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domingo, 27 de junho de 2010

"Coisa de mulher" - Literatura, já 16/Palavras sobre palavras 18

Eliane F.C.Lima

Minha postagem de hoje foi feita tendo como tema a expressão “coisa de mulher”. Logo de cara, devo dizer que ela ecoa o tal “universo feminino”, que traduz apenas a intensidade de um universo cultural, esse verdadeiro, que circunscreve ainda a mulher. Vou passar a palavra, no entanto, a várias poetas. Em seus textos, um “eu” de mulher que fala de si, enfocando de diversas formas, essa questão.


Tal qual um macho

Adélia Prado

Comi em frente da televisão
sem usar faca
e repeti o prato
como os caminhoneiros que falam de boca cheia
e vi um programa até o fim.
Até altas da madrugada
fiquei vendo as moças rebolantes
locutores boçais dizerem
segura meu microfone, gracinha.
Depois fui dormir e sonhei,
voava perseguida por soldados
um voo medroso
temendo me embaraçar na rede elétrica.
Acordei com decepção e ânsias,
macho verdadeiro
sonharia com rebolâncias.

O texto de Adélia Prado tem a riqueza de caracterizar homens e mulheres sob imposições sociais e culturais. Ao penetrar nesse território de “macho verdadeiro”, ferozmente marcado ainda pela sociedade patriarcal, como vão assinalando as ações dos caminhoneiros, dos locutores, dos soldados, as palavras que sobram ao eu de mulher, que se define, são “medroso”, “temendo”, “decepção”, “ânsias”.
Até no mais recôndito do inconsciente – os sonhos – o braço de polvo dessa sociedade grava suas imposições de gênero.


Poema

Martha Medeiros

toda mulher tem um homem que se foi
um homem que a deixou por outra
um homem que a deixou por um câncer
um homem que nem mesmo a notou
um homem que a deixou por um ideal
um homem que sumiu num temporal
um homem que não passou de dois drinques
toda mulher tem um homem que se foi
um homem que foi pego em flagrante
um homem que prometeu um brilhante
um homem que saiu para jogar
toda mulher tem um homem
que esqueceu de voltar


O texto de Martha Medeiros é bem mais claro em sua assunção do tal universo feminino, que, se não é real – só será real em suas consequências socioculturais –, está presente em todas as afirmativas da mídia, agora ajudada pela internet, que ainda insiste em desfiar, minuciosamente, as “características” marcantes das mulheres – e tome de consumista, de indecisa, de superficial. É bem indesejável esse papel de vítima, ou, paradoxalmente, da vilã maligna, como Eva e Lilith. Se substituíssemos todas as palavras “mulher” e “homem”, acima, por “pessoa”, veríamos o quanto o conteúdo ficaria verdadeiro e razoável para qualquer um.
Precisamos observar, contudo, que essa verdade e razoabilidade se dariam, apenas, fora do poema. No mundo poético, há um ser feminino que se avoca as condições que o texto apresenta. E nada mais há a discutir.

Jogo de casa

Astrid Cabral

Sob telhas
centelhas fagulhas borralho
olhos d'água água na talha

Sob telhas
galhos alhos coalhos
molhos repolhos toalhas

Sob telhas
agulhas retalhos
malhas fitilhos ilhoses

Sob telhas
rodilhas presilhas
palmilhas sapatilhas

Sob telhas
mulheres abelhas
colheres talheres

Sob telhas
parelhas filhos filhas
espelhos ilhas

Sob telhas
armadilhas navalhas
batalhas partilhas mortalhas

(Advertência: o segundo e o terceiro versos de cada estrofe do poema acima estão, originalmente, colocados à direita, em relação ao verso que abre cada estrofe, em um desenho bastante peculiar. No entanto, apesar de todas as estratégias, ao se publicar a postagem, tal configuração se redefine na que está visualizada.)


