Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais - RJ)
No comentário de hoje, um poema de Cida Pedrosa – “Poema da anunciação”, abaixo transcrito –, a quem analisei há algumas postagens atrás, trouxe-me o conhecido texto de Drummond, “Poema de sete faces”, e todo o repertório de outros poetas, que, assinalados com a força do verso “Quando nasci, um anjo... “, fizeram suas próprias construções poéticas.
O substantivo “anjo... “ marcado pelo atributo “torto/desses que vivem na sombra” estende sua negatividade ao eu poético, não só no texto de Drummond, mas a outros desses textos, que, atualizando ou popularizando esses atributos – “um anjo louco muito louco”, em Torquato Neto; “Quando nasci veio um anjo safado/O chato dum querubim”, em Chico Buarque –, lhes prevê um futuro difícil: “Meu Deus, por que me abandonaste/se sabias que eu não era Deus/se sabias que eu era fraco.”
Diferentemente, nas escritoras, a marca do anjo é um pouco modificada, incluindo o destino desse eu lírico que se pronuncia. Em Adélia, o “anjo esbelto,/desses que tocam trombeta”, diferentemente do primeiro, que se oculta na sombra, se anuncia ruidosamente, o que já leva quem lê a prever um futuro menos oneroso: carregar bandeira é lutar pelo próprio destino ou pelo destino coletivo. Se os versos “Cargo muito pesado pra mulher,/esta espécie ainda envergonhada.” podem supor uma inferioridade feminina, a inauguração de linhagens, a fundação de reinos, a negação da amargura, da maldição restrita ao homem, assinalam a diferença do ser mulher, colocando-a em um lugar diferente e especial.
Em Cida Pedrosa, a presença e o poder de sina desse predestinador é inteiramente negada, cabendo ao eu o direito – e o dever! – de inventar o seu próprio destino.
Poema de sete faces
C.Drummond de Andrade
Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.
As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.
O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.
O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode,
Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.
Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.
Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.
No comentário de hoje, um poema de Cida Pedrosa – “Poema da anunciação”, abaixo transcrito –, a quem analisei há algumas postagens atrás, trouxe-me o conhecido texto de Drummond, “Poema de sete faces”, e todo o repertório de outros poetas, que, assinalados com a força do verso “Quando nasci, um anjo... “, fizeram suas próprias construções poéticas.
O substantivo “anjo... “ marcado pelo atributo “torto/desses que vivem na sombra” estende sua negatividade ao eu poético, não só no texto de Drummond, mas a outros desses textos, que, atualizando ou popularizando esses atributos – “um anjo louco muito louco”, em Torquato Neto; “Quando nasci veio um anjo safado/O chato dum querubim”, em Chico Buarque –, lhes prevê um futuro difícil: “Meu Deus, por que me abandonaste/se sabias que eu não era Deus/se sabias que eu era fraco.”
Diferentemente, nas escritoras, a marca do anjo é um pouco modificada, incluindo o destino desse eu lírico que se pronuncia. Em Adélia, o “anjo esbelto,/desses que tocam trombeta”, diferentemente do primeiro, que se oculta na sombra, se anuncia ruidosamente, o que já leva quem lê a prever um futuro menos oneroso: carregar bandeira é lutar pelo próprio destino ou pelo destino coletivo. Se os versos “Cargo muito pesado pra mulher,/esta espécie ainda envergonhada.” podem supor uma inferioridade feminina, a inauguração de linhagens, a fundação de reinos, a negação da amargura, da maldição restrita ao homem, assinalam a diferença do ser mulher, colocando-a em um lugar diferente e especial.
Em Cida Pedrosa, a presença e o poder de sina desse predestinador é inteiramente negada, cabendo ao eu o direito – e o dever! – de inventar o seu próprio destino.
Poema de sete faces
C.Drummond de Andrade
Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.
As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.
O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.
O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode,
Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.
Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.
Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.
