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domingo, 15 de agosto de 2010

O metadiscurso de Adriana Lisboa - Literatura, já 17

Eliane F.C.Lima

Adriana Lisboa faz parte da novíssima geração de escritoras brasileiras. Carioca (1970), morou na França, no Japão e, atualmente, nos Estados Unidos.

Embora tenha começado sua carreira no romance, sua coletânea de contos curtos Caligrafias, talvez, seja a mais difundida. Seus livros foram divulgados na Europa e nos Estados Unidos, tendo integrado diversas antologias, tanto aqui como no exterior.
Seu romance Sinfonia em branco recebeu o prêmio José Saramago, em Portugal (A foto acima é de Daniel Mordzinski).

Obras:
Romances: Os fios da memória (Rocco, 1999); Sinfonia em branco (Rocco, 2001); Um beijo de colombina (Rocco, 2003); Rakushisha (Rocco, 2007).
Contos: Caligrafias (Rocco, 2004).
Escreveu também livros infantis e juvenis e participou de inúmeras antologias.

Para aprofundamento de sua biografia, recomendo uma visita a seu site oficial, clicando aqui e a leitura de sua entrevista em “Saraiva Conteúdo” (veja aqui).

Vamos fazer uma leitura de dois contos do livro Caligrafias. Neles, iremos encontrar um tema recorrente na literatura, o do discurso literário refletindo sobre si mesmo, sobre seus processos – metalinguagem ou metadiscurso.

Caligrafia

Adriana Lisboa

Alcançar primeiro com os olhos a mesa branca da varanda onde se esquece um caderno pautado em que se abortaram alguns resumos, pé ante pé, dissimuladamente, transpor o piso de cerâmica da sala, transpô-la, a sala, ato que se torna muito mais evidente e concreto na imagem dos pés sobre o piso de cerâmica, apoiar a mão direita com preciosismo (em nenhuma hipótese a esquerda) sobre uma cadeira-obstáculo que adormeceu no caminho, debruçar mais um sorriso sobre a capa do caderno onde se lê big explosion em caracteres irregulares e coloridas e se lembrar de que era o mais barato da papelaria, empunhar a caneta de tinta azul contra o canto superior esquerdo da primeira página disponível e observar que um traço quebra a sisudez das pautas nuas, desenvolver o traço em curvas e retas e círculos de acordo com as regras há muito assimiladas numa caligrafia dita elegante e satisfatoriamente legível, despejar no oco da página um monte delas, palavras, entrecortadas por suspiros virgulares e respirações profundas, mas, mais importante, tudo num único impulso que culmine na sombra só então possível de um ponto redentor, encerrando questões, enterrando ideias e imagens e simulacros, o ponto final da vitória ou da derrota, tanto faz, o ponto final depois de uma assepsia sem parágrafo ou ponto-e-vírgula, o ponto final que recolhe tudo o que sobrou e escorre frágil, o ponto final dos pulmões vazios e dos olhos marejados, o ponto final do fim.

A primeira reflexão se dará sobre a linguagem, alguns processos gramaticais, que, em última análise, são o material com que o escritor lida para obter os efeitos que pretende. Se prestarmos a atenção, veremos vários verbos no infinitivo, que vão do início até a linha 13, de “alcançar” até “despejar”. E isso não é sem intenção: o infinitivo é uma forma em que o verbo se apresenta atemporalmente, o que tornaria as ações não datadas, isto é, de certa forma, não pertencentes ao passado, ao presente ou ao futuro.
Há, porém, outro dado relevante: o infinitivo, no texto de Adriana, me parece ter o valor de imperativo, embora seu emprego, além dos dados anteriormente referidos, suavize o aspecto de imposição que a outra forma verbal poderia agregar. O texto se apresenta, desse modo, até quase o final, como um manual de criação literária, uma receita de fazer.
Mas não se prende à imparcialidade de um gênero textual desse tipo. Ao contrário, prevê, sobrepairando a esse aspecto, ações de um agente, uma narrativa anterior – um caderno pautado foi esquecido, resumos foram abortados etc. É impossível não se atentar para a eficácia emotivo-subjetiva do advérbio “dissimuladamente”.
E esse “manual” vai sugerindo ações de forma alguma práticas ou técnicas – “apoiar a mão direita com preciosismo (em nenhuma hipótese a esquerda)” ou “debruçar mais um sorriso sobre a capa do caderno...” –, indicando que sua função é a construção de um texto artístico. Essa construção fica à mostra na interpretação literária que faz para uma das mais corriqueiras definições gramaticais para o emprego da vírgula, qual seja, a indicação gráfica de uma pausa respiratória:”... palavras, entrecortadas por suspiros virgulares e respirações profundas...”. Os adjetivos do eu enunciador violentam, divinamente, a gravidade da gramática.
Ao final, depois da expressão “um ponto redentor”, as formas verbais introduzidas são dois gerúndios – “encerrando” e “enterrando” –, os quais iniciam duas orações com valor de orações adjetivas: um ponto redentor, que encerra questões e enterra ideias.
E aqueles “olhos marejados” estão ali a enfatizar o despertar das emoções, necessário à criação literária.


