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sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Tempos de paz

Caras (os) amigas (os) visitantes,

Desejo a todas (os) a felicidade completa nas reuniões familiares que comemoram as festas de Natal e Ano Novo. Mas, principalmente, desejo que 2012 seja o ano da paz para todas (os) nós.
Eliane F.C.Lima

sábado, 26 de novembro de 2011

Astrid Cabral e a poética do espanto

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais - RJ)
 
A poeta Astrid Cabral Félix de Sousa já teve alguns de seus poemas analisados neste blogue (aqui e aqui). No dia de hoje, a postagem focaliza a escritora, apenas, com pequena biobibliografia.
Astrid Cabral nasceu em Manaus, Amazonas, em 25-09-1936. Na adolescência, veio para o Rio de Janeiro, diplomando-se em Letras Neolatinas na UFRJ, embora tenha lecionado, nessa área, na Universidade de Brasília. Por concurso no Itamaraty foi Oficial de Chancelaria do Ministério das Relações Exteriores em cidades brasileiras, além de Beirute e Chicago.

Obras
Poemas
Ponto de cruz (1979); Torna-viagem (1981); Lição de Alice (1986); Visgo da terra (1986); Rês desgarrada (1994); De déu em déu (1998); Intramuros (1998); Rasos d’água (2003).

Ficção
Alameda (contos - 1963)

Nos textos da escritora aqui transcritos, dentre diversos outros aspectos destacáveis em sua obra como um todo, podemos perceber um sentimento de melancolia e assombro diante do percurso humano pela vida, que se derrama em dois temas que acompanham o caminho da literatura, de uma forma geral: a reflexão sobre a condição humana e a condição subjetiva de um eu lírico que se autoanalisa. Na beleza da construção poética dos textos a seguir podemos distinguir esse primeiro enfoque.

Herança

Astrid Cabral

Bênçãos e maldições vêm de, bem longe
embaladas em ovos, sangue e esperma
em arquivos que jazem sob a terra
lacrados chaves já perdidas no ontem.
Os vivos farejamos crus mistérios
e giramos perguntas parafusos
que mal roçam a cútis dos arcanos:
o olhar terá nascido no jurássico?
o tom de tez e voz será adâmico?
de quem decorre esta imprevista
herança
de sermos o que, bem ou mal nós
somos?
Família, amor, jogo de sexo e espelhos
por onde assim perplexos nos lançamos
ou, dizendo melhor, lançados fomos.

A silepse de pessoa (desvio de concordância que consiste em relacionar um elemento da frase ao que está implícito e não ao que está explícito), em “Os vivos farejamos crus mistérios”, consegue esse efeito de reunir toda uma espécie de seres – os vivos – a um indivíduo determinado – um eu entre nós –, fazendo-os todos “perplexos” diante da inexorabilidade de uma herança, de um destino – “será adâmico?” – incontrolável: “lançados fomos”.

Metamorfose

Astrid Cabral

Ainda nos chamam
pelos mesmos nomes.
Acaso seremos os mesmos
ou é a cegueira alheia?
Éramos formosos
afortunados donos
de sesmarias de sonhos.
Tínhamos frescor de frondes
ímpetos de fontes e fogos
destemor de duelos, dúvidas
que não machucavam quase.
Éramos potros selvagens
farejando precipícios
pelas pastagens do mundo.

No curral ainda nos sobra
a noção do tesouro perdido
e essa ração de memória
é a esmola que nos cabe.

Em “Metamorfose”, pode-se identificar, ainda, a mesma emoção diante do condicionamento inelutável da vida humana, que condena os sonhos, que apaga as esperanças. Se no poema anterior o sentimento era de perplexidade, no segundo, tudo se transforma em um “tesouro perdido”.

Resíduos

Astrid Cabral

Varre-se a alma
mas entre as gretas
sempre resta
estática poeira.

Jamais devolverás, memória,
a juventude em carne e osso.
O que nos sobra além de fotos
é carne mumificada sem sangue
sem esperança e sem alvoroço.

Dias de sol
e fomos espigas.
Hoje não somos
mais que sabugos.
Onde os grãos?

O poema “Resíduos” retoma o texto anterior, resume-lhe a primeira estrofe nos versos “Dias de sol/ e fomos espigas.”, mas parece negar a última esperança alimentada na última estrofe daquele: “Jamais devolverás, memória,/a juventude em carne e osso.”
No poema “Calamidade”, transcrito abaixo, embora haja uma aparente concretude e cotidianidade no título e no tema – “contidos em urbanas paisagens/eles encharcavam/ não só os chinelos de lama” –, volta a sensação de assombro em “a alma também de espanto”, diante das perenes e cíclicas circunstâncias humanas, mesmo esquecidas por todos. “Antepassados/das chuvas dilúvio” torna a retratar o mesmo ser humano do princípio, jurássico, adâmico.


Calamidade

Astrid Cabral

Águas na sala! Peixes nos quartos!
Quem entenderia?
Degredados das paisagens
contidos em urbanas grades
eles encharcavam
não só os chinelos de lama
a alma também de espanto.
Todos esquecidos
dos troncos derrubados
dos leitos rasos – antepassados
das chuvas dilúvio.

Os três últimos poemas apresentam um olhar subjetivo de um eu lírico, sua individualidade. Mas o sentimento que prevalece nesses poemas ainda é de inadequação diante da vida, ecoando, assim, a mesma inadequação ôntica retratada nos textos anteriores. O coração couraçado e “os cachorros/que uivam em horas de raiva” são a mesma defesa diante dessa realidade.

Coração couraçado

Astrid Cabral

Tempestades em oceanos
ou em copos d'água
e não peço a Deus balsas
barcaças nem praias.
Só um coração couraçado.
Desses que no lombo
das ondas vão sem tombos
o convés em festa
Iluminado.