No texto de Astrid, percebo uma questão que transcende ao puramente feminino. Embora a maioria dos versos apresentem substantivos que representam objetos que fizeram parte da vida das mulheres, durante muito tempo, vejo, igualmente todos eles relacionados à ideia de “casa”, que está representada na metonímia “sob telhas”. E surge, então, outra questão: a casa, como vida privada, sempre esteve ligada à condição da mulher, opondo-se à rua – trabalho, diversão, negócios, liberdade –, enfim, ligada a “público” e a homem.
No entanto também posso enxergar nesse “sob telhas” e casa uma referência a relacionamento conjugal ou familiar, o que envolveria, na mesma igualdade, mulheres e homens. Para essa segunda possibilidade, a última estrofe marcaria, como culminância - “armadilhas”, “batalhas” - um sentimento forte de negatividade e crítica frente ao tema, ao que se passaria, “sob telhas”: o jogo de casa.

Pacifista

Helena Ortiz

o esforço para me livrar
dos "homens da minha vida"
foi uma longa e tormentosa
trajetória

agora tenho um gato e somos
razoavelmente neuróticos
todavia
cada coisa respira em seu lugar

O texto de Helena Ortiz, embora tenha como título o vocábulo “Pacifista”, que me soa como uma fina ironia, é extremamente contundente em seu aspecto de renúncia definitiva, embora mantenha, um quê de bonomia ao longo de seus oito versos. Aquele “razoavelmente neuróticos”, porém, deixa escapulir algo de doído em “cada coisa” que “respira em seu lugar.

Termino com Cora Coralina, pseudônimo de Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas (1889 – 1985).

Todas as Vidas

Cora Coralina

Vive dentro de mim
uma cabocla velha
de mau-olhado,
acocorada ao pé
do borralho,
olhando para o fogo.
Benze quebranto.
Bota feitiço...
Ogum. Orixá.
Macumba, terreiro.
Ogã, pai-de-santo...
Vive dentro de mim
a lavadeira
do Rio Vermelho.
Seu cheiro gostoso
d'água e sabão.
Rodilha de pano.
Trouxa de roupa,
pedra de anil.
Sua coroa verde
de São-caetano.
Vive dentro de mim
a mulher cozinheira.
Pimenta e cebola.
Quitute bem feito.
Panela de barro.
Taipa de lenha.
Cozinha antiga
toda pretinha.
Bem cacheada de picumã.
Pedra pontuda.
Cumbuco de coco.
Pisando alho-sal.
Vive dentro de mim
a mulher do povo.
Bem proletária.
Bem linguaruda,
desabusada,
sem preconceitos,
de casca-grossa,
de chinelinha,
e filharada.
Vive dentro de mim
a mulher roceira.
- Enxerto de terra,
Trabalhadeira.
Madrugadeira.
Analfabeta.
De pé no chão.
Bem parideira.
Bem criadeira.
Seus doze filhos,
Seus vinte netos.
Vive dentro de mim
a mulher da vida.
Minha irmãzinha...
tão desprezada,
tão murmurada...
Fingindo ser alegre
seu triste fado.
Todas as vidas
dentro de mim:
Na minha vida -
a vida mera
das obscuras!

Em “Todas as vidas”, o eu poético assume a velha questão da pluralidade dos seres. E o reconhecimento dessas antinomias em si se faz exatamente naqueles aspectos em que a discrição, a humildade, a “vida mera”, como diz, anulam a vaidade, a qual a sociedade de consumo teima em apontar nas mulheres. E esse traço – a ligação com o simples – é o tema central do texto abaixo.

Eu Voltarei

Cora Coralina

Meu companheiro de vida será um homem corajoso
[de trabalho,

servidor do próximo,
honesto e simples, de pensamentos limpos.

Seremos padeiros e teremos padarias.
Muitos filhos à nossa volta.
Cada nascer de um filho
será marcado com o plantio de uma árvore simbólica.
A árvore de Paulo, a árvore de Manoel,
a árvore de Ruth, a árvore de Roseta.

Seremos alegres e estaremos sempre a cantar.
Nossas panificadoras terão feixes de trigo enfeitando
[suas portas,

teremos uma fazenda e um Horto Florestal.
Plantaremos o mogno, o jacarandá,
o pau-ferro, o pau-brasil, a aroeira, o cedro.
Plantarei árvores para as gerações futuras.

Meus filhos plantarão o trigo e o milho, e serão padeiros.
Terão moinhos e serrarias e panificadoras.
Deixarei no mundo uma vasta descendência de homens
e mulheres, ligados profundamente
ao trabalho e à terra que os ensinarei a amar.

