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sábado, 1 de dezembro de 2012

O jogo da forma e do conteúdo: duas faces de uma mesma estética

O presente estudo foi publicado há cerca de dois anos. Trago-o aqui de volta por considerá-lo bastante representativo dos novos movimentos literários. 

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais - RJ)

Mocinhamoringa
(interior – anos 20)

Zulmira Ribeiro Tavares

Moça alegrinha na sua compostura. Corada sem e com vergonha. Um pouco de tudo. Pescoço de gargalo de moringa. Levezinha para cima. Para baixo, pesa. Dentro da sala sentada a prumo e a gosto. O mormaço assoma à janela, um lerdo sol de emplastro. Sem sombra de susto pensa as coisas proibidas e as de todas as horas no mesmo espaço da cabeça. Lá estão seus pensamentos-carneirinhos chamando o sono mas também retirando o ponto de todas as suas costuras. Por dentro de si mesma escorrega nuinha feito uma cobra d’água. Ninguém lhe bota a mão em cima dos pensamentos. Nadam e vão-se embora com ela pelo rente das corredeiras. Sua compostura e seu desatino se casam no mesmo barro e na mesma água. MORINGA NO AR PARADO NO MEIO DA SALA AO MEIO-DIA. Rútila. Morena. Com muito gluglus assomando. Barulhinho de água encanta o mais santo. Paredes porejando. Espanto pela suavidade da curva. Oleiro fez, oleiro desfez. Da porta já dá na vista. Tudo o que se arredonda e desmancha lá está posto junto. Se quebra ou trinca não tem outro dia. Madrinha Tiana precipitando-se para os fundos do quintal no sensacional dos agudíssimos: EU VI! EU VI!
(TAVARES, Z.R., O mandril. São Paulo: Brasiliense, 1988).

Breve biografia.
Zulmira R.Tavares nasceu em S.Paulo, em 1930. Recebeu o prêmio “Revelação em Literatura” da Associação Paulista de Críticos de Arte por Termos de comparação (conto, poesia, ensaio, Ed. Perspectiva, 1974).
Outras obras de ficção: O japonês dos olhos redondos (ficções, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1982); O nome do Bispo (romance, S.Paulo, Brasiliense, 1985).

Análise do texto

Eliane F.C.Lima

Fico na dúvida qual aspecto do texto de Zulmira é mais atraente: o seu conteúdo ou a magnífica linguagem que ela manipula. Na verdade, a segunda, levada às raias poéticas, acaba sendo o próprio texto.
Com o subtítulo, quem lê é convocado a usar todo o seu conhecimento contextual para imaginar uma mocinha de interior dos anos 20, as convenções sociais, as restrições impostas. Mas, burlando esses elementos que fixam comportamentos coletivos, o texto vai desenhando uma individualidade de mulher, silenciosa, mas não menos verdadeira – “Sem sombra de susto...” –, que se constrói interiormente, território não invadido, liberdade preservada: “Ninguém lhe bota a mão em cima dos pensamentos. Nadam e vão-se embora com ela pelo rente das corredeiras.”
A linguagem, na verdade, é a estrela principal do texto da escritora. Utilizando um processo essencialmente econômico, elíptico da linguagem, alcança resultados poéticos inusitados, como no trecho “...retirando o ponto de todas as suas costuras...” em que consegue uma superposição de significados: um que assinala a atividade rotineira de uma mulher da época e, outro, com um efeito fundamental para o significado geral do texto, indica a quebra dos limites impostos para essa mesma mulher, através de seus pensamentos, o que se confirma logo adiante.
Essa contenção da linguagem se verifica ainda no uso da conjunção aditiva para reduzir o discurso, somando o que pode ficar junto ou o que se opõe ou não se coaduna, como o abstrato e o concreto, obtendo, desse modo, no menos, o máximo: “Corada sem e com vergonha”; “Sem sombra de susto pensa as coisas proibidas e as de todas as horas no mesmo espaço da cabeça.”; “Sua compostura e seu desatino se casam no mesmo barro e na mesma água.”
Nesse aspecto, é importante se observar, ainda, os dois movimentos estruturais: a descrição e a narração. A primeira seria quase predominante no texto, se não valesse pela própria narração ou fosse por ela invadida, ocasionalmente: a personagem parece parada, estática, embora seja revelada sua dinâmica interior: “Corada sem e com vergonha. Um pouco de tudo. Pescoço de gargalo de moringa. Levezinha para cima. Para baixo, pesa.”; “MORINGA NO AR PARADO NO MEIO DA SALA AO MEIO-DIA. Rútila. Morena.”; “Espanto pela suavidade da curva.”; “Tudo o que se arredonda e desmancha lá está posto junto.”
Pode-se concluir que faz parte da mesma intenção produtiva do texto a colocação em maiúsculas de dois trechos, um descritivo e outro narrativo, os quais parecem resumi-lo.
No aspecto da linguagem, ainda, é a metáfora da moringa – desde o título, já se vê – que domina o texto, e que anula o burlesco ao convocar a imaginação a criar uma figura atraente de mulher pelo arredondado, pelo leve em cima e pesada embaixo e que continua a apostar no erótico da ação interior, como se conclui em “pensa as coisas proibidas” e “escorrega nuinha feito uma cobra d’água.”.
Com o concurso da idéia de água acaba-se de compor o ambiente de lascívia em que se insere a imagem da moça: “Com muito gluglus assomando. Barulhinho de água encanta o mais santo.”; “Tudo o que se arredonda e desmancha lá está posto junto.”; “Paredes porejando.” Mais do que o encontro com uma metáfora criativa, percebe-se que a moça é, essencialmente, a moringa e seu conteúdo: “Sua compostura e seu desatino se casam no mesmo barro e na mesma água.”
Mas tal desatino, descrito inicialmente em seu interior, ultrapassa as paredes da compostura: “Da porta já dá na vista.”.
E é o primeiro momento real de narração, a madrinha alardeando seu testemunho, que nos faz retornar, então, ao contexto social da mulher do interior, na segunda década do século XX: o controle do comportamento, da sexualidade e até do pensamento.

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