Cave canem

Astrid Cabral

Dentro de mim há cachorros
que uivam em horas de raiva
contra as jaulas da cortesia
e as coleiras do bom senso.
Solto-os em nome da justiça
tomada de coragem homicida.
Mas sabendo que raiva mata
à míngua de tomar meus cães
vacinei-os. Ladrem mas não mordam
e caso mordam, não matem.

O último poema singulariza, finalmente, a possibilidade de metamorfose do ser humano. Nele, esse ser repete seu destino e encerra sua perplexidade.

Transitória

Astrid Cabral

Enquanto

folhas folham
árvores arvoram
e o dia irradia
sigo

figo
no ramo da tarde.



Até que a noite anoiteça
o fruto apodreça
e na terra em fome

tombe
sem alarde.

Aguardo quem visita este blogue em meus outros dois: Poema Vivo (aqui) e Conto-gotas (aqui).

domingo, 6 de novembro de 2011

O diálogo poético de Neide Archanjo e seus pares

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais - RJ)

A escritora que será apresentada hoje – Neide Archanjo (1940) –, poeta, psicóloga e advogada, embora tenha nascido em São Paulo, mora atualmente no Rio de Janeiro. Recebeu, em 2005, o prêmio de poesia da Academia Brasileira de Letras e participou de vários eventos de promoção da poesia.
Hoje, conheceremos alguns poemas seus, mas, adiante, ampliarei esse estudo, despertado pela intertextualidade – textos que remetem a outros -, pois sua obra, às vezes, leva a de outros autores.
O primeiro poema é metalinguístico, ou seja, usa uma linguagem para refletir sobre essa própria linguagem: o tema eterno da reflexão sobre o ato criativo, que surge em quase todas (os) as (os) escritoras (es).

Da poesia

Neide Archanjo

Esculpo a página a lápis
e um cheiro de bosque
então me aparece.
Que a poesia é feita de romãs
daquilo que é eterno
e de tudo que apodrece.

Os recursos utilizados são bastante peculiares. De início, o vocábulo “esculpo”, inerente a outro tipo de arte, imprime, nesse ato criativo, possibilidades outras, quase uma terceira dimensão, que chega a ser palpável. Na verdade, essa tridimensionalidade se enriquece com a ideia de “bosque” e “cheiro”, que vão além da impassibilidade de estátua, inaugurada pelo verbo inicial. Aparece a dinâmica, a vida na natureza, enfim.
A imagem “a poesia é feita de romãs” retoma essa vida da natureza, citada acima, tornando o ato literário quase um prazer sensorial.
Mas, como queria o movimento modernista, o texto indica que a poesia pode conter qualquer elemento, desvestindo-a da sacralidade que pretendiam os movimentos estéticos anteriores a 1922, aproximando a criação poética do humano: “daquilo que é eterno/e de tudo que apodrece.”

Os dois poemas seguintes de Neide Archanjo remetem, embora não explicitamente, a poemas de outros autores. Vejamos.

Neste mezzo del cammin

Neide Archanjo

Neste mezzo del cammin
carrego comigo obras e cânticos
alguns alheios outros próprios
coisas que escolhi.
Entre vogais e vocábulos
componho a biografia
construção sonora de rostos
reflexos sentimentos
tão grande tão grandes
uns rindo como gralhas
outros mansos
todos não perdidos
pressentida romã entreaberta
assim esta memória existe.
Vou como o discípulo
de um velho pintor chinês
que curvado sob o peso de pincéis
potes de laca
rolos de seda e de papel arroz
sonhava carregar montanhas rios
falcões reais
e se assim sonhava
certamente assim o fazia.

O termo “neste”, junto a “mezzo del cammin” (em italiano, “meio do caminho”) nos faz pressentir que há um outro, o que se torna quase uma certeza, quando lemos adiante “carrego comigo obras e cânticos/ alguns alheios...”: Dante Alighieri, poeta italiano autor de A divina comédia, começa sua obra com “Nel mezzo del cammin di nostra vida...”. Estar no meio do caminho, da vida, supõe-se, é ter um passado – “assim esta memória existe” – e se imaginar um futuro - “Vou como o discípulo/de um velho pintor chinês”. E, como o “velho pintor chinês”, sonhar e fazer.
Um outro poeta, do final do século XIX, Olavo Bilac, já usara o mesmo verso dantesco, para, num inspiradíssimo soneto, assinalar um período da vida de dois amantes.

Nel mezzo del cammin...

Olavo Bilac

Cheguei. Chegaste. Vinhas fatigada
E triste, e triste e fatigado eu vinha.
Tinhas a alma de sonhos povoada,
E a alma de sonhos povoada eu tinha...

E paramos de súbito na estrada
Da vida: longos anos, presa à minha
A tua mão, a vista deslumbrada
Tive da luz que teu olhar continha.

Hoje, segues de novo... Na partida
Nem o pranto os teus olhos umedece,
Nem te comove a dor da despedida.

E eu, solitário, volto a face, e tremo,
Vendo o teu vulto que desaparece
Na extrema curva do caminho extremo

Abaixo serão postados dois poemas. Um, de Manuel Bandeira, antecederá o da poeta aqui focalizada, pois a sua leitura alarga e aprofunda o entendimento e o alcance poético do texto da escritora, que vem depois.

Profundamente

Manuel Bandeira

Quando ontem adormeci
Na noite de São João
Havia alegria e rumor
Estrondos de bombas luzes de Bengala
Vozes, cantigas e risos
Ao pé das fogueiras acesas.

No meio da noite despertei
Não ouvi mais vozes nem risos
Apenas balões
Passavam, errantes

Silenciosamente
Apenas de vez em quando
O ruído de um bonde
Cortava o silêncio
Como um túnel.
Onde estavam os que há pouco
Dançavam
Cantavam
E riam
Ao pé das fogueiras acesas?

— Estavam todos dormindo
Estavam todos deitados
Dormindo
Profundamente.
*
Quando eu tinha seis anos
Não pude ver o fim da festa de São João
Porque adormeci

Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo
Minha avó
Meu avô
Totônio Rodrigues
Tomásia
Rosa
Onde estão todos eles?

