Ana Cristina cadê você

Estou aqui, e você não vê?


Posto abaixo uma seleção de belos poemas da escritora.

Poema I

Ana Cristina César

Acreditei que se amasse de novo
esqueceria outros
pelo menos três ou quatro rostos que amei
Num delírio de arquivística
organizei a memória em alfabetos
como quem conta carneiros e amansa
no entanto flanco aberto não esqueço
e amo em ti os outros rostos


Poema II

Este Livro

Ana Cristina César

Meu filho. Não é automatismo. Juro. É jazz do
coração. É prosa que dá prêmio. Um tea for two
total., tilintar de verdade que você seduz,
charmeur volante, pela pista, a toda. Enfie a
carapuça.
E cante.
Puro açúcar branco e blue.


Poema III

Nada, Esta Espuma

Ana Cristina César

Por afrontamento do desejo
insisto na maldade de escrever
mas não sei se a deusa sobe à superfície
ou apenas me castiga com seus uivos.
Da amurada deste barco
quero tanto os seios da sereia.

Poema IV

Poesia

Ana Cristina César

jardins inabitados pensamentos
pretensas palavras em
pedaços
jardins ausenta-se
a lua figura de
uma falta contemplada
jardins extremos dessa ausência
de jardins anteriores que
recuam
ausência frequentada sem mistérios
céu que recua
sem pergunta

(Este poema foi usado como uma das epígrafes de minha Tese de doutorado, do capítulo 6, denominado “O palco do indeciso”.)


Poema V

Samba-canção

Ana Cristina Cesar

Tantos poemas que perdi.
Tantos que ouvi, de graça,
pelo telefone – taí,,
eu fiz tudo pra você gostar,
fui mulher vulgar,
meia-bruxa, meia-fera,
risinho modernista
arranhando na garganta,
malandra, bicha,
bem viada, vândala,
talvez maquiavélica,
e um dia emburrei-me,
vali-me de mesuras
(era comércio, avara,
embora um pouco burra,
porque inteligente me punha
logo rubra, ou ao contrário, cara
pálida que desconhece
o próprio cor-de-rosa,
e tantas fiz, talvez
querendo a glória, a outra
cena à luz de spots,
talvez apenas teu carinho,
mas tantas, tantas fiz...

Trago, além de Ana C. e de Cacaso, duas poetas que foram homenageadas neste blogue (Rosângela A. de Castro - outubro – “Literatura, já 5” e Cintia Barreto - setembro – “Literatura, já 4”) e que se reportaram a ela em suas produções. É bom a gente comparar o poema anterior ao que vem abaixo.

Com Ana Cristina

Rosângela A. de Castro


I

um dia emburrei-me
porque inteligente
me punha sem sentido
tinha mentido
qual o sentido?
ser bicha, malandra,
avara, vândala?
e se der certo?
se eu tiver o seu carinho?
inteligente sou
triste
só e dona da existência
em que Deus e o Demônio
se encontram no bar
fazem comércio
das almas em pânico
as sossegadas já
foram arrematadas
num leilão disputado

II

mas tantas fiz...
fiz poema fiz comida
fiz a vida simplesinha
fiz difícil bem pensada
fiz a música cantada
tocada é pedir demais
fiz seu céu estrelado
fiz a chuva de trovão
fiz no quarto o que queria
tudo tudo não

III

esse homem exige tanto
se vende caro e quem sabe
(não li direito na placa)
a paga está bem aqui
no quente da minha mão
(poeminha safado)


À Ana C.

Cintia Barreto

Desculpe o egoísmo, amiga,
mas eu a quero aqui.

Eu a quero minha.
Não deixe a mudança de curso
verter os ébrios caminhos
da marginal.

Olhe mais uma vez
pela janela, sem medo.
Escale as ruínas e
tampe os ouvidos aos falantes.

Desfaça velhas intrigas e
libere o Eros acorrentado.