E eu morrerei tranquilamente dentro de um campo de trigo ou
milharal, ouvindo ao longe o cântico alegre dos ceifeiros.
Eu voltarei...
A pedra do meu túmulo
será enfeitada de espigas de trigo
e cereais quebrados
minha oferta póstuma às formigas
que têm suas casinhas subterra
e aos pássaros cantores
que têm seus ninhos nas altas e floridas
frondes.

Eu voltarei...

Magnífico texto, é uma celebração da terra e do respeito ao meio ambiente – de fazer inveja aos ecologistas mais radicais –, mas é, principalmente, um hino ao natural, à volta do ser – e aqui há a anulação completa da dicotomia mulher/homem – a suas raízes humanas, de novo ao simples, como no texto anterior. E o poema tem uma forte conotação de revisão do presente nesse “Eu voltarei...”, nesse apostar em um futuro e se comprometer com ele. E um futuro que, sabiamente, aponta para um passado remoto, de início da espécie, quando cada coisa valia por si mesma, destituída de atribuições sociais, culturais e econômicas.
E esse poema foi colocado aqui exatamente, porque esse enunciador poético feminino coloca, acima de todas os problemas de gênero – tornando-os, assim, inteiramente descabidos por sobrepor-lhes outras medidas –, a sua mais urgente questão: a afirmação de sua condição humana.

domingo, 20 de junho de 2010

TPM - trama premeditada - Comentando... 11

Eliane F.C.Lima

Quero neste domingo refletir sobre a tal TPM – Tensão pré-menstrual. Não quero negar a possibilidade de haver, realmente, um desequilíbrio hormonal nesse período. Mas não aceito nem mesmo a argumentação de que a ciência tem provado isso. Já é sabido que a “Ciência”, desde seu princípio, colaborou ativamente para a opressão das mulheres. Essas sempre foram classificadas como histéricas – vide Freud e a psicanálise da qual fez parte -, loucas, desequilibradas e com grande ligação com as coisas da malignidade. Sílvia Alexim Nunes, em seu revelador livro
O Corpo do Diabo Entre a Cruz e a Caldeirinha: Estudos Sobre Mulher, Masoquismo e Feminilidade, Editora Civilização Brasileira, livro que recomendo como leitura obrigatória, faz um excelente estudo sobre o envolvimento da medicina com o compromisso em manter a mulher presa à maternidade e ao lar.
Quando li o livro para minha dissertação de mestrado – pelo título de meu estudo já se vê o motivo: O eco das vozes profundas - silêncio e voz em Ondina Ferreira. Um discurso de autoria feminina –, por volta do ano 2000, respirei aliviada, imaginando que esse tipo de coisas tinha ficado para trás. Ingenuidade minha pensar que a sociedade patriarcal tinha aceitado com tranquilidade – e sem reação – a entrada da mulher no mercado de trabalho, competindo em igualdade de condições com o homem, a ponto de fazer-lhe concorrência e ameaçá-lo, quando se trata de vagas oferecidas.
Tenho me deparado, cada vez com mais intensidade, com o crescimento desse mito da TPM. Chamo mito à série de sintomas que são descritos como de tal período. Aos poucos, essa síndrome funesta e fictícia foi se radicalizando em suas características e me deparo com ela descrita e afirmada, em reportagens televisivivas ou impressas, em séries de televisão, ou seja, entrando pelos “sete buracos de minha cabeça”, como disse o Caetano, e pela de toda a sociedade, que passa não só a aceitar o fato como verdadeiro, como a fazer, de novo, uma imagem depreciativa sobre as mulheres. Que empresário, em sã consciência, vai dar emprego a um ser que literalmente “enlouquece” em certo período, a cada mês? Essa empregada mulher é realmente de segunda categoria e não pode receber o mesmo salário que um homem, normal, tranquilo e que tem um só tipo de comportamento equilibrado o mês inteiro.
O mais lamentável é ver as mulheres sendo enganadas e passando a fazer papel de cúmplices, a cada vez que dão depoimento sobre os desvarios que imaginam sofrer na ocasião, ecoando o que ficou na moda repetir. E vejo gente, cujo discurso tem peso e larga penetração, se divertindo em narrar sua transformação, como se isso fosse um grande mérito.
Pode o leitor perguntar: se há tantos depoimentos, não será isso verdade mesmo? De todas as mulheres que conheci até hoje, passando por mim, nunca vi ninguém que correspondesse, em época nenhuma do mês, àquele quadro descrito, que beira à transformação em lobisomem. Sendo professora, como é que eu poderia entrar em sala metamorfoseada em ser demente?
Tenho percebido que a mídia influencia de forma assustadora o comportamento e as crenças de um modo geral, em vez de retratá-las apenas, como querem os defensores da liberdade de informação. Está aí o filósofo Foucault a provar que é formação o que se imagina informação, no pior sentido em que a primeira pode ser usada. E a gravidade está em que tudo se dá de forma sutil, como se a Ciência estivesse se interessando pelo bem estar das mulheres e as defendendo, e passando longe, muito longe, das discussões sobre a emancipação feminina e sua ascensão aos postos de comando. Mas é uma estratégia certeira: se, de um lado é um discurso benevolente, do tipo "nós, homens, precisamos ser compreensivos e aceitar nossas mulheres na TPM", por outro lado, incita ao "por isso mesmo, não podemos confiar a elas os postos de responsabilidade." Perfeito... e indiscutível e incontrolável.
O ponto de vista e a polêmica que levanto são os mesmíssimos levantados pelo estudioso francês: está claro que a “Ciência”, visto o risco que o
establishment masculino, seu velho e querido amante, anda correndo com a emancipação da mulher, tirou da manga da camisa a sua velha carta coringa para colocar as emancipadas em seu devido e restritivo lugar.