— Estão todos dormindo
Estão todos deitados
Dormindo
Profundamente.


Profundamente

Neide Archanjo

Estão todos sentados esta noite.
Estão todos sentados.

A velha mesa respira
mas nadas se aquieta.

Estão todos sentados
mortos e sentados.

E este amor não basta
para carpir os beijos os nomes
os retratos.

(O vocábulo “nadas” está grafado de acordo com todas as cópias encontradas na internet. Não havia uma cópia impressa em mãos. Imagina-se que seja uma oposição intencional a “todos”. Não se pode justificar, segundo a gramatica, entretanto, o verbo “aquieta” no singular.)

Vejo, inclusive, que o conhecimento do texto do poeta justifica o uso do advérbio “profundamente” no título do segundo poema, que, me parece meio vazio gramaticalmente ali. No texto de Bandeira, o advérbio em questão desempenha seu papel gramatical tradicional ao se referir ao verbo “dormindo”, em dois momentos, porém alterando-lhe o sentido, na última estrofe, pois lhe acrescenta a conotação de morte.
Se, no texto da poeta, a palavra “mortos” não deixa dúvidas, o jogo que faz com “sentados” em oposição ao “deitados”, no texto de Bandeira, só se esclarece, quando quem lê se depara, finalmente, com “retratos”. Então, no texto segundo, todos os que estão sentados no retrato também estão “dormindo profundamente” “esta noite”. Há, portanto, uma ligação bastante forte entre os dois textos.
Em 1998, a poeta lança um CD com suas poesias lidas onde há a participação da cantora Maria Bethânia, que empresta sua voz especialmente forte e linda ao texto da outra. Veja o vídeo abaixo. Agradeço ao site YOUTUBE (aqui).




OBRAS:

Primeiros ofícios da memória (1964); O poeta itinerante (1968); Poesia na praça (1970); Quixote tango e foxtrote (1975); Escavações (1980); As marinhas (1984); Poesia 1964 a 1984 (1987); Tudo é sempre agora (1994 – indicado ao prêmio Jabuti); Pequeno oratório do poeta para o anjo (1997); CD coleção Poesia falada, v. VI, “Neide Archanjo por Neide Archanjo”, com participação de Maria Bethânia (1998); Epifanias (1999).



Aguardo sua visita em meus blogues Poema Vivo (aqui) e Conto-gotas (aqui).

domingo, 16 de outubro de 2011

A literalidade do cotidiano - Possibilidades em Adriana Lisboa

Eliane F.C.Lima

Sonho

Adriana Lisboa

Ele conta o sonho que teve com ela. Chegavam numa padaria. Fome. Cheiro de pãozinho fresco. Ainda demora a sair?, ele pergunta. Não, na verdade acabou de sair. Então vê dois pra gente, com manteiga.
Ele conta o sonho e sorri.
(Caligrafias – Rio de Janeiro: Rocco, 2004)

Inicialmente, remeto quem visita a minha postagem anterior sobre a escritora, onde posto alguns dados sobre ela (link). Hoje escolhi uma narrativa de um de seus livros.
Faço aqui, pelo menos, duas leituras possíveis do texto, voltando a citar a Teoria da Recepção, que atribui ao leitor um papel importante no significado do texto. Seu horizonte de expectativas é parte importante da fundação desses sentidos.
Minha estratégia foi procurar os dois significados principais para o vocábulo “sonho”, conceitos adaptados do dicionário de Caldas Aulete, aplicando cada um à narrativa:
1.Ação ou resultado de sonhar, enquanto se dorme.
2.Desejo intenso e constante, aspiração ou imaginação sem fundamento, sequência de ideias vãs e incoerentes às quais o espírito se entrega.

O primeiro significado levaria a uma leitura mais linear do texto. Mas o sonhar com um acontecimento cotidiano, permite ainda uma visão poética da rotina, o relacionamento bem-sucedido de duas pessoas que pode se concretizar até na ingenuidade do dia a dia. A felicidade no simples. O final do texto confirma isso.
Porém há a possibilidade da palavra “sonho”, no título, diferentemente do que parece apontar no texto em si, conter o segundo significado. Nesse caso, nesse sonho, o “chegar a uma padaria”, “o pãozinho fresco”, o “com manteiga” podem pertencer, não ao universo da rotina, do dia a dia, do simples, mas ao universo do “desejo intenso”, da “imaginação sem fundamento”, à “sequência de ideias vãs” e, nesse caso, ficaria a pergunta: que tipo de casal – em que situação vivem –, para o qual “pão com manteiga” se torna o objeto do desejo impossível de se realizar? O “sorrir” agora, diversamente da leitura anterior, que apenas se comprazia com um sonho divertido e simpático, se reveste do sentimento de preenchimento pelo sonho para uma necessidade diante do vazio da realidade.
Devo chamar a atenção de quem lê, no entanto, que as virtualidades interpretativas estão no texto e partem dele. As possibilidades de leitura não pertencem à imaginação livre do olhar receptivo, tendo o processo de entendimento do texto, ao contrário, um movimento de bumerangue: partem do texto – estão latentes nele – em direção de quem lê e voltam ao texto. Conhecer os vários significados de um termo, por exemplo, levam à sobreposição de sentidos de uma narrativa. Convido a (o) visitante a, abalizadamente, encontrar o seu próprio percurso.


Aguardo a(o) visitante em meus blogues Poema Vivo e Conto-gotas.

domingo, 25 de setembro de 2011

A poesia forte de uma dramaturga: Renata Pallottini

Eliane F.C.Lima

Poética (II)

Renata Pallottini

Descer até o fundo
e quando o sentimento
esteja o mais maduro

provocá-lo e feri-lo
para que a voz aflore

mas sem meias-medidas
sem cautela e sem pena:
assim o Poema.