Agora, venha, dê-me a mão.
Olhe, novamente, pela janela
e vamos juntas retirá-la deste chão.

domingo, 22 de novembro de 2009

Para Literatura de ontem 1 - setembro

Visitante,
Em "Literatura de ontem 1" - setembro - foi postada uma matéria sobre Manuel Bandeira e minha bisavó Emerentina. Recebi agora um comentário que lá ficou. Mas achei pouco, tal a delicadeza dele. Reproduzo-o aqui e recomendo o blog de Nei Schimada, inteligente, talentoso e irreverente: Poemas de Bandeira (aqui). Vou repassar para o resto da família, que vai ficar orgulhosa com uma bisavó, postumamente, musa. Agradeço ao poeta.

Benedita Emerentina
que cantou com o poeta,
aprendeu desde menina
e tal qual, ensinou a neta.

Belo, bela, belas.

Nei

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Relações humanas: o enlace dos artistas da palavra - Palavras sobre palavras/Literatura de ontem 7

Levei algum tempo decidindo sobre qual título deveria colocar nestes comentários, afinal, qualquer um dos dois acima, faria sentido. Decidi que, desta vez, teríamos duas seções em uma só. Aqui falo de nosso Machado de Assis, cujo centenário de morte foi o ano passado, e do poeta Carlos Drummond de Andrade. Mas tem mais poeta no meio
Na nota sobre o poema "Quadrilha", de Drummond, em Seleta em prosa e verso, da Editora José Olympio, aparece a citação do capítulo XLII de Memórias Póstumas de Brás Cubas, como fonte para o poema. A mesma nota diz que Drummond nega o fato, apesar de ter apreciado a aproximação: ele fazia alusão ao escritor, frequentemente, com admiração e reverência. Deve-se ao poeta o título "Bruxo do Cosme velho", que se aderiu a Machado como um acatamento de veneração mística por parte de todos os que apreciam a boa literatura.
Aí vai o trecho:

Capítulo XLII - Que escapou a Aristóteles

Machado de Assis
.................................................................................................
Suponhamos que a primeira bola se chama... Marcela, - é uma simples suposição; a segunda, Brás Cubas; a terceira, Virgília. Temos que Marcela, recebendo um piparote do passado rolou até tocar em Brás Cubas, - o qual, cedendo à força impulsiva, entrou a rolar também até esbarrar em Virgília, que não tinha nada com a primeira bola; e eis aí como, pela simples transmissão de uma força, se tocam os extremos sociais, e se estabelece uma coisa que poderemos chamar - solidariedade do aborrecimento humano. Como é que este capítulo escapou a Aristóteles?
(Memórias póstumas de Brás Cubas)

xxxxxxx

Primeiro devo recomendar a quem ainda não o fez a leitura do romance inteiro. Considerado o livro que inaugura a fase realista do escritor - 1881 -, é imperdível. Aqui já se veem suas principais linhas. Reunindo e escondendo todos os interesses financeiros, de glória e de aplauso que enlaça as três personagens e as aproxima sob uma pseudodinâmica social involuntária a elas, disfarça como filosofia imparcial uma ironia que só se aguça justamente por esse mesmo motivo. Sua ironia, que normalmente não poupa nem o leitor, se estende ao próprio enunciador do discurso ao final.
Vamos agora ao texto de Drummond, já no século XX.

Quadrilha

Carlos Drummond de Andrade

João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém.
João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história.

xxxxx
Ouça o texto na voz do próprio autor. Créditos para YOUTUBE (aqui).