( In Alguma poesia - 1930)
Let's play that
Torquato Neto (recebeu música de Jards Macalé)
Quando eu nasci
um anjo louco muito louco
veio ler a minha mão
não era um anjo barroco
era um anjo muito louco, torto
com asas de avião
Quando eu nasci
um anjo louco muito louco
veio ler a minha mão
não era um anjo barroco
era um anjo muito louco, torto
com asas de avião
eis que esse anjo me disse
apertando minha mão
com um sorriso entre dentes
vai bicho desafinar
o coro dos contentes
vai bicho desafinar
o coro dos contentes
(CD Torquato Neto - Todo Dia É Dia D - 2002)
Até o fim
Chico Buarque de Hollanda
Quando nasci veio um anjo safado
O chato dum querubim
E decretou que eu tava predestinado
A ser errado assim
Já de saída a minha estrada entortou
Mas vou até o fim
apertando minha mão
com um sorriso entre dentes
vai bicho desafinar
o coro dos contentes
vai bicho desafinar
o coro dos contentes
(CD Torquato Neto - Todo Dia É Dia D - 2002)
Até o fim
Chico Buarque de Hollanda
Quando nasci veio um anjo safado
O chato dum querubim
E decretou que eu tava predestinado
A ser errado assim
Já de saída a minha estrada entortou
Mas vou até o fim
Inda garoto deixei de ir à escola
Cassaram meu boletim
Não sou ladrão, eu não sou bom de bola
Nem posso ouvir clarim
Um bom futuro é o que jamais me esperou
Mas vou até o fim
Cassaram meu boletim
Não sou ladrão, eu não sou bom de bola
Nem posso ouvir clarim
Um bom futuro é o que jamais me esperou
Mas vou até o fim
Eu bem que tenho ensaiado um progresso
Virei cantor de festim
Mamãe contou que eu faço um bruto sucesso
Em Quixeramobim
Não sei como o maracatu começou
Mas vou até o fim
Por conta de umas questões paralelas
Quebraram meu bandolim
Não querem mais ouvir as minhas mazelas
E a minha voz chinfrim
Criei barriga, minha mula empacou
Mas vou até o fim
Virei cantor de festim
Mamãe contou que eu faço um bruto sucesso
Em Quixeramobim
Não sei como o maracatu começou
Mas vou até o fim
Por conta de umas questões paralelas
Quebraram meu bandolim
Não querem mais ouvir as minhas mazelas
E a minha voz chinfrim
Criei barriga, minha mula empacou
Mas vou até o fim
Não tem cigarro, acabou minha renda
Deu praga no meu capim
Minha mulher fugiu com o dono da venda
O que será de mim?
Eu já nem lembro pr'onde mesmo que vou
Mas vou até o fim
Deu praga no meu capim
Minha mulher fugiu com o dono da venda
O que será de mim?
Eu já nem lembro pr'onde mesmo que vou
Mas vou até o fim
Como já disse, era um anjo safado
O chato dum querubim
Que decretou que eu tava predestinado
A ser todo ruim
Já de saída a minha estrada entortou
Mas vou até o fim
( In LP Chico Buarque - 1978)
Com licença poética
Adélia Prado
Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não tão feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
— dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável.
Eu sou.
(In Poesia Reunida - 1991)
Poema da anunciação
Cida Pedrosa
(entre drummond, adélia e chico)
quando nasci
os anjos da anunciação
não me disseram nada
então saí por aí
a inventar destinos
de vez em quando
a consertar a cara
O chato dum querubim
Que decretou que eu tava predestinado
A ser todo ruim
Já de saída a minha estrada entortou
Mas vou até o fim
( In LP Chico Buarque - 1978)
Com licença poética
Adélia Prado
Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não tão feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
— dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável.
Eu sou.
(In Poesia Reunida - 1991)
Poema da anunciação
Cida Pedrosa
(entre drummond, adélia e chico)
quando nasci
os anjos da anunciação
não me disseram nada
então saí por aí
a inventar destinos
de vez em quando
a consertar a cara
( In Miúdos - 2011)
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