O metalinguístico texto acima, confissão poética, é de Renata Pallottini (São Paulo, capital – 1931), formada em Direito, Filosofia e Dramaturgia, área em que deu aulas e exerceu intensa atividade, quer em teatro, quer em televisão, e, através da qual ficou realmente conhecida: para o primeiro escreveu, junto com Chico Buarque de Hollanda, o espetáculo “Pedro Pedreiro”, por exemplo, e para a segunda “Malu Mulher”, “Joana” e “Vila Sésamo”. Mas também publicou muitos livros de poesia:

Acalanto (1952); O cais da serenidade (1953); O monólogo vivo (1956); A casa (1958); Nós, Portugal (1958); Livro de sonetos (1961); A faca e a pedra (1965); Antologia poética (1968); Os arcos da memória (1971); Coração americano (1976); Chão de palavras (antologia –1977); Noite afora (1978); Cantar meu povo (1980); Cerejas, meu amor (1982); Ao inventor das aves (1985); Esse vinho vadio (1985); A menina que queria ser anja (1987); Praça maior (1988); Obra poética (1995); Chocolate amargo (2008).
Nosso enfoque, aqui, obviamente, será sobre sua marcante poesia, na qual prova sua versatilidade artística e seu talento inconfundível. A reflexão sobre a dor humana e o imponderável de sua condição se derrama a cada verso de seus poemas.

Finisterrae

Renata Pallottini

Aqui começa o fim
Feito de vento.

Enlouqueceu a bússola
Do tempo.

Naufragam as certezas
Do infinito.

Aqui se acaba o mapa
Nasce o mito.

Aqui começa a morte
Em naves findas .

Aqui começa o medo.
Como um grito.

Como muitas outras escritoras, o que já foi tema de análise neste blogue a respeito de Cecília Meireles (vale a pena conferir aqui), a poeta se vê diante do dilema do tempo. E surge, exatamente como em Cecília, o íntimo compromisso do termo “vento” com tal abstrata e dúbia dimensão.
Como naquela poeta, ainda, se percebe o embricamento de tempo/espaço, introduzido pelos vocábulos “bússola” e “mapa”, objetos de orientação espacial, aqui acrescidos do outro significado.
Como foi argumentado para o estudo sobre Cecília, pressente-se uma diferenciação entre “tempo” e “eternidade” (infinito) – “Naufragam as certezas/ Do infinito.” – e, se está o primeiro aderido à ideia de matéria e, portanto, à sua finitude – “Aqui começa a morte/ Em naves findas.” – é o “mito” que garante o encontro com a segunda.
O texto abaixo caminha por passos semelhantes.

Lamentação dos filhos


Renata Pallottini

Do infinito nascemos
para um termo preciso.
De infindas, as penas,
de vago, o aviso.

Nados mornos, frágeis,
de entre dois gemidos.
Quando a morte, a eterna?
Quando o Conhecido?

Que isto já nos cansa,
a nós, os malformados,
desde a distante infância
frutos destinados.

Somos os que a vida
fez limite amargo.
De infindas, só as penas,
de vago, o aviso vago.

Lágrimas na cadeira do dentista

Renata Pallottini

Não, não é o dente que dói.
Não, o motor não incomoda.

Não me doem os dentes
mas quem morde.

Nunca o que dói é o aparente
senão o outro, de outra ordem
o oculto na cárie da vida, o tártaro
dos ossos ,
na intempérie incisiva da dentadura mole.

Nunca o que dói, doutor,
é o que fazem as máquinas,
senão
o humano dessas brocas
os buracos
da alma.

Ponha ouro, doutor,
e seja lá o que possa
morder o dente, ávido de amor,
a conta, ao fim, é nossa.

As metáforas construídas por Pallottini, no poema, anterior, para traduzir esse sofrimento inevitável – “os buracos/ da alma”, “o oculto na cárie da vida” – do ser humano no acerto com seu destino – “a conta, ao fim, é nossa.” – são uma marca original de sua linguagem poética.

Por último, seria imperdoável não postar o belo poema que consegue o efeito de envolver o extremo erótico na sutileza pictórica obtida pelo apelo à delicadeza de uma fruta que carrega, em si, do imaginário social e literário, a pureza da ausência do erótico.

Cerejas, meu amor

Renatta Pallottini

Cerejas, meu amor,
mas no teu corpo.
Que elas te percorram
por redondas.

E rolem para onde
possa eu buscá-las
lá onde a vida começa
e onde acaba

e onde todas as fomes
se concentram
no vermelho da carne
das cerejas...


Visite também meus blogues Conto-gotas (aqui) e Poema Vivo (aqui).

domingo, 28 de agosto de 2011

A delicada lira de um Gonzaga, o poeta de Lavínia

Eliane F.C.Lima

O poeta e professor Luiz Gonzaga da Silva me foi apresentado por outra poeta, Francisca Júlia, morta em 1920, por cujo nome ele procurava em pesquisa na Internet. Chegou a este blogue e encontrou a postagem que fiz sobre ela em 05-01-2010. Contatou-me e nasceu uma correspondência e admiração de minha parte por sua produção poética, que ele fez a gentileza de me enviar e autorizar para a presente publicação.
O professor Luiz Gonzaga da Silva é Mestre em Letras pelo CESJF e Professor Titular de Literatura Brasileira e História da Arte nos Cursos de Letras e de História da FAFISM, a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras Santa Marcelina, de Muriaé, em Minas Gerais, onde reside há muitos anos. A par de seus poemas, há também uma produção acadêmica pela qual é responsável.
Tive de fazer uma difícil seleção entre seus poemas dedicados à cidade natal, Guarani, produzidos pelo olhar saudoso de um adulto para sua infância e juventude, publicados em três livros abaixo relacionados. Neles, se destacam os lugares sacralizados pela memória dessa cidade, por onde caminhamos através de sua linguagem lírica. A recuperação desses locais pela imaginação poética faz o leitor, então, se envolver em um caminho mágico, porque mnemônico, longe da realidade, que nunca é o objetivo daquele que busca seu lugar idealizado. Que importa a pequenez da realidade diante da grandeza do sonho?
E todos esses cantos estão povoados pelas personagens que viveram e falaram e coloriram, transitoriamente, mas para sempre na lembrança daquele que revive, um lugar e um tempo do passado, mas eterno no presente.
É bom ser citada a linguagem especial para construir esse ambiente relembrativo, que me trouxe de volta Manuel Bandeira, outro poeta, sua palavra sabiamente lírica, porque simples, ambos atingindo o preciso e o poético, justamente por acharem o valor exato na fuga ao preciosismo.
Quero chamar a atenção, antes de irmos para os poemas, que tentei manter, o mais próximo que pude, a diagramação dos poemas nas obras, o que nem sempre foi possível, limitada que estou pela fixidez dos recursos do blogue. Tive de abrir mão de dois poemas magníficos por este motivo.

