Eliane F.C.Lima
Resolvi, neste 4 de julho, fazer uma brincadeira e pegar também o tema “coisa de homem”, dessa vez dando voz aos poetas. E escolhi textos, cujo foco sempre é uma presença de mulher sob essa visão masculina. E, como veremos, os revelados são eles. Pena que a pesquisa, pelo pouco tempo disponível entre os dois domingos, não pudesse ser mais abrangente. Talvez surpresas maiores pudessem surgir.
Resolvi, neste 4 de julho, fazer uma brincadeira e pegar também o tema “coisa de homem”, dessa vez dando voz aos poetas. E escolhi textos, cujo foco sempre é uma presença de mulher sob essa visão masculina. E, como veremos, os revelados são eles. Pena que a pesquisa, pelo pouco tempo disponível entre os dois domingos, não pudesse ser mais abrangente. Talvez surpresas maiores pudessem surgir.
Relatividade da mulher amada
Murilo Mendes
Eu gosto de você com uma força bruta que não
[entendo bem.
Gosto quase tanto como de mim.
Mas que pena você não ser também minha filha.
Que pena você não ser minha filha, minha irmã e
[minha mãe, tudo ao mesmo tempo.
(Poesia. Rio de janeiro: Agir, 1983.
Coleção Nossos Clássicos)
O “que pena você não ser”, nessa relação amorosa, chamou, imediatamente, minha atenção: o eu lírico desejoso de um ser amado que não existe. Inicialmente, ele ainda admite um “também” (3o verso), que resguarda a condição amorosa e sexual de sua amada. Mas, no verso seguinte, a eliminação do “também”, prende-se aos três itens familiares, ao fechar o poema. E a mulher, em sua condição de amada, é mais do que relativizada – ver o título – é anulada.
Uma mulher, em uma relação amorosa, deveria preencher, exatamente, aquelas lacunas deixadas por uma filha, uma irmã, uma mãe para um homem adulto. Mas, aqui, o desejo vai, exatamente, no caminho contrário. A incompletude da mulher desejada a ser satisfeita por facetas não desejáveis. Ou há, em sua procura, o desejo da certeza, da proteção, da segurança do amor da filha, da irmã, da mãe?
Uma mulher, em uma relação amorosa, deveria preencher, exatamente, aquelas lacunas deixadas por uma filha, uma irmã, uma mãe para um homem adulto. Mas, aqui, o desejo vai, exatamente, no caminho contrário. A incompletude da mulher desejada a ser satisfeita por facetas não desejáveis. Ou há, em sua procura, o desejo da certeza, da proteção, da segurança do amor da filha, da irmã, da mãe?
Mulher
Murilo Mendes
Mulher, o mais terrível e vivo dos espectros,
Por que te alimentas de mim desde o princípio?
Em ti encontro as imagens da criação:
És pássaro e flor, pedra e onda variável...
E, mais que tudo, a nuvem que volta e se consome.
Dormir, sonhar – que adianta, se tu existes?
Se fosses forma, somente! És ideia também.
Ah, quando descerá sobre mim a paz antiga.
(Poesia. Rio de janeiro: Agir, 1983.
Coleção Nossos Clássicos)
Observemos os dois primeiros versos: ali ressalta o atributo “terrível” para mulher e a expressão “te alimentas de mim”, que não é esclarecido ao longo do poema, embora pareça um ser obsessivamente presente para esse eu lírico. Por quê? Peço a quem lê que traga esses dois elementos, quando ler o segundo poema a seguir.
Observemos, ainda, o desejo claro: “Se fosses forma, somente.” É preciso chamar a atenção para o fato de esse verso poder ser lido de dois modos diferentes: “Se me atraísses apenas fisicamente, mas estás presente também em meu pensamento.” Ou ainda: “Se fosses apenas uma forma de beleza, mas pensas também”, o que, cá entre nós, seria bem preocupante. Em nome da paz, fico com a primeira opção. No entanto temos, de novo, a não satisfação plena em relação à mulher.