No poema fica caracterizada uma dinâmica social concretizada através do amor e o poeta não se vale de uma falsa ação incontrolável de um agente metafísico, como o faz tão sarcasticamente o narrador do romance, tão . Mas parece impossível não se fazer uma ligação entre os dois textos e não se aproximar aquele "que não tinha nada com a primeira bola" do romancista ao "que não tinha entrado na história" do poeta. E se a gente repara bem na objetividade de vida da Lili drummoniana - "que não amava ninguém" - e que vai se casar com um J. Pinto Fernandes, cujo nome e sobrenome citados cheiram a capitalismo, acaba-se descobrindo uns fantasmas de Marcela, Brás Cubas e Virgília, e todo o jogo de interesses que os guiava, a rondar.
É preciso se atentar ainda para a palavra "quadrilha" que, no texto, remete à dança. Se no ficcionista do século XIX é um impulso metafísico que rege os destinos, no poeta, a ligação entre todos pelo "amava",enlaça-os em um bailado especial.
Mas, em 1975, o compositor Chico Buarque apresenta no Canecão, em show com a cantora Maria Bethânia, uma canção que aparecerá no álbum "Chico Buarque & Maria Bethânia ao vivo", cuja letra vem abaixo. Destaque-se o final da letra onde está clara a presença de Drummond e seu poema. Brincando com isso, o letrista insere o próprio nome Carlos na nova ciranda, pagando-lhe o tributo. Já não há metafísica, porém uma física clara de corpos, dessa vez impulsionada por seus hormônios fervilhantes na "flor da idade". Mas, além do elemento sexual introduzido pelo compositor, a palavra "quadrilha" tem agora um significado moderno de bandidagem adolescente, agregando à idéia de dança um quê de ritual de iniciação sexual, o qual já vinha sendo desenhado desde o "A gente" do primeiro verso. Coisas já dos anos 70 do século XX. No entanto quem leu o romance do século XIX e sabe que Marcela era uma prostituta interesseira - "... Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis; nada menos." -, que Brás Cubas era um lascivo e que Virgília, casada, era sua amante, percebe que os dois textos aproximam, mais do que à primeira vista, o Chico do Machado.

Abaixo coloco vídeo do compositor cantando sua canção, em homenagem à poeta Marise Ribeiro, já apresentada neste blogue, por sabê-la admiradora incondicional de Chico Buarque. Dou, novamente, os créditos ao YOUTUBE (aqui).

Flor da idade

Chico Buarque de Holanda

A gente faz hora, faz fila na vila do meio dia
Pra ver Maria
A gente almoça e só se coça e se roça e só se vicia
A porta dela não tem tramela
A janela é sem gelosia
Nem desconfia
Ai, a primeira festa, a primeira fresta, o primeiro amor

Na hora certa, a casa aberta, o pijama aberto, a família
A armadilha
A mesa posta de peixe, deixa um cheirinho da sua filha
Ela vive parada no sucesso do rádio de pilha
Que maravilha
Ai, o primeiro copo, o primeiro corpo, o primeiro amor

Vê passar ela, como dança, balança, avança e recua
A gente sua
A roupa suja da cuja se lava no meio da rua
Despudorada, dada, à danada agrada andar seminua
E continua
Ai, a primeira dama, o primeiro drama, o primeiro amor

Carlos amava Dora que amava Lia que amava Léa que amava Paulo
Que amava Juca que amava Dora que amava Carlos que amava Dora
Que amava Rita que amava Dito que amava Rita que amava Dito que amava Rita que amava
Carlos amava Dora que amava Pedro que amava tanto que amava
a filha que amava Carlos que amava Dora que amava toda a quadrilha.




terça-feira, 10 de novembro de 2009

Comentando...6

Começou, em setembro, um movimento popular de fiscalização da política nacional. Tem como objetivo acompanhar desde as campanhas políticas até o que está sendo realizado, depois, a partir daquilo que fez parte das promessas de campanha. Seu nome é "Moralizar". Iniciou-se em Minas Gerais, mas a intenção é se estender a todo o Brasil. Tenho um amigo que é "ponta de lança" do movimento e tem me pedido sugestões de textos. Como professora que sou, preocupada com a clareza e com didática, escrevi o texto abaixo para que ele use - se quiser usar - como achar melhor.