(Des) pedaços

Luiz Gonzaga da Silva

Fico a procurar
pedaços de mim,
pelas ruas
da cidade amada,
onde andei.

(Encontro-me aqui e ali
e os junto com amor
costurando-os com
a linha da saudade.)

Frankenstein de hoje,
vejo, ao final,
ter alivanhado
só pedaços do que fui.
Choro sem saber por que.
E me desfaço, novamente,
nos pedaços que juntei,
atirando-os ao fundo do Pomba,
que os levará

quem sabe? –

ao mar sem fim
sem lembranças
ao mar, ao grande mar...

(2003)



A pracinha, às 20 h

Luiz Gonzaga da Silva

Uma que outra luz
invade o escuro aconchegante
da pracinha.

Não há ninguém por lá.
As casas enfurnam
pessoas e novelas.
O coreto – iluminado –
está lá, perplexo,
– vazio –
parece um útero inútil,
sem serventia.

Há silêncio e estranhas sombras
à volta dele.
Nem um carrinho de pipoca
nem um grito de criança
apenas uma placidez inconfortável
de imobilidade estática...
(E a noite. A noite. A noite.)
(2003)


Cansaço de Chronos

Luiz Gonzaga da Silva

Neste frio mês de julho,
cá no bar do Zanovelli,
tomando uma cervejinha,
sinto o tempo decrescendo,
como um velho, com chinelos.

Até as nuvens do céu,
aqui, neste Guarani,
são lerdas, por sob o azul.

Será que o tempo parou?
Ou o céu que descorou?
Será que o vento cansou?
Ou o sol, que desmarelou?
Ou foi Deus que bocejou?


Vejo, observo, sinto
haver um cansaço em tudo.


Me recolho, quase mudo,
neste silêncio felpudo,
de miúdas lembranças
que o tempo, já tartamudo,
aprofundou
dentro de mim.
(2006)


As cartas não mentem, jamais!...

Luiz Gonzaga da Silva

A Maria da Sá Zinha
punha cartas.
Lia a vida da gente,
sobre muletas,
altiva.

(Quanta gente
saiu de lá, capenga,
quase a rolar,
escorregando,
no

Morro
das
Pedrinhas... )
(2008)


Mas nosso poeta, introduzido, talvez pelo destino do nome Gonzaga, que o levou ao Tomás Antônio, do século XVIII, arcádico, e à sua Marília de Dirceu, dedica seus poemas a uma Lavínia, que lhe frequenta a imaginação poética. Aqui a linguagem, de uma delicadeza amorosa, alcança a mesma precisão dos poetas daquele tempo, cansados do requinte e volteios do Barroco. Fazer uma seleção foi quase uma dolorosa e impossível escolha, porque flutua o encanto de uma voz enamorada, enamoradoradamente tomado também o leitor. De forma bastante subjetiva, me encantei com os textos.

Chegança

Luiz Gonzaga da Silva

Reparaste, Lavínia,
reparaste a tarde?
Tão cinzenta,
Lavínia,
tão cinzenta...

(De repente,
o sol.)

Sabes bem
a hora de chegar...
(2007)


Gosto de domingo

Luiz Gonzaga da Silva

Tens gosto
tão gostoso
de domingo,
Lavínia!

Me deixa
Lavínia,
me deixa
descansar-me
em ti.
(2007)


Compra

Luiz Gonzaga da Silva

Lavínia,
tesouro meu,
moedinha minha,

te tento comprar
com a poesia.

Concordas?

Me sinto feliz.
(2007)


Possessão

Luiz Gonzaga da Silva

A tua dimensão,
Lavínia,
é azul.
És assim
como uma rosa-dos-ventos
desfolhada.
Sul-oeste,
norte-leste
do céu
em minha vida.

Direções totais em ti,
Lavínia.
Me perco em ti,
Lavínia,
e te possuo
em cada ponto
cardeal.
(2007)

Como o visitante percebe, a poeta Francisca Júlia nos abençoou, lá onde está. Aguardo outros poemas que estão sendo escritos, promessa feita a mim por Luiz Gonzaga da Silva, que, sem o menor pejo, evidentemente, cobrarei.

Obras literárias

Poemas

Idas e vindas. Muriaé: 1. Gonzaga da Silva, 2003;
Idas e vindas II: um olhar sobre a cidade amada. Muriaé: Vanguarda Gráfica, 2006;
O livro de Lavínia. Muriaé/Juiz de Fora: Templo, 2007;
Nem idas nem voltas: desvoltas. Muriaé/Juiz de Fora: Templo,2008.

Poemas para crianças
Criancices; poemas infantis. Muriaé/Juiz de Fora: Templo, 2008/2009;
Chinfrim:versinhos de brinquedo. Muriaé: Do autor, 2011.