Observemos, ainda, o desejo claro: “Se fosses forma, somente.” É preciso chamar a atenção para o fato de esse verso poder ser lido de dois modos diferentes: “Se me atraísses apenas fisicamente, mas estás presente também em meu pensamento.” Ou ainda: “Se fosses apenas uma forma de beleza, mas pensas também”, o que, cá entre nós, seria bem preocupante. Em nome da paz, fico com a primeira opção. No entanto temos, de novo, a não satisfação plena em relação à mulher.
A esposa
Vinicius de Moraes
Às vezes, nessas noites frias e enevoadas
Onde o silêncio nasce dos ruídos monótonos e
[mansos
Essa estranha visão de mulher calma
Surgindo do vazio dos meus olhos parados
Vem espiar minha imobilidade.
E ela fica horas longas, horas silenciosas
Somente movendo os olhos serenos no meu rosto
Atenta, à espera do sono que virá e me levará com ele.
Nada diz, nada pensa, apenas olha – e o seu olhar
[é como a luz
De uma estrela velada pela bruma.
Nada diz. Olha apenas as minhas pálpebras que
[descem
Mas que não vencem o olhar perdido longe.
Nada pensa. Virá e agasalhará minhas mãos frias
Se sentir frias suas mãos.
Quando a porta ranger e a cabecinha de criança
Aparecer curiosa e a voz clara chamá-la num reclamo
Ela apontará para mim pondo o dedo nos lábios
Sorrindo de um sorriso misterioso
E se irá num passo leve
Após o beijo leve e roçagante...
Eu só verei a porta que se vai fechando
[brandamente...
Ela terá ido, a esposa amiga, a esposa que eu
[nunca terei.
(Vinicius de Moraes – Obra poética – Rio de Janeiro:
Cia José Aguilar)
Aqui temos, de novo, uma mulher sonhada, idealizada. Até o 17o verso, essa mulher, me parece, tem uma atitude inteiramente maternal em relação ao eu lírico e esse devolve-lhe uma atitude, correspondentemente, infantil, embora o título do poema seja “esposa”. É intrigante o trecho “Virá e agasalhará minhas mãos frias/Se sentir frias suas mãos.”, cuidados, todos nós lembramos bem, dignos de mãe.
A partir de “Quando a porta ranger... “, pode-se imaginar a mãe que sai para o “reclamo” de um outro filho.
E a conclusão também é intrigante: “... a esposa que eu nunca terei.” Por quê? É impossível a gente não retornar àquele “Que pena você não ser” do primeiro poema de Murilo Mendes. Ainda em Vinicius, há um eu que sonha com uma esposa/mulher que não corresponde à realidade. Ou que tem expectativas, no mínimo, sui generis.
A partir de “Quando a porta ranger... “, pode-se imaginar a mãe que sai para o “reclamo” de um outro filho.
E a conclusão também é intrigante: “... a esposa que eu nunca terei.” Por quê? É impossível a gente não retornar àquele “Que pena você não ser” do primeiro poema de Murilo Mendes. Ainda em Vinicius, há um eu que sonha com uma esposa/mulher que não corresponde à realidade. Ou que tem expectativas, no mínimo, sui generis.
Poema para todas as mulheres
Vinicius de Moraes
No TEU BRANCO SEIO eu choro.
Minhas lágrimas descem pelo teu ventre
E se embebedam do perfume do teu sexo.
Mulher, que máquina és, que só me tens desesperado
Confuso, criança para te conter!
Oh, não feches os teus braços sobre a minha
[tristeza, não!
Ah, não abandones a tua boca à minha inocência, não!
Homem sou belo
Macho sou forte, poeta sou altíssimo
E só a pureza me ama e ela é em mim uma cidade e
[tem mil e uma portas.
Ai! teus cabelos recendem à flor da murta
Melhor seria morrer ou ver-te morta
E nunca, nunca poder te tocar!
Mas, fauno, sinto o vento do mar roçar-me os braços
Anjo, sinto o calor do vento nas espumas
Passarinho, sinto o ninho nos teus pelos...