"Nosso país já tem 500 anos de vida e 187 de independência. Não somos mais crianças em termos de cidadania. Mesmo uma criança, hoje em dia, já não aceita que as combinações feitas pelos adultos sejam descumpridas. Nem elas acham graça nisso ou ficam indiferentes. Já sabem protestar de todas as formas.
As palavras daqueles que pretendem se eleger são um contrato assinado com o povo: ações futuras em troca do voto. Não é no candidato que votamos, mas em suas realizações no governo. Acordo bilateral – povo/candidato – não cumprido merece as punições legais. Exigir o cumprimento da palavra dada em campanha é o caminho da lei. Não votar nunca mais naquele político é o caminho do cidadão adulto e inteligente."

Se hoje em dia já há muitos organismos que lidam com a DEFESA DO CONSUMIDOR, o que prova que o povo perdeu a timidez e exige seus direitos, devemos entender que aquilo que um candidato político coloca em sua campanha, se votado e eleito, passa a ser um "direito do consumidor" também, pois ele vai receber salários pagos com o nosso dinheiro. Não importa o partido que o eleito tenha, se é diferente do nosso: eleito, passa a fazer parte do interesse de todo mundo, objeto da fiscalização de todo mundo. Um prefeito em quem não votei, se está lá, é meu prefeito também, e vai ter de fazer o que disse que faria. Foi o contrato estabelecido para ganhar votos.
Vamos, como povo, finalmente tomar o poder. Exigindo o cumprimento da palavra dada. Se você concorda com isso, mobilize-se. Vamos arquivar os jornais onde os candidatos derem suas declarações. O que podemos fazer é, no mínimo, eliminar os "tratantes" (pessoa que age com velhacaria) das futuras eleições. O e-mail do "Moralizar" é moralizar@yahoo.com.br.
Não entender de política ou não gostar dela não faz a menor diferença: as ações dos desonestos eleitos caem sobre todas as cabeças. O poeta e dramaturgo alemão Bertolt Brecht (1898 -1956) diz, mais ou menos isso, em seu famoso texto:

O Analfabeto Político

Bertolt Brecht

O pior analfabeto é o analfabeto político. Ele não ouve, não fala, nem participa dos acontecimentos políticos. Ele não sabe que o custo de vida, o preço do feijão, do peixe, da farinha, do aluguel, do sapato e do remédio dependem das decisões políticas.

O analfabeto político é tão burro que se orgulha e estufa o peito dizendo que odeia a política. Não sabe o imbecil que, da sua ignorância política, nasce a prostituta, o menor abandonado, e o pior de todos os bandidos, que é o político vigarista, pilantra, corrupto e lacaio das empresas nacionais e multinacionais.

Atualíssimo e verdadeiro. Se for possível, entre no movimento criado ou inicie um movimento parecido em seu município. Antigamente acreditávamos que o que interessava era por QUEM seríamos governados. Hoje sabemos que o que importa é COMO seremos governados. E quem vai decidir isso, agora, somos nós!

domingo, 8 de novembro de 2009

Literatura, já 6

Conheci a poeta Viviane Arena Figueiredo, na UFRJ, também - manancial de talentos. Os poemas postados abaixo foram também publicados no Boletim do NIELM (Núcleo Interdisciplinar de Estudos da Mulher na Literatura) da Faculdade de Letras da Universidade. Conheci seu trabalho acadêmico e seus textos artísticos.

Poema I

Espelhos


Viviane Arena Figueiredo

Segredos e imagens
Segregam formas,
Lembram momentos,
Refletem luz
Em estilhaços,
Em meus espelhos
Todos quebrados
E refletidos
Nas dores da alma ...

Poema II

Equidistante

Viviane Arena Figueiredo

Medo...
Vejo-te...
Lúcido,
Plácido,
Raro
EQUIDISTANTE...
Na frieza de um papel em branco
Eu calo...