Convido quem me visita a ir a meus outros dois blogues Poema Vivo (link)
e Conto-gotas (link).


domingo, 7 de agosto de 2011

"Brasil feminino"

Eliane F.C.Lima

Fui visitar a exposição “Brasil Feminino”, na Biblioteca Nacional, que continua a comemorar seu aniversário de 200 anos de criação e 100 no prédio da Avenida Rio Branco. A exposição, cujos responsáveis declaram não ter intenção sexista, é bastante interessante, porque focaliza a ascensão das mulheres em todos os setores, passando por Menininha do Gantois a Dilma Roussef, analisando as circunstâncias das mulheres desde os séculos anteriores ao XXI.
Mas não se deixa de manter a posição crítica, no encaminhamento, ao serem exibidos jornais de época como, por exemplo, o assassinato da jovem Aída Curi, que morreu por despencar do alto de um edifício de luxo, onde subira, atraída por dois jovens bem colocados na vida, violência que não perdeu sua força e que continua a ser uma constante até hoje.
A exposição utiliza, como mecanismo de comunicação com o público e comprovação dos fatos, jornais, revistas e toda e qualquer publicação de época. A diversidade do que é exposto é bem atraente para o visitante.
O que me chamou bastante a atenção, no entanto, foram vários estandartes, dispostos como uma cortina a separar dois ambientes, onde ditos e quadrinhas populares, transcrições de trechos de artigos de livros de séculos anteriores, que, de uma forma resumida, mas contundente, dão testemunho do pensamento dominante, no passado, a respeito das mulheres, suas funções e direitos, pensamento que, como se vê sobre o número atualmente crescente de acontecimentos violentos em relação a elas, parece não ter mudado tanto assim.
Em várias dessas transcrições, pude observar a constante de se enunciar que a educação feminina era um fator em que se deveria colocar bastante cuidado. Às mulheres deveriam ser ensinadas, exclusivamente, noções que as tornassem competentes como donas de casa e mães. E o que me pareceu mais claro: a educação redentora, aquela que leva as pessoas a se tornarem críticas, com capacidade analítica deveria ser evitada para essa parcela da população, a todo custo, como um mal corruptor. Uma das frases populares dizia algo mais ou menos assim: “Não confie em mula que faz 'hiiimmm', nem em mulher que fala latim.” Claro que a equiparação da mulher ao explorado e “desimportante” animal não é por acaso e que a expressão “latim” aparece ali, tão somente, como sinônimo de cultura e erudição, traduzindo uma mulher que fosse capaz de se expressar com profundidade, perceber o tipo de vida a que era condenada e, finalmente, defender-se, o que a tornaria não confiável. Isso desestabilizaria uma cultura patriarcal, cujo principal sustentáculo era a opressão dos outros segmentos.
Saí da exposição com a certeza de que a educação é redentora, certeza que eu já tinha, revigorada. A cultura popular lá dentro, ao temer o crescimento das mulheres sob essa batuta, mostra que é sábia.

Já estou postando também em Poema Vivo (link) e Conto-gotas (link).


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domingo, 3 de julho de 2011

Arriete Vilela - a poesia do irrevelado












Eliane F.C.Lima

“Pedem-me notícias de mim./Eu as dou assim:/em versos/que me desmentem.” Essa é a estrofe final do “Poema 13”, da escritora alagoana Arriete Vilela, que teve sua obra analisada em Transparências da memória / Estórias de opressão, estudo da professora Angélica Soares (UFRJ), junto a outras escritoras, pelo conteúdo de seus textos e, ainda, por seu talento poético, o que o leitor deste blogue comprovará a seguir.
Professora aposentada da Universidade Federal de Alagoas, onde trabalhou com a autoria feminina na Literatura Brasileira, foi eleita para a Academia Alagoana de Letras em 1996. Sua obra recebeu inúmeros prêmios, por lhe reconheceram a importância, como o da União Brasileira de Escritores do Rio de Janeiro, em 2002.
Atualmente edita o blogue “A poesia nas entrelinhas da vida” (link), de onde foi copiada a foto que ilustra a postagem.

Obras (poesia e ficção):
Eu, em versos e prosa (1970), 15 poemas de Arriete (1974), Recados (1978), Para além do avesso da corda (1980), Pequena história da meninice e outras estórias (1981), Remate (1983), Fantasia e avesso (1986), Farpa (1988), A rede do anjo (1992), Dos destroços, o resgate (1994), O ócio dos anjos ignorados (1995), Tardios afetos (1994), Vadios afetos (1999), Grande baú, a infância (2003), Frêmitos (2003), A Palavra sem Âncora (2005), Lãs ao vento (2005), Ávidas paixões, áridos amores (2007), Obra poética reunida (2009).

Poema 13

Arriete Vilela

Pedem-me notícias de mim.
Eu as dou assim:
em versos.

Há tempos não permitia que pedras
rolassem com o limo macio
das palavras.
Eu usava arpões
para não fisgar as minhas fragilidades.

Mas, porque me pedem notícias de mim,
eu as dou assim:
em versos.

Uso a máscara dos antigos bailes
e danço ao som de um clarinete
que sempre imaginei ser do avô.

(O avô - ah, os equívocos da infância! -,
o avô tocava bumbo.)

Porque me pedem notícias de mim,
confidencio afetos em palavras que os contradizem,
em excesso de murmúrios,
já que as tardes concretas silenciaram os meus antigos
(des)amores.

Pedem-me notícias de mim.
Eu as dou assim:
em versos
que me desmentem.

(Ávidas paixões, áridos amores - In: Obra poética reunida)

Poema 42

Arriete Vilela

Pensas encontrar-me aqui
nestes versos?

Enganas-te.

Os pássaros da poesia semeiam
miolos de pedra
a cada linha, para que tropeces nas entrelinhas.

E se buscas pistas de alguém
aqui, nestes versos,
desiste - ou não sairás do labirinto,
e os minotauros pisotearão a tua cabeça
- cruamente, sem simbolismos.

Pensas encontrar-me aqui
nestes versos?
Não te iludas.
Teu voyeurismo te deixará para sempre
no encalhe da maré,
pois fechadas a ti estão as entradas do rochedo:
ele, vigiado pelas borboletas
elas, tecidas por Aracne.