Correi, correi, ó lágrimas saudosas
Afogai-me, tirai-me deste tempo
Levai-me para o campo das estrelas
Entregai-me depressa à lua cheia
Dai-me o poder vagaroso do soneto, dai-me a iluminação
[das odes, dai-me o cântico dos cânticos
Que eu não posso mais, ai!
Que esta mulher me devora!
Que eu quero fugir, quero a minha mãezinha, quero
[o colo de Nossa Senhora!
(Vinicius de Moraes – Obra poética – Rio de Janeiro:
Cia José Aguilar)
No segundo poema de Vinicius, o título “Poema para todas as mulheres” elimina uma mulher definida, única, como interlocutora do eu poético e nos remete, de novo, para uma imagem geral de mulher. E agora esse “Confuso, criança” eu lírico não deixa mais dúvidas, mesmo com o “Homem sou belo/ Macho sou forte, poeta sou altíssimo” adiante.
Se no poema anterior do mesmo poeta, uma “imobilidade” assexuada, compatível com o sentimento de filho, caracterizava o ser enunciador, no segundo, a luxúria, que se acaso vislumbrou, acorda do fundo do inconsciente desse eu, uma imagem castradora e punitiva: “Que eu não posso mais, ai!/Que esta mulher me devora!”. E parece impossível a quem lê não se lembrar dos versos “Mulher, o mais terrível e vivo dos espectros,/Por que te alimentas de mim desde o princípio?”, no segundo poema de Murilo Mendes.
Esse ser feminino aponta para o que em psicologia se chama a “Mãe terrível” –“Que esta mulher me devora!” –, que é uma imagem negativa do arquétipo da mãe, segundo o estudioso da mente C. G. Jung, e que pode surgir, como imagem, nos sonhos, mitos e contos... e poemas masculinos, agora constatamos. A Medusa é um exemplo típico dessa faceta negativa da mulher/mãe devoradora.
E é em sua contraparte positiva - “... quero a minha mãezinha” –, maximizada na imagem espiritual – “... quero o colo de Nossa Senhora! –, desejoso de reconciliação com a imagem materna e com sua consciência, que esse eu lírico se refugia.
Se no poema anterior do mesmo poeta, uma “imobilidade” assexuada, compatível com o sentimento de filho, caracterizava o ser enunciador, no segundo, a luxúria, que se acaso vislumbrou, acorda do fundo do inconsciente desse eu, uma imagem castradora e punitiva: “Que eu não posso mais, ai!/Que esta mulher me devora!”. E parece impossível a quem lê não se lembrar dos versos “Mulher, o mais terrível e vivo dos espectros,/Por que te alimentas de mim desde o princípio?”, no segundo poema de Murilo Mendes.
Esse ser feminino aponta para o que em psicologia se chama a “Mãe terrível” –“Que esta mulher me devora!” –, que é uma imagem negativa do arquétipo da mãe, segundo o estudioso da mente C. G. Jung, e que pode surgir, como imagem, nos sonhos, mitos e contos... e poemas masculinos, agora constatamos. A Medusa é um exemplo típico dessa faceta negativa da mulher/mãe devoradora.
E é em sua contraparte positiva - “... quero a minha mãezinha” –, maximizada na imagem espiritual – “... quero o colo de Nossa Senhora! –, desejoso de reconciliação com a imagem materna e com sua consciência, que esse eu lírico se refugia.
Desdobramento de Adalgisa
C. Drummond de Andrade
Os homens preferem duas.
Nenhum amor isolado
habita o rei Salomão
e seu amplo coração.
Meu rei, a vossa Adalgisa
virou duas diferentes
para mais a adorardes.
Sou loura, trêmula, blândula
e morena esfogueteada.
Ando na rua a meu lado,
colho bocas, olhos, dedos
pela esquerda e pela direita.
Alguns mal sabem escolher,
outros misturam depressa
perna de uma, braço de outra,
e o indiviso sexo aspiram,
Como se as duas fossem uma,
quando é uma que são duas.
