Eliane
F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais)
Antes de se iniciarem
os comentários sobre certos aspectos da narrativa propriamente dita
– esses dados são levantados na terceira parte –, chama-se a
atenção para o fato de que, na primeira parte do estudo sobre o
romance Senhora, foi citado o aproveitamentos dos costumes
sociais de meados do século XIX presentes no romance. Os exemplos
citados são tirados da 5.a edição da Editora Martin
Claret, da “Coleção a obra-prima de cada autor”.
Mas
essa parenta não passava de mãe de encomenda, para condescender com
os escrúpulos da sociedade brasileira, que naquele tempo não tinha
ainda admitido ainda certa emancipação feminina.” (p.17)
Riam-se
todos destes ditos de Aurélia e os lançavam à conta de gracinhas
de moça espirituosa; porém a maior parte das senhoras, sobretudo
aquelas que tinham filhas moças, não cansavam de criticar esses
modos desenvoltos, impróprios de meninas bem-educadas. (p. 19-20)
Por
isso cresciam as tristezas e inquietações da boa mãe, pensar que
também esta filha estaria condenada à
mesquinha sorte do aleijão social, que se chama celibato. (p.45)
– Vendido!
– exclamou Seixas, ferido dentro d'alma.
– Vendido
sim: não tem outro nome. Sou rica, muito rica, sou milionária;
precisava de um marido, traste
indispensável às mulheres honestas. O
senhor estava no mercado; comprei-o. Custou-me cem contos de réis,
foi barato; não se fez valer. Eu daria o dobro, o triplo, toda a
minha riqueza por este momento. (p.81)
Nessas
circunstâncias, a mãe só via para a filha o natural e eficaz apoio
de um marido. (p. 90)
No
primeiro ensejo interrogou o moço acerca de suas intenções. Fez
valer o argumento formidável da sombra que um galanteio ostensivo
projeta sobre a reputação de uma menina, quando não o perfumam os
botões de laranjeira a abrir em flor. Lembrou também que a
preferência exclusiva afugentava os pretendentes, sem garantia do
futuro. (p.99)
Apesar da aparente
crítica dos costumes sociais da época em que se desenvolve a trama
literária – “Sou rica,
muito rica, sou milionária; precisava
de um marido, traste indispensável às mulheres honestas.” –,
uma
observação mais atenta dá a perceber que muitos dos conceitos que
são destilados por toda a obra acabam fazendo coro a esses mesmos
costumes, principalmente em relação à posição da mulher naquela
sociedade.
Para observar esse aspecto, começa-se a chamar a atenção para a posição do narrador, personagem criado como responsável pela enunciação, que, se parece estar em um ponto de vista externo, em algumas passagens se mostra uma presença subjetiva:
Para observar esse aspecto, começa-se a chamar a atenção para a posição do narrador, personagem criado como responsável pela enunciação, que, se parece estar em um ponto de vista externo, em algumas passagens se mostra uma presença subjetiva:
Suspeito
eu porém que a explicação dessa singularidade já ficou
assinalada. Aurélia amava mais seu amor do que seu amante; era
mais poeta do que mulher; preferia o ideal ao homem. (p.106)
E essa presença
subjetiva, responsável, portanto, pelos conceitos ali expostos, se
trai não somente pela presença explícita do pronome de primeira
pessoa. Os articuladores textuais escolhidos pelo narrador vão dando
conta de suas posições frente ao objeto narrado, como tão bem
descreveu os aspectos teóricos da análise do discurso. Como se
comprova no exemplo abaixo, se, à primeira vista, o trecho parece
apenas conter uma constação de época, o advérbio “felizmente”,
de natureza afetiva, mas francamente axiológico (que se manifesta
com um caráter de valor para o enunciador do discurso), tão bem
descrito pela teoria citada, abre, significativamente, o parágrafo:
o narrador se posiciona claramente a favor da “antiga educação
brasileira”, bem como pelas opiniões que recheiam toda a trama.
Felizmente
D. Camila tinha dado a suas filhas a mesma rigorosa educação que
recebera; antiga
educação brasileira, já bem rara em nossos dias,
que, se não fazia donzelas românticas, preparava
a mulher para as sublimes abnegações
que protegem a família e fazem da humilde casa um santuário. (O
grifo é meu – p.44)
Ainda,
refletindo sobre o exemplo anterior, pode-se argumentar que o termo
“abnegação” (renúncia, desprendimento, altruímo, sacrifício
de direitos), intensificado pelo atributo “sublime” (quase
sagrado), já permite a quem lê prever as concepções que esse
narrador tem – e o que valoriza – do papel social da mulher: o
silêncio, o recato, a não intervenção no processo social público.