Poema III

Viviane Arena Figueiredo

Vi sua foto,
Passado presente em minhas
Memórias...
Palavras que pouco traduzem a sua imagem
Jovem,
Inexperiente,
Distante de ti que é hoje...
Rosto ingênuo, angelical,
Sem máculas, sem máscaras,
Apenas tu
Revelado em um papel amarelado,
Uma lembrança desgastada
De dias opostos
Do que és hoje,
De como te enxergo,
De como te sinto,
De como te entendo,
Apenas tu...
E minhas memórias...

Literatura de ontem 6

A poeta, cujas poesias são postadas agora, é Adelaide de Castro Alves Guimarães (1854-1940). O sobrenome é conhecido, sim, era Sinhá, a irmã querida do também poeta Castro Alves e responsável pelo acervo do irmão. Embora ele tenha morrido aos 24 anos, a irmã viveu até os 86 anos. Tendo sida casada com um intelectual conhecido, recebia em sua casa nomes famosos, como Rui Barbosa. Tendo-se dedicado também à música e à pintura e feito seus primeiros poemas na infância, só publicou já no século XX, morto o marido, e por incentivo da filha, já no Rio de Janeiro, onde morreu: O imortal (1933) e Arpejos em surdina (póstumo - 1954).



Adelaide C.A.Guimarães

Acercou-se do leito em andar vagaroso:
Condenada dir-se-ia a chegar ao degredo...
O vazio... o abandono... o sossego penoso...
Na marmórea brancura um funéreo lajedo!!...

Onde a estância risonha, o país venturoso
Dos afagos sutis... da carícia em segredo...
Dos seus dois corações o pulsar amoroso
De onde sorte cruel a expulsara tão cedo?!...

Nesta angústia, que espera esse olhar assim fito
No macio colchão, na macia almofada,
Testemunhos do amor que ora mata-a, ora a encanta.

Se tão longe, tão longe! em lençóis do infinito
Prisioneiro ele dorme em alcova isolada
Nesse leito do qual ninguém mais se levanta?...

Maria de Mágdala

Adelaide C.A.Guimarães

Caída ao pé da cruz: hirta, sombria...
Tem no semblante a palidez dos círios,
Nos lábios desmaiados, roxos lírios,
Quase extinta do olhar a chama fria...

Solta a roupagem morna descobria,
Da mágoa a revelar cruéis delírios,
Fontes de gozos, fontes de martírios,
Primores que a madeixa em vão cobria...

"Mestre! - soluça enfim desalentada,
Em torrentes de lágrimas banhada,
Um derradeiro olhar! Seja o perdão!... "

Entreabre o Cristo a pálpebra cansada:
Disco de luz coroa a transviada...
Ergue-te, Santa! Amor é a Redenção!...

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

O paraíso: movimento e som

Palavras sobre palavras 6

Eliane F.C.Lima

Hoje vamos voltar a falar sobre o que já se começou a fazer em “Literatura de ontem 4”, naquele diálogo tão profícuo entre Castro Alves e Bandeira. A intertextualidade é justamente essa absorção, por assim dizer, de elementos de um texto em outro(s), quer seja no tema, quer seja, principalmente, de elementos explícitos desse naquele. Às vezes esse encontro é involuntário, não há como fugir dele, como se verá na reflexão sobre o assunto enfocado abaixo.
O tema sobre o qual os quatro poemas a seguir são construídos é o jogo lúdico-literário em que cada poeta se vê mergulhado em sua busca pela criação poética, quando, mais do que em qualquer outro tipo de arte, se vê diante de sua fugaz matéria de trabalho, a palavra.
Ter como motivo de seu poema a construção poética faz com que se caminhe em um terreno escorregadio, que é a metalinguagem (para maiores esclarecimentos sobre o termo, vá ao link explicativo, clicando aqui).
Cecília Meireles e Drummond fizeram isso em dois magníficos textos bastante conhecidos.