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Um dia de lamento

Eliane F.C.Lima

Entro hoje aqui, extraordinariamente, para lamentar a morte de José Saramago e a interrupção de uma obra, interrupção que torna a cultura universal mais pobre. Resta o consolo de que o escritor contribuiu, com sua parcela de engenho, para aquilo a que nós chamamos de humano.


Aproveito para postar, ainda, o poema, gentilmente, enviado por Ju Rigoni, como homenagem ao poeta.

Poema à Boca Fechada

José Saramago

Não direi:
Que o silêncio me sufoca e amordaça.
Calado estou, calado ficarei,
Pois que a língua que falo é de outra raça.

Palavras consumidas se acumulam,
Se represam, cisterna de águas mortas,
Ácidas mágoas em limos transformadas,
Vaza de fundo em que há raízes tortas.

Não direi:
Que nem sequer o esforço de as dizer merecem,
Palavras que não digam quanto sei
Neste retiro em que me não conhecem.

Nem só lodos se arrastam, nem só lamas,
Nem só animais bóiam, mortos, medos,
Túrgidos frutos em cachos se entrelaçam
No negro poço de onde sobem dedos.

Só direi,
Crispadamente recolhido e mudo,
Que quem se cala quando me calei
Não poderá morrer sem dizer tudo.

domingo, 13 de junho de 2010

As "vozes vespas" de Helena Ortiz

Eliane F.C.Lima

A escritora que é apresentada hoje se chama Helena Ortiz, nasceu no Rio Grande do Sul, embora esteja radicada pessoal e profissionalmente no Rio de Janeiro, onde é responsável pela Editora da Palavra e pelo jornal de literatura “Panorama da palavra”, que, tendo sido impresso de 1999 a 2005 e passado a ser apenas virtual (clique
aqui), a partir de 2009, voltou a ser impresso também.
Fez parte do livro Além do cânone, de Helena Parente Cunha, professora da UFRJ, cujos poemas também já foram postados neste blogue, entrelaçando-se, assim, a Helena baiana e a gaúcha.
A Ortiz, além de sua produção literária, tem um histórico em prol da literatura por promover encontros de poesias – o “Panorama da palavra” foi um dos principais –, nos quais apresenta novos talentos, como se pode conferir nas entrevistas dadas ao site “Palavrarte” (clique aqui ) e à “Revista Agulha” (clique aqui).