À mulher estavam reservadas as “sublimes
abnegações que protegem a família e fazem da humilde casa um
santuário.”, ou
seja, o papel privado.
Era realmente para causar pasmo aos estranhos e susto a um tutor, a perspicácia com que essa moça de dezoito anos apreciava as questões mais complicadas; o perfeito conhecimento que mostrava dos negócios, e a facilidade com que fazia, muitas vezes de memória, qualquer operação aritmética por mais complicada e difícil que fosse.
Não
havia porém em Aurélia nem sombra do
ridículo pedantismo
de certas moças que, tendo colhido em leituras superficiais certas
noções vagas, se
metem a tagarelar de tudo.
Bem
ao contrário, ela
recatava sua experiência, de que só fazia uso, quando o
exigiam seus próprios interesses. Fora daí ninguém lhe ouvia falar
de negócios e emitir opinião acerca de coisas que não
pertencessem à sua especialidade de moça solteira. ( O grifo é
meu – p. 30)
E
a justificativa desse comportamento social não intervencionista é
equacionado claramente no delineamento da características do ser
“Mulher” – emocionais, presas ao coração, ao contrário dos
homens, presos
à razão
–, ser singularizado através do enquadramento de todas as mulheres
dentro de uma pretensa essência feminina, por assim dizer, essência
da qual, não foge nem a personagem Aurélia, mesmo com as
especificidades que apresenta como heroína do romance e, portanto,
um ser especial. Os exemplos são abundantes nas palavras do
narrador. Alguns trechos foram colocados em negrito para realce do
que se quer apresentar.
Era
uma expressão fria, pausada, inflexível, que jaspeava sua beleza,
dando-lhe quase a gelidez da estátua. Mas no lampejo de seus grandes
olhos pardos, brilhavam a irradiação da inteligência. Operava-se
nela uma revolução.
O
princípio vital da mulher abandonava seu foco natural, o
coração, para concentrar-se no cérebro, onde residem as
faculdades especulativas do homem.(p. 30)
Via-se
bem que essa altiva e gentil cabeça não carregava um fardo, talvez
o espólio de um crânio morto, jugo cruel que a moda impõe às
moças vaidosas. O que ela ostentava era a coma abundante de que
a tocara a natureza, como às árvores frondosas, era a juba soberba
de que a galanteria moderna coroou a mulher como emblema de sua
realeza. (p.64)
No
altivo realce da cabeça e no enlevo das feições cuja formosura se
toucava de lumes esplêndidos, estava-se debuxando a soberba
expressão do triunfo, que exalta a mulher quando consegue a
realidade de um desejo férvido e longamente ansiado. (p.74)
Seixas
ajoelhou aos pés da noiva, tomou-lhe as mãos que ela não retirava;
e modulou o seu canto de amor, essa
ode sublime do coração,
que
só as mulheres entendem, como somente as mães percebem o balbuciar
do filho.
(p. 80)
A
natureza dotara Aurélia com a inteligência viva e brilhante da
mulher de talento, que
se não atinge ao vigoroso raciocínio do homem,
tem a preciosa ductilidade de prestar-se a todos os assuntos, por
mais diversos que sejam. O que o irmão não conseguira em meses de
prática foi para ela estudo de uma semana. (p. 89)
Esse
fenômeno devia ter uma razão psicológica, de cuja investigação
nos abstemos; porque o coração, e ainda mais o da mulher que é
toda ela, representa o caos do mundo moral. Ninguém sabe que
maravilhas ou que monstros vão surgir desses limbos. (p.104)
Desse modo, percebe-se
que a leitura de um texto literário está longe de se constituir
apenas na fruição inocente de uma obra artística. Há muito mais a
ser revelado.
Mas, a despeito dos comentários anteriores sobre as particularidades sociais levantadas, quem leu a obra em questão se deparou com a magnificência da habilidade narrativa alencariana e foi envolvido por uma história da qual não conseguiu fugir até chegar a seu final surpreendente.
Convido a quem me lê a voltar para acompanhar a terceira parte, que fala mais abrangentemente dessa trama de Senhora, observada então a força que o texto tem.
Mas, a despeito dos comentários anteriores sobre as particularidades sociais levantadas, quem leu a obra em questão se deparou com a magnificência da habilidade narrativa alencariana e foi envolvido por uma história da qual não conseguiu fugir até chegar a seu final surpreendente.
Convido a quem me lê a voltar para acompanhar a terceira parte, que fala mais abrangentemente dessa trama de Senhora, observada então a força que o texto tem.
ESTE ESTUDO CONTINUA NA POSTAGEM
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