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quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

A perfeita arte de amar: uma lição de Manuel Bandeira e Marina Colasanti

Eliane F.C.Lima
 
Até que a palavra fosse possível

Marina Colasanti

Brigavam, se digladiavam, sofriam. E ainda assim se queriam. Razão pela qual decidiram viver em separação de corpos.
Da estrutura aparentemente compacta de carne, ossos, músculos trancados na elasticidade da pele, separaram um a um os sentimentos, embora alguns, entretecidos nas fibras como invisíveis ligaduras daquele palpitar, parecessem indispensáveis para a sustentação do todo. Mesmo com esses, com firmeza de bisturi foram retirados, amputando-se também aquelas partes do sentir mais entranhadas, cujos limites já não mais se distinguiam, afogados em sangue.
Por fim, livres de tudo o que lhes provocava atrito e desencontro, deitaram-se lavados sobre a cama, brancos corpos possuindo-se sem nenhuma pergunta. E sem qualquer perigo de resposta.
(Contos de amor rasgados. Rio de Janeiro: Rocco, 1986)


Quando li o texto acima, imediatamente me veio à memória um poema de Manuel Bandeira, que até parece um texto interpretativo do conto, o que seria impossível, por ter sido publicado antes, em 1948, na coletânea Belo, belo. Mas há, é inegável, um diálogo que se estabelece entre os dois textos. Pelo menos na cabeça de quem lê e conhece as duas obras. Vamos ao texto de Bandeira.

Arte de amar

Manuel Bandeira

Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua    [alma,
A alma é que estraga o amor.
Só em Deus ela pode encontrar satisfação.
Não noutra alma.
Só em Deus – ou fora do mundo.

As almas são incomunicáveis.

Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.
Porque os corpos se entendem, mas as almas não.
(Estrela da vida inteira. 20 ed.Rio de Janeiro/São Paulo: Record, [s.d.])

Constata-se no texto a presença do dualismo corpo (matéria) X alma, que, vindo desde os filósofos gregos, se vê fortalecido por Descarte. E sempre, nessa disputa filosófica e ideológica, a alma tem levado a melhor, assinalada como verdadeira marca da superioridade do ser humano, sendo o corpo encarado como reles depósito aprisionador da primeira.
Mas, se o eu poético do texto de Bandeira recorre a tal dicotomia, percebe-se, logo, que sua posição vai por caminho diferente: se não  discute a hierarquia entre os dois, enfatiza o sentido pouco funcional da alma, como se pode salientar no verso “Só em Deus ela pode encontrar satisfação”. A realização plena da alma está, pois, “Só em Deus – ou fora do mundo”, ou seja, no mundo, onde a vida realmente se realiza, a alma não tem nenhuma praticidade.
E quando se trata de sentimentos mais que humanos, o eu lírico é radical: “A alma é que estraga o amor.”  É com este mesmo mote que podemos voltar ao texto de Marina Colasanti.
Se, no conto, não encontramos nenhuma alusão explícita à alma, vários elementos textuais nos ajudam a surpreender o elemento metafísico adivinhado em vários de seus atributos: as personagens protagonistas sofriam, tinham sentimentos, os quais provocavam atritos e desencontros entre elas e perguntas – inquietantes? –, que recebiam respostas perigosas. Depois que, através de um processo detalhado de amputação daquelas “partes do sentir mais entranhadas”, livraram-se de sua alma, “lavados”, deitaram-se sobre a cama e seus finalmente “brancos corpos” possuíram-se. Resume-se no apenas corpos se entendendo a “Arte de amar”.

Pareceu-me válida ainda a postagem de outro poema bastante conhecido do mesmo Bandeira, pela ligação com o tema aqui investigado. Neste, o poeta subverte inteiramente e sem disfarce a presunção cartesiana. Vale a pena conferir.

Momento num café

Manuel Bandeira

Quando o enterro passou
Os homens que se achavam no café
Tiraram o chapéu maquinalmente
Saudavam o morto distraídos
Estavam todos voltados para a vida
Absortos na vida
Confiantes na vida.

Um no entanto se descobriu num gesto largo e demorado
Olhando o esquife longamente
Este sabia que a vida é uma agitação feroz e sem finalidade
Que a vida é traição
E saudava a matéria que passava
Liberta para sempre da alma extinta
(Mesma obra)

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