Obras da escritora:
Poesia: Pedaço de mim (Porto Alegre: T&T Editores, 1995); Margaridas (Rio de Janeiro: Blocos, 1997); Azul e sem sapatos (Rio de Janeiro: Blocos, 1997); Em par (Rio de Janeiro: Ed. da Palavra, 2001); Sol sobre o dilúvio (Rio de Janeiro: Ed. da Palavra, 2005).
Em prosa, publicou Contos de Oficina 5 (Porto Alegre: Ed. AGE, 1994); Mais ao sul do que eu pensava (Ed AGE, Porto Alegre, 1995); e o novíssimo O Silêncio das Xícaras (Rio de Janeiro: Ed. da Palavra, 2009), lançado em 08 de junho de 2010.
Vale a pena conferir seu blogue Integrada e marginal (entre por aqui), no qual se vê, entre outras coisas, que o poeta não é um nefelibata – que ou quem vive nas nuvens – como se dizia dos simbolistas, pois nele Helena posta muita informação e fortes convicções políticas.
Sua poesia segue a tendência atual do texto curto e, por isso mesmo, com uma densidade máxima. Sua grandeza não está na horizontalidade ou verticalidade, mas no volume, pois é um mergulho profundo na condição humana – aliás o título de um de seus magníficos poemas – e isso de uma maneira bastante sofrida.

Condição humana

Helena Ortiz

visto preto e meu marido
é vivo

sou seu lençol
mãe de seu filho ausente

lavo seus colarinhos
não dormimos juntos

juntos
só colocamos

sal nas feridas

Sutil Vingança

Helena Ortiz

estendo a cama e faço
a comida

entrego meu corpo e ainda
lavo a louça

mas
no varal
o lençol desfralda
a meio-pau

Passos

Helena Ortiz

nunca fui das casas
que também não foram minhas
me abrigo — eis tudo — passa-se o tempo
mas minha vontade
é pertencer aos telhados


Sub-rosa

Helena Ortiz

vêm das abelhas às vezes
essas vozes vespas
esses zumbidos vorazes

vem na poeira o tom
sussurrado que precede
o pulsar de um continente

é tênue o farfalhar
sub-rosa
primeiro de viés

depois pelas veias
pelas vértebras
rebentando os vasos

logo o coração transido
pula e chicoteia
incessante bater de panelas
um ferrão subjuga a aurora


Fome para todos

Helena Ortiz

o homem chega ao trabalho
cumprimenta os colegas
alguns não respondem

lá dentro as cortinas o papel as máquinas
o pretenso comprador e sua pose

na hora do almoço todos vão ao restaurante
ele vai ao cais onde sopra a brisa

abre um livro e por momentos
é um homem sem paredes

retorna ao trabalho
cumprimenta os colegas
alguns não respondem
não importa

está saciado de uma outra fome

Tarde

Helena Ortiz

o sol de inverno atravessou o dia
como em outros lugares
serenos céus de outras cidades
onde estive sentada em silêncio
me aquecendo
tantos anos
e ainda estou fria

Esperando a hora

Helena Ortiz

não ouço mais teus gritos
não corro mais atrás de ti
não te abraço
não gozo teu riso
não me espanto


trago em mim esse grito
que não rompe
esse tédio de sala de espera
quieta
onde minha ficha é a última
e talvez não haja tempo para hoje

Diagnóstico

Helena Ortiz

é fácil reparar que já partimos
jogamos as cartas
às feras

foi-se ao mar o desejo
e com o vento
fecharam-se as janelas

não queremos recordar
não é mais hora
já batem à porta
à nossa espera

não teremos mais uma palavra amável
um suspiro sutil
um verso varando o dia

seguiremos avaros:
duros
armados
de colete

Dada a fecundidade da obra de Helena Ortiz ainda pretendo voltar a outras poesias suas em futura postagem.

domingo, 6 de junho de 2010

Palavras sobre palavras 17

Eliane F.C.Lima

Hoje vou voltar ao conto de Adriana Falcão, analisado em “Literatura, já 13/ Palavras sobre palavras 15”, incentivada pelos comentários ali postados por dois visitantes, que me deram, felizmente, um excelente retorno. Aproveito-me desse texto, ainda, para fixar conceitos, novamente.