Adalgisa e Adaljosa,
parti-me para vosso amor
que tem tantas direções
e em nenhuma se define
mas em todas se resume.
Saberei multiplicar-me
e em cada praia tereis
dois, três, quatro, sete corpos
de Adalgisa, a lisa, fria
e quente e áspera Adalgisa,
numerosa qual Amor.
(...)
Sou Adalgisa de fato,
pensais que sou minha irmã
ou que me espelho no espelho.
Amai-me e não repareis!
Uma Adalgisa traída
presto se vinga da outra.
Eu mesma não me limito:
se viro o rosto me encontro,
quatro pernas, quatro braços,
duas cinturas e um
só desejo de amar.
Sou a quádrupla Adalgisa,
sou a múltipla, sou a única
e analgésica Adalgisa.
Sorvei-me, gastai-me e ide.
Para onde quer que vades,
o mundo é só Adalgisa.
(C. D. Andrade - Reunião:10 livros de poesia, 9. ed. Rio de Janeiro:
J.Olympio,1978)
Aqui, um discurso malandramente construído, dá voz a uma mulher. “Os homens preferem duas.” é Adalgisa quem diz. É ela, esse eu poético feminino, quem vai, por sua conta e risco, emitindo seus conceitos e caracterizações a respeito dos homens: “Alguns mal sabem escolher,/outros misturam depressa/perna de uma, braço de outra... ”.
Impossível, contudo, não reparar nessa Adalgisa, que desdobrada, é vista, ainda, como uma só em todas, retornando à velha concepção de mulher única, de "alma feminina", como se as mulheres também não fossem plurais.
Impossível, contudo, não reparar nessa Adalgisa, que desdobrada, é vista, ainda, como uma só em todas, retornando à velha concepção de mulher única, de "alma feminina", como se as mulheres também não fossem plurais.
A mulher e a casa
J. Cabral de Melo Neto
Tua sedução é menos
de mulher do que de casa;
pois vem de como é por dentro
ou por detrás da fachada.
Mesmo quando ela possui
tua plácida elegância,
esse teu reboco claro,
riso franco de varandas,
uma casa não é nunca
só para ser contemplada;
melhor: somente por dentro
é possível contemplá-la.
Seduz pelo que é dentro,
ou será, quando se abra;
pelo que pode ser dentro
de suas paredes fechadas;
pelo que dentro fizeram
com seus vazios, com o nada;
pelos espaços de dentro,
não pelo que dentro guarda;
pelos espaços de dentro:
seus recintos, suas áreas,
organizando-se dentro
em corredores e salas,
os quais sugerindo ao homem
estâncias aconchegadas,
paredes bem revestidas
ou recessos bons de cavas,
exercem sobre esse homem
efeito igual ao que causas:
a vontade de corrê-la
por dentro, de visitá-la.
(J. C. M. Neto - Antologia poética -4. ed. Rio de Janeiro, J. Olympio,
1978)
É o poema de Cabral, obra de rara beleza, que redime o discurso desses eus masculinos sobre as mulheres, nessa sua imagética tão concreta, que é a mais marcante característica do escritor, criando-lhe uma metáfora inédita e magnífica: mulher/casa.
E lindamente afirma que “uma casa não é nunca/ só para ser contemplada”. Valoriza-se, mais do que a “fachada”, o por dentro, vocábulo que aparece no poema nove vezes, três em uma só estrofe, numa franca ênfase ao interior de uma mulher, que tanto pode ser uma visitação física, no sentido sexual, quanto naquilo que um ser tem em seu interior. E a gente, finalmente, se apazigua daquele lamento do eu lírico do segundo poema “Se fosses forma, somente! És ideia também.” E é um eu seguro, tranquilo, homem adulto, afinal, que confessa “a vontade de corrê-la/ por dentro, de visitá-la.”
Um comentário:
Perfeita escolha. Excelente brincadeira que nos leva a mais clara reflexão. Adorei, como sempre. Bjs.
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