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sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Relações humanas: o enlace dos artistas da palavra - Palavras sobre palavras/Literatura de ontem 7

Levei algum tempo decidindo sobre qual título deveria colocar nestes comentários, afinal, qualquer um dos dois acima, faria sentido. Decidi que, desta vez, teríamos duas seções em uma só. Aqui falo de nosso Machado de Assis, cujo centenário de morte foi o ano passado, e do poeta Carlos Drummond de Andrade. Mas tem mais poeta no meio
Na nota sobre o poema "Quadrilha", de Drummond, em Seleta em prosa e verso, da Editora José Olympio, aparece a citação do capítulo XLII de Memórias Póstumas de Brás Cubas, como fonte para o poema. A mesma nota diz que Drummond nega o fato, apesar de ter apreciado a aproximação: ele fazia alusão ao escritor, frequentemente, com admiração e reverência. Deve-se ao poeta o título "Bruxo do Cosme velho", que se aderiu a Machado como um acatamento de veneração mística por parte de todos os que apreciam a boa literatura.
Aí vai o trecho:

Capítulo XLII - Que escapou a Aristóteles

Machado de Assis
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Suponhamos que a primeira bola se chama... Marcela, - é uma simples suposição; a segunda, Brás Cubas; a terceira, Virgília. Temos que Marcela, recebendo um piparote do passado rolou até tocar em Brás Cubas, - o qual, cedendo à força impulsiva, entrou a rolar também até esbarrar em Virgília, que não tinha nada com a primeira bola; e eis aí como, pela simples transmissão de uma força, se tocam os extremos sociais, e se estabelece uma coisa que poderemos chamar - solidariedade do aborrecimento humano. Como é que este capítulo escapou a Aristóteles?
(Memórias póstumas de Brás Cubas)

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Primeiro devo recomendar a quem ainda não o fez a leitura do romance inteiro. Considerado o livro que inaugura a fase realista do escritor - 1881 -, é imperdível. Aqui já se veem suas principais linhas. Reunindo e escondendo todos os interesses financeiros, de glória e de aplauso que enlaça as três personagens e as aproxima sob uma pseudodinâmica social involuntária a elas, disfarça como filosofia imparcial uma ironia que só se aguça justamente por esse mesmo motivo. Sua ironia, que normalmente não poupa nem o leitor, se estende ao próprio enunciador do discurso ao final.
Vamos agora ao texto de Drummond, já no século XX.

Quadrilha

Carlos Drummond de Andrade

João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém.
João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história.

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Ouça o texto na voz do próprio autor. Créditos para YOUTUBE (aqui).



No poema fica caracterizada uma dinâmica social concretizada através do amor e o poeta não se vale de uma falsa ação incontrolável de um agente metafísico, como o faz tão sarcasticamente o narrador do romance, tão . Mas parece impossível não se fazer uma ligação entre os dois textos e não se aproximar aquele "que não tinha nada com a primeira bola" do romancista ao "que não tinha entrado na história" do poeta. E se a gente repara bem na objetividade de vida da Lili drummoniana - "que não amava ninguém" - e que vai se casar com um J. Pinto Fernandes, cujo nome e sobrenome citados cheiram a capitalismo, acaba-se descobrindo uns fantasmas de Marcela, Brás Cubas e Virgília, e todo o jogo de interesses que os guiava, a rondar.
É preciso se atentar ainda para a palavra "quadrilha" que, no texto, remete à dança. Se no ficcionista do século XIX é um impulso metafísico que rege os destinos, no poeta, a ligação entre todos pelo "amava",enlaça-os em um bailado especial.
Mas, em 1975, o compositor Chico Buarque apresenta no Canecão, em show com a cantora Maria Bethânia, uma canção que aparecerá no álbum "Chico Buarque & Maria Bethânia ao vivo", cuja letra vem abaixo. Destaque-se o final da letra onde está clara a presença de Drummond e seu poema. Brincando com isso, o letrista insere o próprio nome Carlos na nova ciranda, pagando-lhe o tributo. Já não há metafísica, porém uma física clara de corpos, dessa vez impulsionada por seus hormônios fervilhantes na "flor da idade". Mas, além do elemento sexual introduzido pelo compositor, a palavra "quadrilha" tem agora um significado moderno de bandidagem adolescente, agregando à idéia de dança um quê de ritual de iniciação sexual, o qual já vinha sendo desenhado desde o "A gente" do primeiro verso. Coisas já dos anos 70 do século XX. No entanto quem leu o romance do século XIX e sabe que Marcela era uma prostituta interesseira - "... Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis; nada menos." -, que Brás Cubas era um lascivo e que Virgília, casada, era sua amante, percebe que os dois textos aproximam, mais do que à primeira vista, o Chico do Machado.

Abaixo coloco vídeo do compositor cantando sua canção, em homenagem à poeta Marise Ribeiro, já apresentada neste blogue, por sabê-la admiradora incondicional de Chico Buarque. Dou, novamente, os créditos ao YOUTUBE (aqui).

Flor da idade

Chico Buarque de Holanda

A gente faz hora, faz fila na vila do meio dia
Pra ver Maria
A gente almoça e só se coça e se roça e só se vicia
A porta dela não tem tramela
A janela é sem gelosia
Nem desconfia
Ai, a primeira festa, a primeira fresta, o primeiro amor

Na hora certa, a casa aberta, o pijama aberto, a família
A armadilha
A mesa posta de peixe, deixa um cheirinho da sua filha
Ela vive parada no sucesso do rádio de pilha
Que maravilha
Ai, o primeiro copo, o primeiro corpo, o primeiro amor

Vê passar ela, como dança, balança, avança e recua
A gente sua
A roupa suja da cuja se lava no meio da rua
Despudorada, dada, à danada agrada andar seminua
E continua
Ai, a primeira dama, o primeiro drama, o primeiro amor

Carlos amava Dora que amava Lia que amava Léa que amava Paulo
Que amava Juca que amava Dora que amava Carlos que amava Dora
Que amava Rita que amava Dito que amava Rita que amava Dito que amava Rita que amava
Carlos amava Dora que amava Pedro que amava tanto que amava
a filha que amava Carlos que amava Dora que amava toda a quadrilha.




Um comentário:

Marise Ribeiro disse...

Querida amiga, amanhecer de um domingo ouvindo Chico, lendo e aprendendo com seu blog é, sem dúvida, um momento de inesquecível.
Reportei-me a um tempo que ficou nos escaninhos da memória, tempo de descobertas, de anseios, de inconformismo... Hoje, mesmo com a poesia, o caminhar é mais acomodado e sem grandes revoluções, sabemos bem disso.
Quando digo que aprendi algo aqui, foi saber que o poema de Drummond nos leva a Machado. Conhecia apenas a referência de Chico a Drummond.
Que venham mais Drummond, que lia Machado, que era lido por Chico, que não lê Marise, mais que Eliane lê e é lida.
Um grande beijo,
Marise Ribeiro