(In: Obra Poética Reunida)

Nos dois primeiros poemas postados, a poeta estabelece a relação de um eu enunciador com a poesia. Essa relação, no entanto, parece indicar um caminho que vai no sentido contrário ao da revelação, como se pode observar em “... eu as dou assim:/em versos/que me desmentem. “ (Poema 13) e em ”Pensas encontrar-me aqui/nestes versos?/Enganas-te.”(Poema 42), ecoando a bela suposição de que uma das estratégias da poesia é o engano. Sutilmente, porém, revela, a princípio, aquilo que nega, pois o hermetismo desse eu mais profundo é surpreendido na beleza da metáfora: “... fechadas a ti estão as entradas do rochedo...”. Entretanto a mesma impossibilidade acaso surpreendida no vocábulo “rochedo” é lapidada pela fragilidade do “tecidas por Aracne” e “vigiado pelas borboletas”.

Os poemas seguintes tematizam esse eu poético que se autoinvestiga. É interessante se atentar para o final do Poema 4, em que novamente a imagem do rochedo é usada, mas, dessa vez, a palavra “descobrindo-se” parece confirmar o estabelecimento da mesma possibilidade de desnudamento: se lá eram o “apenas” borboletas, aqui é a “baixa da maré”.

Poema 4

Arriete Vilela

Preciso sempre
ir dentro de Mim:

confiro-me

E quando emerjo,
sou rochedo descobrindo-se
com a baixa da
maré.


Poema

Arriete Vilela

Não devias ameaçar-me
com essa solidão:
venho de portos sem búzios,
destinos diversos
cruzando-se na soleira
dos meus olhos.

Não devias ameaçar-me:
refaço minha travessia
e te provo que meu coração
sobrevive à ausência
de bússola.
(Frêmitos - In: Obra poética reunida)

Poema 29

Arriete Vilela

Vou me sabendo sem remansos.
Por vezes o mar estronda
dentro de mim
e tempestades me obrigam
a descer aos porões, a reconhecer-me
nas escotilhas fechadas da minha
incômoda solidão.

Difícil reconhecimento, porém.
Eu já sou muitas.
Meus olhos, é verdade,
ainda se mantêm amorosamente
indiscretos, e minha alma busca
da palavra as seduções segredosa
que me ardem no peito.
Mas já não me deixo
possuir.


Poema 5

Arriete Vilela

É bom
ter o coração apaziguado:

outra vez na ponta
do arco,
torna-se flecha
ultrapassando-se
no próprio
voo.
(Frêmitos - In: Obra poética reunida)

Termino a postagem com um poema que, se possui um tema social aflitivo, a beleza da comparação transforma esse tema em uma fala poética, esvaziando-o do que poderia trazer-lhe um ar recorrentemente panfletário. É impossível não se atentar para a inteligência da vinculação de “meninos de rua” e “pardais”, imagem que faz parte de meu universo poético, pelo mesmo motivo que norteou a poeta em questão (remeto o leitor a dois poemas em meu blogue – link e link – “Poema Vivo”, onde uso a imagem do pardal, como a ave que se esvazia de todo o seu conteúdo idealistamente poético, por seu “plebeísmo”).

Poema 28

Arriete Vilela

Os meninos de rua
parecem pardais urbanos:
em ligeiros voos
acham-se em toda parte,
aproveitam restos de toda sorte.

Tropical
é algazarra de suas vozes,
quando se ajuntam;
seus gestos e jeitos,
de uma graça desavisada,
assustam e comovem.

Atentíssimo dever ser
o anjo da guarda dos meninos de rua,
esses tantos pardais urbanos.


Convido o visitante a uma viagem até meus blogues Poema Vivo (link) e Conto-gotas (link).

domingo, 19 de junho de 2011

Hosana

Eliane F.C.Lima

Ontem fez um ano da morte do escritor português José Saramago. E, como todo o mundo já percebeu, estamos há um ano mais pobres
. De cultura. De amor ao próximo. De verdade.
Logo após a sua morte, compus o poema abaixo, onde eu imaginava a chegada de Saramago ao céu, ele que era ateu. Não é um poema religioso ou de negação das ideias do escritor. Ao contrário. Vali-me do tema para reafirmar o pensamento do homem.

Hosana

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais - RJ)

Sentado estava Deus, e absorto
– que Deus também tem dúvida e anseio.
E chega-lhe, de manso, em pleno horto,
um magro homem e senta ali no meio.

De imediato o deus o reconhece,
é Saramago, dele não se esquece.
O homem, mesmo vendo, não acredita
e se exaltar, à toa, ainda evita.

Mas o outro – a espera não foi vã –,
mesmo Deus, o coração aos pulos,
sorri de si, e mais dos homens fulos
que, no lodo, cospem ira anã.

Mostra as guirlandas postas pelos cestos,
a festa preparada ao José,
declama, decorados, os seus textos,
demonstra com clareza sua fé.

Diz-lhe que agradece a cada dia
a negação daquele deus cruento,
do que foi só malévolo invento,
daquilo que – por Deus! – não existia.

Negando as hipócritas mentiras,
o uso da falácia e do poder,
falsa verdade que sempre o traíra,
Saramago o estava a defender.

Manso poeta, o abraço às costas,
vê ao redor de si um outro homem,
e, sem se importar por quem o tomem,
envolve-lhe, cálido, as mãos postas.

domingo, 5 de junho de 2011

A rainha do mundo - privado X público: reflexos na literatura

Eliane F.C.Lima

No último dia das mães, fiz uma postagem – “Nós, mulheres, somos tudo. Até mães.” –, onde levantei o conceito de público X privado, chamando a atenção de que toda a sacralidade conferida à mãe se devia ao fato de ser mulher, visto que essa situação especial acima da condição humana estava intimamente ligada a uma espécie de prêmio pelo fato dela estar apartada do mundanismo e suas circunstâncias, ou seja, limitada à casa, “protegida” das tentações e dos pecados. Na canção da MPB “Mamãe”, David Nasser e Herivelto Martins já davam a pista: “Ela é a dona de tudo/ Ela é a rainha do lar”. Esse “tudo” era muito pouco, um universo circunscrito ao privado, ao “lar”, ao qual cabia à mulher, como mãe, ser rainha.
No poema “Infância”, do qual transcrevo algumas estrofes abaixo, Drummond volta à figura materna presa à domus e com ela confundida.