Pirotecnia

Adriana Lisboa

Um menino sonhou com fogos de artifício.
Anos mais tarde, ele descobriu que as palavras às vezes formavam versos. Tornou-se poeta e durante toda a vida quis relatar o itinerário daquele sonho de infância. Remexeu nos dicionários e encontrou a possibilidade de criar imagens híbridas como sereias ou manticórias(1). Versos que soavam como café fresco, que corrompiam como aguardante pura, que salvavam como um lírio branco.
Anos mais tarde, publicou sua coletânea de poemas. O último deles se chamava Os fogos paralelos e era seu projeto de vida levado a cabo: fogos de artifícios transformados em versos.
Anos mais tarde, certa leitora comprou a coletânea. Ao enveredar pelo último poema, percebeu que as palavras assumiam cores diferentes e brilhavam sobre o fundo negro da página branca, ofuscando as estrelas, e impregnavam todo o livro com um discreto cheiro de pólvora.

(1).No dicionário Caudas Aulete digital só há alusão à palavra “manticora”: “gr. Mantikhoras (animal fabuloso com corpo de leão e cabeça de homem)”. Acredito que seja esse animal a que o texto se refira.


No segundo conto, o discurso metalinguístico vem mais dissolvido numa narrativa, subliminarmente apresentado. Ainda assim, é claro o enfoque da luta travada pelo escritor para conseguir trazer para o texto o pensamento ou emoções que deseja. Obter das palavras que emanem “um discreto cheiro de pólvora” é magia pura, é transformar sentimentos em signos linguísticos, quer dizer, torcer um nível de realidade para outro, trabalho de Hércules a que o escritor se entrega, modesto e solitário, longe dos olhos do leitor. A ele só é dado o presente do “ponto final do fim”.

Convido o visitante:
1. a visitar meus trabalhos acadêmicos em "Páginas" (ver, à direita, depois de "Arquivo do blogue");
2. a ir ao site do Núcleo Interdisciplinar de Estudos da Mulher na Literatura (NIELM)/UFRJ por aqui.
3. a ver, ainda, minhas atualizações de hoje em meu blogue
Poema Vivo (vá por aqui) e Conto-gotas (clique aqui).

6 comentários:

ju rigoni disse...

Eliane,

mais uma escritora que eu desconhecia e que passo a conhecer um pouco através desses seus invejáveis olhos de lince. E registro que me impressionou, além das imagens que ela constrói de modo magistral, a extensão da frase que inicia e segue dando corpo ao primeiro conto, - longuérrima, - como para provar (prazerosamente) o fôlego da escrita antes do inevitável "ponto final do fim"

Bjs, Eliane, e inté!

cirandeira disse...

Oi Eliane, vim retribuir a visita que me fizeste lá no 'cirandeira'.
Gostei muito de teu espaço, fiquei um bom tempo lendo tuas postagens..
alguns autores ainda não conhecia, como Narcisa Amália e Zulmira Tavares, p.ex. Muito bom o teu trabalho, PARABÉNS!
Voltarei com mais calma brevemente

Grande abraço

José disse...

Umas vezes realizamos nossos sonhos,
outras nem começamos,o meu vai só a meio, não sei se alguma vez o conseguirei realizar. vou fazer os possíveis e impossíveis para o conseguir.

Gostei do que vi por aqui, sou bem capaz de voltar outra vez.

Meus cumprimentos,
José.

L. Rafael Nolli disse...

Eliane, encontro por aqui, como sempre, um ótimo texto. Não conhecia a Adriana! Belo conto esse Pirotecnia! Destaco as luzes que você lançou sobre ele! Abraços.

Janaina Amado disse...

Olá, Eliane,
Estive viajando, retornei nesta madrugada, e só agora estou podendo retribuir sua visita. Gostei muito desta sua "casa", literatura pura. Gostei particularmente da postagem sobre Narcisa Amália, autora que eu desconhecia. Quando publicar sobre Jacinta Passos, por favor, me avise. Estou à sua disposição também, para qualquer informação adicional que desejar. O "Jacinta Passos, coração militante", agora pode também ser comprado pela internet. Grande abraço, pretendo voltar.

Carmem Teresa Elias disse...

Vou me deter ao segundo texto muito bem selecionado por você, Eliane.O metadiscurso de Pirotecnia estabelece um paralelo muito rico entre a evolução do ciclo da vida e o proceso da construção textual.O criador e a criatura estão ambos presentes : o autor é quem traz para o texto a bagagem de seus sonhos infantis acrescida de suas experiências e descobertas da vida( aqui representado pelas palavras e o dicionário), desenvolvendo sua percepção tanto abstrata ( criar imagens híbridas) quanto sensorial ou concreta ( cheiro..) até atingir o dom da criação ... Já a obra, criatura, também parte da ideia imaginada (sonho),atravessa as possibilidades geradoras de significação conotativa e denotativa das palavras para se materializar nos versos, crescer nos poemas e amadurecer no livro e realizar-se na recepção do leitor, no encontro do outro por meio da interação e interpretação bem resolvida... Parabens , Eliane pela seleção... O texto nos traz inúmeras aplicações didáticas...