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domingo, 9 de março de 2014

Parte II: A pseudo “alma feminina”: Senhora e o olhar do século XIX sobre a mulher.


Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais)


Antes de se iniciarem os comentários sobre certos aspectos da narrativa propriamente dita – esses dados são levantados na terceira parte –, chama-se a atenção para o fato de que, na primeira parte do estudo sobre o romance Senhora, foi citado o aproveitamentos dos costumes sociais de meados do século XIX presentes no romance. Os exemplos citados são tirados da 5.a edição da Editora Martin Claret, da “Coleção a obra-prima de cada autor”.

Mas essa parenta não passava de mãe de encomenda, para condescender com os escrúpulos da sociedade brasileira, que naquele tempo não tinha ainda admitido ainda certa emancipação feminina.” (p.17)

Riam-se todos destes ditos de Aurélia e os lançavam à conta de gracinhas de moça espirituosa; porém a maior parte das senhoras, sobretudo aquelas que tinham filhas moças, não cansavam de criticar esses modos desenvoltos, impróprios de meninas bem-educadas. (p. 19-20)

Por isso cresciam as tristezas e inquietações da boa mãe, pensar que também esta filha estaria condenada à mesquinha sorte do aleijão social, que se chama celibato. (p.45)

Vendido! – exclamou Seixas, ferido dentro d'alma.
Vendido sim: não tem outro nome. Sou rica, muito rica, sou milionária; precisava de um marido, traste indispensável às mulheres honestas. O senhor estava no mercado; comprei-o. Custou-me cem contos de réis, foi barato; não se fez valer. Eu daria o dobro, o triplo, toda a minha riqueza por este momento. (p.81)

Nessas circunstâncias, a mãe só via para a filha o natural e eficaz apoio de um marido. (p. 90)

No primeiro ensejo interrogou o moço acerca de suas intenções. Fez valer o argumento formidável da sombra que um galanteio ostensivo projeta sobre a reputação de uma menina, quando não o perfumam os botões de laranjeira a abrir em flor. Lembrou também que a preferência exclusiva afugentava os pretendentes, sem garantia do futuro. (p.99)

Apesar da aparente crítica dos costumes sociais da época em que se desenvolve a trama literária – “Sou rica, muito rica, sou milionária; precisava de um marido, traste indispensável às mulheres honestas.” –, uma observação mais atenta dá a perceber que muitos dos conceitos que são destilados por toda a obra acabam fazendo coro a esses mesmos costumes, principalmente em relação à posição da mulher naquela sociedade. 
Para observar esse aspecto, começa-se a chamar a atenção para a posição do narrador, personagem criado como responsável pela enunciação, que, se parece estar em um ponto de vista externo, em algumas passagens se mostra uma presença subjetiva:

Suspeito eu porém que a explicação dessa singularidade já ficou assinalada. Aurélia amava mais seu amor do que seu amante; era mais poeta do que mulher; preferia o ideal ao homem. (p.106)

E essa presença subjetiva, responsável, portanto, pelos conceitos ali expostos, se trai não somente pela presença explícita do pronome de primeira pessoa. Os articuladores textuais escolhidos pelo narrador vão dando conta de suas posições frente ao objeto narrado, como tão bem descreveu os aspectos teóricos da análise do discurso. Como se comprova no exemplo abaixo, se, à primeira vista, o trecho parece apenas conter uma constação de época, o advérbio “felizmente”, de natureza afetiva, mas francamente axiológico (que se manifesta com um caráter de valor para o enunciador do discurso), tão bem descrito pela teoria citada, abre, significativamente, o parágrafo: o narrador se posiciona claramente a favor da “antiga educação brasileira”, bem como pelas opiniões que recheiam toda a trama.

Felizmente D. Camila tinha dado a suas filhas a mesma rigorosa educação que recebera; antiga educação brasileira, já bem rara em nossos dias, que, se não fazia donzelas românticas, preparava a mulher para as sublimes abnegações que protegem a família e fazem da humilde casa um santuário. (O grifo é meu – p.44)

Ainda, refletindo sobre o exemplo anterior, pode-se argumentar que o termo “abnegação” (renúncia, desprendimento, altruímo, sacrifício de direitos), intensificado pelo atributo “sublime” (quase sagrado), já permite a quem lê prever as concepções que esse narrador tem – e o que valoriza – do papel social da mulher: o silêncio, o recato, a não intervenção no processo social público. À mulher estavam reservadas as sublimes abnegações que protegem a família e fazem da humilde casa um santuário.”, ou seja, o papel privado.