Infância

Carlos Drummond de Andrade

Meu pai montava a cavalo, ia para o campo.
Minha mãe ficava sentada cosendo.
Meu irmão pequeno dormia.
Eu sozinho menino entre mangueiras
lia a história de Robinson Crusoé,
comprida história que não acaba mais.
(…)

Minha mãe ficava sentada cosendo
olhando para mim:
- Psiu... Não acorde o menino.
Para o berço onde pousou um mosquito.
E dava um suspiro... que fundo!


Lá longe meu pai campeava
no mato sem fim da fazenda.

E eu não sabia que minha história
era mais bonita que a de Robinson Crusoé.

É interessante atentar para o fato de que à figura do pai/homem corresponde o “público”, o exterior, a busca pelo capital – ver os versos em itálico –, e à mãe/mulher, a vida “privada”, o interior, a proteção da família – versos em negrito.
Observe-se que a descrição do momento familiar é feita pela visão particular do filho adulto que, olhando para a infância, reintroduz aquela visão de pequeno ainda, para quem a “ordem das coisas” estava perfeita, como se depreende da última estrofe. É dele o olhar que relembra e avalia seu passado. Pela primeira estrofe, pode-se observar, que tinha um temperamento introvertido.
Mas parece que algum sentimento inconveniente ao idealismo da cena, sentimento que ia na alma da mãe – é flagrante a reiteração da inércia materna em “ficava sentada” –, não foge totalmente à percepção da criança: “E dava um suspiro... que fundo!”. Qual o alcance e significado exatos do enunciar daquele suspiro que não parece traduzir satisfação? Introduzida no meio do poema, tal alusão instaura um desequilíbrio na pretensa felicidade doméstica, provocando uma sensação de estranhamento ao leitor.
A estrofe seguinte, novamente, enuncia o afastamento do pai daquela “paz” íntima, reiterando a oposição papel da mulher X papel do homem. O leitor percebe, com sutileza, que “papel”, nesse caso, envolve não só deveres, mas, principalmente, direitos... e, talvez, felicidade. E se pergunta por que suspira tão profundamente aquela mãe/mulher.

E o sujeito enunciador se apressa a encerrar a questão, trazendo para si, subjetivamente, segundo sua visão idealizada, a perfeição da história da família: “minha história.”

Mater dolorosa

Adélia Prado

Este puxa-puxa
tá com gosto de coco.
A senhora pôs coco, mãe?
— Que coco nada.
— Teve festa quando a senhora casou?
— Teve. Demais.
— O que que teve então?
— Nada não menina, casou e pronto.
— Só isso.
— Só e chega.
Uma vez fizemos piquenique,
ela fez bolas de carne
pra gente comer com pão.
Lembro a volta do rio
e nós na areia.
Era domingo,
ela estava sem fadiga
e me respondia com doçura.
Se for isso o céu,
está perfeito.

Adélia Prado também expõe um perfil de mãe em “Mater dolorosa”. No poema, aparece uma mãe sem a disponibilidade apregoada pela tradição patriarcal. Primeiro pela ironia presente em “Teve. Demais”, onde afirma o que evidentemente nega. E o trecho “ela estava sem fadiga/e me respondia com doçura” apresenta uma situação inusitada, não costumeira, que inaugura um caminho desconhecido para o “céu”.
E o termo “céu”, no poema de Adélia, cujo título enfatiza o sofrimento materno, pode remeter-nos para o "paraíso" do famoso poema de Coelho Neto – Caxias, MA, 1864-1934, Rio de Janeiro –, cujos versos finais acabou se configurando em ditado, cultuado no imaginário popular.

Ser Mãe

Coelho Neto

Ser mãe é desdobrar fibra por fibra
o coração! Ser mãe é ter no alheio
lábio que suga, o pedestal do seio,
onde a vida, onde o amor, cantando, vibra.

Ser mãe é ser um anjo que se libra
sobre um berço dormindo! É ser anseio,
é ser temeridade, é ser receio,
é ser força que os males equilibra!

Todo o bem que a mãe goza é bem do filho,
espelho em que se mira afortunada,
Luz que lhe põe nos olhos novo brilho!

Ser mãe é andar chorando num sorriso!
Ser mãe é ter um mundo e não ter nada!
Ser mãe é padecer num paraíso!

Parece importante chamar a atenção para a afirmativa de “ser mãe é ter um mundo e não ter nada!” que, fazendo coro à canção popular no início citada, reveste-se, sob a visão atual que se tem sobre os direitos da mulher, com o significado oposto ao que pretendia o poeta. Essa visão parece retomada no poema que se segue. Nele, tradução de um pensamento contemporâneo, a maternidade – paternidade –, esvaziada de seu pseudo conteúdo sagrado, de seu idealismo, está colocada no mesmo patamar de outros elementos da vivência hodierna da mulher, analisada dentro de seus limites reais. Vale se atentar para o fato de que esse eu que “filosofa” se neutraliza ou se amplia nesse “a gente”, independente de sua condição de gênero. Ter filho não é sagrado, é humano.

190

Martha Medeiros

o sentido da vida
é o que a gente sente

por um filho
que é a cara da gente

por um trabalho
que ocupa a mente

por um amor
que nos deixa doente

pena que isso não baste
por mais que se tente

(Poesia Reunida)

O diálogo de opostos, quando se cotejam os poemas de Coelho Neto e Martha Medeiros, fica claro e resumido no trecho “Todo o bem que a mãe goza é bem do filho,/espelho em que se mira afortunada,” em oposição à “pena que isso não baste/ por mais que se tente.” Serão os versos finais da citada poeta a chave para o suspiro da mãe drummoniana?
(Aguardo você em Poema Vivo e Conto-gotas.)

(Continuo remetendo para o Longitudes, de Nydia Bonetti, poeta que postei em Literatura em vida 2. É maravilhar-se.)