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quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Os anjos da anunciação: a predestinação da poesia

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais - RJ)
No comentário de hoje, um poema de Cida Pedrosa – “Poema da anunciação”, abaixo transcrito  –, a quem analisei há algumas postagens atrás, trouxe-me o conhecido texto de Drummond, “Poema de sete faces”, e todo o repertório de outros poetas, que, assinalados com a força do verso “Quando nasci, um anjo... “, fizeram suas próprias construções poéticas. 

O  substantivo “anjo... “ marcado pelo atributo “torto/desses que vivem na sombra” estende sua negatividade ao eu poético, não só no texto de Drummond, mas a outros desses textos, que, atualizando ou popularizando esses atributos – “um anjo louco muito louco”, em Torquato Neto; “Quando nasci veio um anjo safado/O chato dum querubim”, em Chico Buarque –, lhes prevê um futuro difícil: “Meu Deus, por que me abandonaste/se sabias que eu não era Deus/se sabias que eu era fraco.”
Diferentemente, nas escritoras, a marca do anjo é um pouco modificada, incluindo o destino desse eu lírico que se pronuncia. Em Adélia, o “anjo esbelto,
/desses que tocam trombeta”, diferentemente do primeiro, que se oculta na sombra, se anuncia ruidosamente, o que já leva quem lê a prever um futuro menos oneroso: carregar bandeira é lutar pelo próprio destino ou pelo destino coletivo. Se os versos  “Cargo muito pesado pra mulher,/esta espécie ainda envergonhada.” podem supor uma inferioridade feminina, a inauguração de linhagens, a fundação de reinos, a negação da amargura, da maldição restrita ao homem, assinalam a diferença do ser mulher, colocando-a em um  lugar diferente e especial.
Em Cida Pedrosa, a presença e o poder de sina desse predestinador é inteiramente negada, cabendo ao eu o direito – e o dever! – de inventar o seu próprio destino.

Poema de sete faces


C.Drummond de Andrade


Quando nasci, um anjo torto

desses que vivem na sombra

disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.


As casas espiam os homens

que correm atrás de mulheres.

A tarde talvez fosse azul,

não houvesse tantos desejos.


O bonde passa cheio de pernas:

pernas brancas pretas amarelas.

Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.

Porém meus olhos

não perguntam nada.


O homem atrás do bigode

é sério, simples e forte.

Quase não conversa.

Tem poucos, raros amigos

o homem atrás dos óculos e do bigode,


Meu Deus, por que me abandonaste

se sabias que eu não era Deus

se sabias que eu era fraco.


Mundo mundo vasto mundo,

se eu me chamasse Raimundo

seria uma rima, não seria uma solução.

Mundo mundo vasto mundo,

mais vasto é meu coração.


Eu não devia te dizer

mas essa lua

mas esse conhaque

botam a gente comovido como o diabo.

(
In Alguma poesia - 1930)

 
Let's play that


Torquato Neto (recebeu música de Jards Macalé)
                  
Quando eu nasci
um anjo louco muito louco

veio ler a minha mão

não era um anjo barroco

era um anjo muito louco, torto

com asas de avião

 
eis que esse anjo me disse
apertando minha mão

com um sorriso entre dentes

vai bicho desafinar

o coro dos contentes

vai bicho desafinar

o coro dos contentes


(CD
Torquato Neto - Todo Dia É Dia D - 2002)


Até o fim


Chico Buarque de Hollanda


Quando nasci veio um anjo safado

O chato dum querubim

E decretou que eu tava predestinado

A ser errado assim

Já de saída a minha estrada entortou

Mas vou até o fim

 
Inda garoto deixei de ir à escola
Cassaram meu boletim

Não sou ladrão, eu não sou bom de bola

Nem posso ouvir clarim

Um bom futuro é o que jamais me esperou

Mas vou até o fim

 
Eu bem que tenho ensaiado um progresso
Virei cantor de festim

Mamãe contou que eu faço um bruto sucesso

Em Quixeramobim

Não sei como o maracatu começou

Mas vou até o fim


Por conta de umas questões paralelas

Quebraram meu bandolim

Não querem mais ouvir as minhas mazelas

E a minha voz chinfrim

Criei barriga, minha mula empacou

Mas vou até o fim

 
Não tem cigarro, acabou minha renda
Deu praga no meu capim

Minha mulher fugiu com o dono da venda

O que será de mim?

Eu já nem lembro pr'onde mesmo que vou

Mas vou até o fim

 
Como já disse, era um anjo safado
O chato dum querubim

Que decretou que eu tava predestinado

A ser todo ruim

Já de saída a minha estrada entortou

Mas vou até o fim

(
In LP Chico Buarque - 1978)

Com licença poética

                   
Adélia Prado

Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não tão feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
— dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável.
Eu sou.

(In Poesia Reunida - 1991)


Poema da anunciação


Cida Pedrosa


(entre drummond, adélia e chico)


quando nasci

os anjos da anunciação
não me disseram nada

então saí por aí

a inventar destinos
de vez em quando
a consertar a cara

(
In Miúdos - 2011)

Convido para meus blogues Poema Vivo (link) e Conto-gotas (link).








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