Voo

Cecília Meireles

Alheias e nossas as palavras voam.
Bando de borboletas multicores, as palavras voam
Bando azul de andorinhas, bando de gaivotas brancas,
as palavras voam.
Viam as palavras como águias imensas.
Como escuros morcegos como negros abutres,
[as palavras voam.
Oh! alto e baixo em círculos e retas acima de nós, em redor de nós as
[palavras voam.

E às vezes pousam.

O Lutador

C. Drummond de Andrade

Lutar com palavras
é a luta mais vã.
Entanto lutamos
mal rompe a manhã.
São muitas, eu pouco.
Algumas, tão fortes
como o javali.
Não me julgo louco.
Se o fosse, teria
poder de encantá-las.
Mas lúcido e frio,
apareço e tento
apanhar algumas
para meu sustento
num dia de vida.
Deixam-se enlaçar,
tontas à carícia
e súbito fogem
e não há ameaça
e nem há sevícia
que as traga de novo
ao centro da praça.
(...)

Luto corpo a corpo,
luto todo o tempo,
sem maior proveito
que o da caça ao vento.
Não encontro vestes,
não seguro formas,
é fluido inimigo
que me dobra os músculos
e ri-se das normas
da boa peleja.
(...)

O ciclo do dia
ora se consuma
e o inútil duelo
jamais se resolve.
O teu rosto belo,
ó palavra, esplende
na curva da noite
que toda me envolve.
Tamanha paixão
e nenhum pecúlio.
Cerradas as portas,
a luta prossegue
nas ruas do sono.

(Para fruir esse poema integralmente, o que é imperdoável deixar de fazer, clique aqui).

Podemos perceber que a poetização da busca literária sempre suscita metáforas de mesma natureza. Os títulos dos dois primeiros poemas já sugerem a idéia de uma atividade que envolve a máxima dificuldade. Os três últimos versos do texto de Cecília Meireles são claríssimos nesse sentido. Drummond enuncia que o “inútil duelo jamais se resolve.”
Aproveito para continuar apresentando a poeta Rosângela A. de Castro, que foi homenageada em “Literatura, já 5”, dando-lhes o presente de outro texto.

Lá no tatame

Rosângela Abrahão de Castro

Uma palavra passou voando
alguém pegou
Uma palavra trazia várias.
Estava tudo calmo sem elas
e aí começou o vira e mexe
as palavras as palavras
em que buraco se metem?
em que sendas se embrenham
as palavras as palavras
qual o preço de uma arroba?
quanto se paga por elas?
as palavras as palavras
se arrumam e nos arrumam
tamanha indisposição
as palavras quando falam
levam tudo ao rés-do-chão.

Podemos reconhecer, desde o título, o lutador de Drummond. Se os versos “em que buraco se metem?/em que sendas se embrenham/as palavras as palavras”, de Rosângela, parecem ecoar no “e súbito fogem” do poeta, o “Alheias e nossas as palavras voam.” de Cecília é outra forma de dizer seu “Uma palavra passou voando”.
Coloquei também meu poema de 2007, em cujo título, partindo do vocábulo “Palavra”, chego à idéia que me traduz essa luta poética, do mais fino trabalho e de suor, o cultivo da terra, a colheita, a palavra-semente: lavra.

Lavra

Eliane F.C.Lima

Palavra me traga,
palavra me leva,
palavra me diz,
palavra me doa,
palavra me voa,
palavra me pousa.
Palavra me sente,
palavra-semente.
Palavra espreita,
palavra engana,
palavra tirana...
Palavra revela,
palavra esconde,
palavra, aonde?

Nesse texto, vê-se, ainda, essa mesma relação do embate poeta/palavra, motivado pela esquivança da linguagem – “palavra engana,/palavra tirana... “ – e tal qual nos de Cecília Meireles, Drummond, Rosângela A. Castro, como ademais em qualquer outro poeta, chego à mesma conclusão: “Palavra revela,/palavra esconde,/palavra, aonde?”