Começo citando cinco trechos da introdução de Luís Costa Lima, do livro A literatura e o leitor: textos de estética da recepção - Hans Robert Jauss... et al (2 ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2001), coordenado e traduzido por ele:

... também os textos – e não só os ficcionais – tampouco são figuras plenas, mas, ao contrário, enunciados com vazios, que exigem do leitor o seu preenchimento. Este se realiza mediante a projeção do leitor. A comunicação entre o texto e o leitor fracassará quando tais projeções se impuserem independentes do texto, fomentadas que serão pela própria fantasia ou pelas expectativas estereotipadas do leitor. (pág. 23 – grifo meu, ao usar o azul)

Não é que a regra não se aplique aos [textos] pragmáticos, sucede, contudo, que na situação pragmática as expectativas do leitor podem ser chamadas de homogêneas quanto à intenção autoral. (pág. 23- grifo meu em azul)

A partir daí, poderemos acrescentar: o próprio do texto literário é concentrar-se nos vazios comuns a todas as relações humanas, explorá-los, torná-los sistemáticos. (pág. 24)
Afirmar pois que o texto ficcional se localiza por depositar seu centro de gravidade nos vazios, significa que nele a indeterminação se apresenta em máximo grau, muitas vezes próximo da desorganização entrópica. (pág. 24)
Antes da discussão: Iser1 enfatiza a necessidade de o texto ficcional conter “complexos de controle”, que orientem o processo da comunicação. O próprio desses complexos é tanto orientar a leitura... (pág. 24 - grifo meu, ao usar o azul)

______________
1.Referência a Iser Wolfgang, um dos papas da Estética da Recepção e um dos autores analisados por L.C.Lima


Vamos reencontrar o conto:

Adriana Falcão

Ali, deitada, divagou:
se fosse eu,
teria escolhido lírios.

Vou parafrasear o texto duas vezes:
Ali, deitada na cama (na rede), divagou: se fosse eu, em vez dessas flores que vejo no vaso sobre a mesinha (na jardineira da janela, no jardim), teria escolhido lírios.