Era realmente para causar pasmo aos estranhos e susto a um tutor, a perspicácia com que essa moça de dezoito anos apreciava as questões mais complicadas; o perfeito conhecimento que mostrava dos negócios, e a facilidade com que fazia, muitas vezes de memória, qualquer operação aritmética por mais complicada e difícil que fosse.
Não havia porém em Aurélia nem sombra do ridículo pedantismo de certas moças que, tendo colhido em leituras superficiais certas noções vagas, se metem a tagarelar de tudo.
Bem ao contrário, ela recatava sua experiência, de que só fazia uso, quando o exigiam seus próprios interesses. Fora daí ninguém lhe ouvia falar de negócios e emitir opinião acerca de coisas que não pertencessem à sua especialidade de moça solteira. ( O grifo é meu – p. 30)


E a justificativa desse comportamento social não intervencionista é equacionado claramente no delineamento da características do ser “Mulher” – emocionais, presas ao coração, ao contrário dos homens, presos à razão –, ser singularizado através do enquadramento de todas as mulheres dentro de uma pretensa essência feminina, por assim dizer, essência da qual, não foge nem a personagem Aurélia, mesmo com as especificidades que apresenta como heroína do romance e, portanto, um ser especial. Os exemplos são abundantes nas palavras do narrador. Alguns trechos foram colocados em negrito para realce do que se quer apresentar.

Era uma expressão fria, pausada, inflexível, que jaspeava sua beleza, dando-lhe quase a gelidez da estátua. Mas no lampejo de seus grandes olhos pardos, brilhavam a irradiação da inteligência. Operava-se nela uma revolução.
O princípio vital da mulher abandonava seu foco natural, o coração, para concentrar-se no cérebro, onde residem as faculdades especulativas do homem.(p. 30)

Via-se bem que essa altiva e gentil cabeça não carregava um fardo, talvez o espólio de um crânio morto, jugo cruel que a moda impõe às moças vaidosas. O que ela ostentava era a coma abundante de que a tocara a natureza, como às árvores frondosas, era a juba soberba de que a galanteria moderna coroou a mulher como emblema de sua realeza. (p.64)

No altivo realce da cabeça e no enlevo das feições cuja formosura se toucava de lumes esplêndidos, estava-se debuxando a soberba expressão do triunfo, que exalta a mulher quando consegue a realidade de um desejo férvido e longamente ansiado. (p.74)

Seixas ajoelhou aos pés da noiva, tomou-lhe as mãos que ela não retirava; e modulou o seu canto de amor, essa ode sublime do coração, que só as mulheres entendem, como somente as mães percebem o balbuciar do filho. (p. 80)

A natureza dotara Aurélia com a inteligência viva e brilhante da mulher de talento, que se não atinge ao vigoroso raciocínio do homem, tem a preciosa ductilidade de prestar-se a todos os assuntos, por mais diversos que sejam. O que o irmão não conseguira em meses de prática foi para ela estudo de uma semana. (p. 89)

Esse fenômeno devia ter uma razão psicológica, de cuja investigação nos abstemos; porque o coração, e ainda mais o da mulher que é toda ela, representa o caos do mundo moral. Ninguém sabe que maravilhas ou que monstros vão surgir desses limbos. (p.104)

Desse modo, percebe-se que a leitura de um texto literário está longe de se constituir apenas na fruição inocente de uma obra artística. Há muito mais a ser revelado. 
Mas, a despeito dos comentários anteriores sobre as particularidades sociais levantadas, quem leu a obra em questão se deparou com a magnificência da habilidade narrativa alencariana e foi envolvido por uma história da qual não conseguiu fugir até chegar a seu final surpreendente.
Convido a quem me lê a voltar para acompanhar a terceira parte, que fala mais abrangentemente dessa trama de Senhora, observada então a força que o texto tem.


ESTE ESTUDO CONTINUA NA POSTAGEM SEGUINTE.


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