Minha ação foi preencher os “vazios” (não escritos, como se notou pelo poema original) que estão no texto da poeta e cuja ausência, justamente, provocam a possibilidade de todas as interpretações. Mas se observe que esses vazios foram preenchidos por mim, limitando-me a uma “situação pragmática”. Eu diria que tal interpretação, dada a obviedade com que se lê o texto e que se transmite, desse modo, à escritora, poderia ser classificada como em grau 1, por assim dizer, por corresponder às “expectativas estereotipadas” de um leitor (de jeito nenhum há intenção de se atribuir uma nota, mas mostrar como se pode ir fugindo ao estereótipo).
Chamo a atenção, ainda, para o fato de que o se escrever esses não escritos foi possibilitado pelos “complexos de controle” (as dicas), que o texto fornece, ou seja, os vocábulos “deitada” e “lírios”, que remete a flores. O uso do “se” e do verbo no futuro do pretérito, instaurando a condicionalidade ou o direito a outra possibilidade (“em vez de”), permite ao leitor inferir que ali estavam outras flores, que não lírios. A palavra “divagou” também se tornou um forte “complexo de controle” para outra leitora, a qual imaginou uma situação em que esse eu lírico, através da memória, fosse transportado para o passado, para uma situação vivida. Desse modo, o grau interpretativo aumentou, por fugir do puramente estereótipo. Mas, como não tenho como averiguar em que consiste essa “situação vivida”, seria leviano de minha parte avaliar a intensidade do grau de interpretação.
Se completássemos os vazios do texto de Adriana, agora, com “deitada no chão do jardim” e com “em vez dessas flores plantadas e que me cercam”, já teríamos uma interpretação bem mais ousada do que a primeira sugerida e que teria exigido muito mais do leitor. Mas, ainda assim, o “chão do jardim” estaria muito circunscrito a essa ideia clichê de flores, que teria limitado a constituição de tal significado.
Valho-me da definição de um comentador, que disse que uma leitura minha seria a mais ousada e surreal - esse fato teria exigido, portanto, de mim e dele, como leitora e leitor, o maior afastamento possível ao pragmático e esterotipado - para chegar a uma última possibilidade, a qual eu assumo como a melhor. E minha interpretação só se deveu ao fato do conhecimento que tenho da prática literária atual e do engenho de Adriana Falcão, orientando-me, assim, para a criação, essa sim, mais audaciosa e longe da escrita prática e do lugar-comum.
E, ainda assim, segui esses “complexos de controle”. A palavra “deitada”, além das possibilidades anteriores, levou-me, ainda, à idéia de caixão, lugar derradeiro onde alguém se deita. E tinha sua probabilidade confirmada, mais até do que com “cama” ou “rede”, por formar com a ideia de flores um conjunto perfeito em termos de atribuição de sentido.
Mas, poeticamente, esse conjunto, como chamei acima, trazia muito mais para o texto: um narrador morto, que divaga, escolhe, opina – olhe o surreal aí –; instauração de um clima de ironia fina e crítica, jogada como quem não quer nada, meio sonsamente.
Quero, no entanto, para aprofundar um conceito anterior, valer-me de um outro poema, de Murilo Mendes (1901 – 1975). Tendo começado sua produção poética com os procedimentos dos modernistas, esse poeta, em sua fase madura, incorporou os elementos do Surrealismo, como técnica de construção e como assunção do caos, característico da imaginação fundada pelo sonho e pelo inconsciente.
Um desses procedimentos é, justamente, fugir das “expectativas estereotipadas”, aquilo que em Análise do Discurso se denomina expectativa de sentido, para, quebrando o que seria lógico, iniciar um novo e inesperado caminho. Usei diversas vezes esse poema em minhas aulas, a propósito de começar o ensino da estética surrealista. Minha estratégia era copiar no quadro o poema, retirando algumas passagens (ver os trechos ressaltados) e pedindo que completassem com o que seria esperável. No segundo verso, saía, invariavelmente, “Dá de comer às galinhas” e, no quinto da segunda estrofe, “Desvia o curso dos rios". Isso, porque a expectativa de sentido, sentido tradicional, tinha criado esses chavões, por assim dizer. A surpresa de alunas e alunos era ver o poema original.

Metade pássaro
Murilo Mendes

A mulher do fim do mundo
Dá de comer às roseiras,
Dá de beber às estátuas,
Dá de sonhar aos poetas.

A mulher do fim do mundo
Chama a luz com um assobio,
Faz a virgem virar pedra,
Cura a tempestade,
Desvia o curso dos sonhos,
Escreve cartas ao rio,
Me puxa do sono eterno
Para os seus braços que cantam.

Em seguida, uma grande brincadeira era proposta. Eu pegava um poema parnasiano e pedia que eles retirassem trechos e completassem, conforme a lição de Murilo Mendes. Obtínhamos resultados surpreendentes e poéticos de textos surrealistas.
Proponho a quem me visita, agora, que ilumine o texto e o copie para um documento do Word. Vá retirando trechos e os substituindo de forma que alterem o sentido lógico, por assim dizer, que o poema parnasiano, cuja pretensão era ser realista, tentava manter. Surpreenda-se ao ver o efeito final. Vale trabalhar mais nele, depois, se desejar. Orgulhe-se de sua obra posteriormente. Não se esqueça de agradecer ao Raimundo Correia a “colher de chá.”

A cavalgada
Raimundo Correia
A lua banha a solitária estrada...
Silêncio!... Mas além, confuso e brando,
O som longínquo vem-se aproximando
Do galopar de estranha cavalgada.
São fidalgos que voltam da caçada;
Vêm alegres, vêm rindo, vêm cantando.
E as trompas a soar vão agitando
O remanso da noite embalsamada...
E o bosque estala, move-se, estremece...
Da cavalgada o estrépito que aumenta
Perde-se após no centro da montanha...
E o silêncio outra vez soturno desce...
E límpida, sem mácula, alvacenta
A lua a estrada solitária banha...

Solicito, finalmente, aos visitantes deste blogue que guardem os conceitos que foram destacados aqui, pois eles serão frequentemente solicitados. E que me perdoem o efeito extravagante dos destaques na cor azul, pois o uso do negrito se mostrou inócuo.